Tenho grande dificuldade de fazer uma análise caracterológica de mim mesmo. Quanto mais eu preencho os testes propostos pelos psicólogos, mais confuso fico, pelo simples fato de nunca ter certeza se minhas respostas correspondem à verdade dos fatos, refletem o meu desejo de comportamento ideal ou espelham o comportamento que eu me esforço por ter.

Para algumas pessoas os testes de temperamento são muito óbvios. Elas respondem suas perguntas com facilidade, pois conhecem tão bem a si mesmas que o questionário parece uma simples constatação evidente daquilo que elas sempre foram. Nelas, o temperamento se manifestou, desde cedo, de maneira tão evidente, que se sedimentou e permanece claramente até hoje. 

O que as caracterizava em sua juventude continua identificando-as atualmente, com alterações de conduta apenas marginais. Há nelas uma regularidade comportamental que pouco se modifica com o tempo. São tão regulares, que até mesmo seus colegas menos íntimos poderiam responder os questionários por elas.

No meu caso, não acontece assim. Percebi que minha dificuldade de responder os testes de caráter surge do fato de eu me ver hoje como uma pessoa completamente diferente daquela que eu era quando jovem. É uma diferença tão abissal que parecem tratar-se de pessoas distintas. 

Quando penso em minhas atitudes juvenis, meus modos, minha forma de pensar e o jeito como eu encarava a vida simplesmente não me reconheço. Olho aquele rapaz quase como um estranho. Não fosse o fato dele ter contribuído para constituir o meu cabedal de experiências e estas estarem em minhas memórias, eu diria que ele fora abduzido para longe deste mundo e substituído por outra pessoa.

Ao tentar analisar o meu caráter, deparo-me com comportamentos atuais muito diferentes daqueles que eu tinha quando jovem e se os uso como parâmetro para as respostas certamente estarei desviando o resultado, pois eles não representarão minha verdadeira natureza. 

Para fazer os testes de maneira devida eu preciso fazer um esforço colossal de rememoração não apenas das minhas atitudes, mas de meus sentimentos imaturos, das reações do meu corpo diante das situações da vida e da forma como minha mente lidava com os fatos que era obrigada a confrontar. Trazer à consciência tudo isso é muito difícil, porque o garoto que existia modificou-se tão radicalmente que o homem que se encontra aqui quase não se vê mais nele.

No entanto, se eu paro para prestar mais atenção em como as coisas realmente se dão, posso perceber que essa mudança drástica deveu-se ao sufocamento ou domesticação da natureza verdadeira, não por sua troca. Apenas quando dirijo minha consciência para a observação atenta dos meus próprios sentidos é que percebo que há um temperamento subjacente querendo o tempo todo manifestar-se, mas que o hábito, a maturidade e o cansaço da vida mantêm-no, a maior parte do tempo, domado.

De fato, não substituí quem sou: eduquei-o, no sentido mais puro que a pedagogia pode ter. Ensinei-o a não ser um mero escravo de um caráter herdado, mas temperá-lo com a força da vontade. E, claro, aprendi a não confiar demais nessas conquistas, pois a natureza continua ali ─ domada, é verdade ─, mas louca para manifestar, no primeiro momento de descuido, quem ela é realmente. E, sendo bastante honesto, algumas vezes ela consegue.