É impraticável tentar manter-se concentrado nos assuntos superiores quando se tem tantas preocupações menores povoando a mente. As dívidas, a saúde, a segurança e outros problemas cotidianos, muitas vezes, assumem uma dimensão tão grande, que na cabeça não sobra espaço para praticamente mais nada, senão essas inquietudes. O mundo e seus arremedos acabam absorvendo a pessoa a ponto dela não mais ver-se a si mesma a não ser como alguém que tem nós a desatar na vida.
Tanto desassossego faz com que ela já não consiga mais acessar sua própria alma, perdendo assim contato consigo mesma. Os problemas cotidianos absorvem-na, tomando dela tudo – sua atenção, seu cuidado, seu esforço. Isto é o mesmo que dizer que ela já não vive mais em si, mas confunde-se com o mundo. Seu eu dissolve-se para ser engolido pelas vicissitudes da vida.
Quando isso acontece, não é mais possível discernir bem todas as coisas. Para isto, é preciso olhar desde fora, como um bom observador. A partir do momento que a pessoa não mais se aparta dos elementos exteriores, não tem mais como ver as nuances e sutilezas que dividem as coisas. Sendo assim, tudo se torna um amontoado indistinguível.
Além do que, ao se envolver com o mundo a pessoa perde completamente a capacidade de determinar-se a si mesmo. Misturada aos elementos mundanos, são estes que passam a dirigi-la. São as circunstâncias e não mais as próprias deliberações que comandam os caminhos da vida.
Na verdade, para auto-determinar-se é preciso ver-se com clarevidência, em contraste com o restante das coisas. Se há tal confusão, já não é mais possível dizer quem sou eu e quem é o mundo. Assim, torna-se impossível guiar-se com o mínimo de precisão.
Até mesmo a caridade é prejudicada a quem se dissolveu no mundo. Para doar-se é necessário antes estar na posse de si mesmo. Só é possível oferecer-se a algo quem está completamente separado dele.
Portanto, Quando Cristo diz que venceu o mundo, é porque, apesar de ter vivido no mundo e até morrido por ele, não deixou que o mundo o absorvesse. Até o fim, manteve-se íntegro, sem permitir que as variações e exigências da vida sorvessem sua alma. Chegou à cruz tendo preservado seu espírito de quaisquer contaminações e influências. Sua vitória é ter ido até o fim sendo quem é, inteiro.
Logo, só pode ser considerado um vencedor quem, a exemplo de Jesus, consegue manter o próprio eu incorruptível. E ainda que não seja possível alcançar isso plenamente que, ao menos, lute para não ser sugado pelo fluxo da existência.