Autor: Fabio Blanco

Como Iniciar os Estudos de Filosofia

Meus alunos sempre me perguntam: “Professor, por onde eu começo a estudar filosofia? O que eu devo ler primeiro? Quais os autores eu devo estudar em primeiro lugar?”. Minha resposta sempre é muito clara: antes de estudar os autores propriamente ditos e seus escritos, pense na filosofia como um indivíduo, como um ser em desenvolvimento, como uma pessoa que passa por um processo de amadurecimento.

A tendência de todo professor de filosofia é orientar a começar os estudos pelos primeiros filósofos, aqueles que inauguraram a filosofia, os pré-socráticos, especialmente Platão e Aristóteles. Considero este conselho muito bom, porque, fazendo isso, o estudante pode ir evoluindo junto com a própria filosofia, conforme ela foi se manifestando no tempo. 

No entanto, estudar filosofia partindo diretamente dos autores apresenta um problema: perde-se o contexto histórico e, principalmente, as circunstâncias da própria discussão trazida pelo pensador. Devemos lembrar que aquilo que é discutido por um filósofo já tem toda uma história por detrás que não, necessariamente, é exposta por ele, porque, para ele, está subentendida. Esse é o chamado “estado da questão” e, sem este, muito do que está sendo tratado é incompreensível. 

O pensador, quando expõe seu pensamento, traz todas essas coisas como já dadas, como já sabidas e o leitor, que toma esse texto muitos séculos depois, não tem como captar tudo isso. Por isso, quando o estudante inicia suas leituras diretamente pelos autores, um erro comum que ele comete é interpretar, segundo sua própria perspectiva, aquilo que o filósofo expõe. Isso faz com que muito do que é lido seja interpretado de maneira equivocada, não refletindo exatamente o que o filósofo quis dizer.

Por isso, quando eu trato sobre o começo dos estudos da Filosofia, aconselho o estudante a, antes de tudo, procurar ter uma visão geral do desenvolvimento do pensamento filosófico. Eu proponho que se tenha uma visão panorâmica da evolução das discussões filosóficas para, a partir daí, iniciar, de fato, os estudos. A ideia é tratar a Filosofia como um indivíduo, que está em desenvolvimento e acumula, inclusive, experiência; observá-la desde sua infância até sua maturidade e, talvez, senilidade.

Quando se tem uma visão geral, ou seja, uma visão que abarca a sequência histórica das discussões, tem-se, com isso, uma noção mais clara dos estágios de cada uma delas, conforme o contexto de cada época. Assim, obtém-se uma ideia não apenas do que está sendo discutido, mas como esses assuntos se encaixam dentro do desenrolar histórico das ideias.

Nesse processo de abarcamento da visão panorâmica da história da filosofia, não é necessário se aprofundar nos autores, nem mergulhar nos assuntos. Basta simplesmente saber o que cada um falou, o que cada um defendeu, contra o que se levantou, tendo, assim, uma visão mais exata do que ele estava tratando. Isso já é suficiente para se entender o contexto, entender o “estado da questão” e estar preparado para compreender realmente sobre o que aqueles filósofos estavam falando.

Após adquirir essa visão panorâmica da história da filosofia, o aluno poderá, então, adentrar nos textos, de primeira mão, dos filósofos com muito mais propriedade, preparados para “discutir” com eles exatamente aquilo que está sendo apresentado.

Necessidade de Sentido

Há pessoas que são muito estáveis em tudo o que fazem. Elas se mantêm no mesmo emprego, têm, há anos, os mesmos amigos, cultivam os mesmos gostos que tinham na sua juventude. São pessoas que vivem das escolhas que assumiram há muito tempo. Parece até que desde sempre têm a certeza do que querem e suas decisões refletem exatamente seus objetivos.

Sinceramente, eu invejo gente assim, porque comigo as coisas aconteceram de maneira bem diferente. Já enveredei por vários caminhos, mas nunca tive muita convicção de que eles eram os melhores. Foi tudo meio por tentativa e erro: seguia a intuição e depois, na prática, tentava entender se aquela escolha era boa ou não.

Eu tinha inclinações, gostos e potenciais que foram se mostrando cada vez mais claros para mim. Mas isso não era suficiente, porque a dificuldade era fazer com que essas inclinações, gostos e potenciais fossem aplicados na vida cotidiana. Nem sempre aquilo que gostamos de fazer ou que achamos que fazemos bem têm a oportunidade de serem colocados em prática. A vida impõe necessidades e responsabilidade que não coatumam negociar tão livremente suas exigências.

Na verdade, a quase totalidade dos seres humanos sentem que são lançados neste mundo não para cumprir qualquer propósito, mas para sobreviver, para obedecer a tarefa de manter-se vivo, saudável, seguro e, se sobrar alguma disposição, próspero.

No entanto, há alguns poucos agraciados (ou amaldiçoados) – entre os quais me incluo – que sentem que suas vidas não podem ser resumidas à aritmética que faz da prosperidade material o fator definidor de tudo. São estes que se questionam se aquilo que fazem tem algum sentido além do objetivo imediato de lhes dar o sustento necessário.

Por isso, quem tem a necessidade de sentido vai sempre encontrar dificuldade de atuar em uma área onde não consiga enxergar um propósito. Para ele, cumprir meramente com suas responsabilidades pode se transformar em um peso insustentável. Eu mesmo, muitas vezes, me senti assim, pressionado entre as minhas inclinações – pelas quais eu sabia que poderia expressar o melhor de mim – e as minhas necessidades do momento, que me forçavam a trabalhos que nada tinham a ver com minha personalidade e não me davam propósito algum.

Sem conseguir encontrar sentido no que faz, a pessoa que tem necessidade dele vai tentar justificá-lo, racionalizando sua atividade. Porém isso é apenas um subterfúgio, uma artificialidade. Eu mesmo fiz isso muitas vezes: criava, em minha mente, uma narrativa que transformava o que eu fazia em uma missão. O problema é que esse autoconvencimento não durava muito e logo a rotina e a falta de relação com algo superior ficavam muito claras para serem ignoradas.

Para quem tem necessidade de sentido, viver afastado dele faz da vida insuportável. A tal ponto que exige uma solução. Nesse ponto, ou a pessoa direciona a sua vida para o seu propósito ou ela abafa essa necessidade de vez, assumindo que a vida não permite esse tipo de preciosismo.

Obviamente, a negação do propósito acaba mantendo as pessoas presas em trabalhos que detestam, com rotinas que odeiam, tudo porque não tiveram a oportunidade (ou não tiveram a coragem) de orientar suas vidas para aquilo que satisfazia a sua necessidade de sentido. Claro que acabam tristes, frustradas ou até mesmo neuróticas.

Para quem não tem a necessidade de sentido, tudo isso parece mero capricho. Soa como desculpa de quem quer fugir de suas responsabilidade. Por isso, ele jamais vai entender as escolhas de quem tem essa necessidade. Quem a possui, porém, sabe que ela é inescapável, pois lhe persegue durante toda sua vida, reclamando, sem tolerância, preeminência e satisfação.

No meu caso, foi apenas na maturidade que tive a coragem de encaminhar a minha vida para aquilo que me fazia sentido. Alguns podem pensar que fiz isso somente quando tive a possibilidade de fazê-lo, quando as condições me eram favoráveis. Pelo contrário! Na verdade, para seguir minhas convicções e vocação precisei abrir mão de algumas certezas, de certas seguranças e até de alguns confortos.

No entanto, apesar das dificuldades, ter seguido o caminho daquilo que fazia sentido para mim foi a melhor decisão que eu poderia ter tomado. Isso porque, quando nossos propósitos podem ser colocados em prática nossa vida fica mais simples, mais leve, mas fácil. Parece que tudo está em harmonia. As necessidades diminuem e as expectativas se estabelecem em outro nível, já que os resultados são o que menos importam, afinal, o objetivo de quem decide seguir seu propósito é exercê-lo cotidianamente.

Reflexos de Deus

No homem, o corpo, a carne, é a sua parte inferior; é aquilo que se relaciona com seus impulsos, suas reações; é sua animalidade. A mente, o espírito, é sua parte superior, onde reside tudo o que é consciente.

Em Deus, não há corpo, não há carne. Por isso, não há impulso, nem instinto. Nele, nada é sem consciência. Nada é reação, tudo é razão. Deus é razão pura.

A transcendência divina significa, simplesmente, que esse Deus não se rebaixa à animalidade, mas paira, impassível, para além do mundo dos instintos. Seu reino é espiritual.

Obviamente, um Deus não animal, não carnal e não humano, a quem nada pode guiar e que não sofre qualquer tipo de impulso inferior, acaba se tornando distante.

O cristianismo, porém, subverte a concepção da divindade fria e impassível, humanizando-a. O Deus cristão se faz carne, aquela mesma carne inferior, reativa, impulsiva e inconsciente.

Mas como isso seria possível? Como o Deus transcendente pôde assumir uma natureza inferior e completamente diferente da dele? Talvez, por essa natureza não lhe ser assim tão diferente.

O homem é obra de Deus e toda obra existe, antes, no espírito do seu criador. Por isso, o homem, antes de existir, foi pensado por Deus e, assim, gerado do interior do ser divino. A carne não é estranha a Deus porque nela ela esteve antes de ser.

Deus permanece em nós mesmo quando passamos a ser mais do que uma ideia dele. Somos a expressão do seu ser e, por isso, carregamos em nós sua essência. Somos semelhantes a Deus porque trazemos sua imagem, por refletirmos seu ser em nós.

Independentemente de tudo aquilo que nos afasta de sua perfeição e pureza, há uma fagulha divina que sobrevive em nosso ser mais profundo. O que temos de Deus não é toda a sua infinitude, mas resquícios dos seus atributos. Somos como pequenos deuses, cópias imperfeitas daquele que nos criou. Seus atributos estão todos em nós, mas de maneira atenuada, parcial e dependente dele.

De qualquer forma, a humanidade, a carnalidade, não é estranha a Deus. Rebaixar-se a ela não foi um ato de alguém que desce ao desconhecido, mas que se permite envolver-se na realidade inferior que conhece muito bem.

Casais que Não Têm Harmonia

Conflitos, dentro de um casamento, podem ter muitos motivos. Um deles é o fato dos cônjuges não serem capazes de estimular o outro no desenvolvimento dos seus potenciais.

São comuns casamentos onde cada um dos companheiros, olhados como indivíduos, tem qualidades admiráveis, mas que juntos não conseguem viver em harmonia, no sentido de cada um fazer do outro melhor.

Pelo contrário, casais formados por pessoas agradáveis, trabalhadoras, virtuosas, muitas vezes, vivem um relacionamento cheio de conflitos e frustrações. Geralmente, porque as características de um, por melhor que sejam, não servem de alicerce e de estímulo para o outro; naquela relação específica não funcionam. Um cônjuge acaba sugando as possibilidades do outro, por não ser o tipo de complemento que o outro precisa.

Por outro lado, características que podem ser consideradas inusuais e até excêntricas podem suprir os anseios do companheiro, exatamente porque se harmonizam com as características dele, potencializam-no. Neste caso, as inclinações de um estimulam o outro, ajudam o outro e se realizar existencialmente.

Não se trata de afinidade, de gostar das mesmas coisas, mas de ter um perfil que faça o outro sentir-se seguro, apoiado e motivado.

Fala-se muito de sacrifício no sentido de negar suas próprias inclinações para suprir os anseios daquele com quem se vive. Porém, há um grande risco nisso, pois dificilmente a pessoa conseguirá fazer isso bem, por não ser da sua natureza. Ao anular-se, em vez de potencializá-lo, frustrará ambos.

Infelizmente, nossos critérios para a seleção amorosa são, em geral, subjetivos e instintivos. Se pudéssemos, nesse caso, agir com alguma racionalidade, um desses critérios deveria ser considerar se nossas inclinações ajudarão a realizar as inclinações de quem escolhemos para viver do nosso lado e vice-versa.

O Verdadeiro Pecado de Adão

Para que alguém seja condenável é necessário que seja, antes, livre para pensar e, portanto, decidir. Sem essa liberdade, seria inimputável, refém de um destino determinado desde fora.

A liberdade, por seu lado, possui o impulso por expansão. Quem pensa quer pensar sempre mais, conhecer sempre mais. Por isso Aristóteles dizia que os homens têm um desejo natural pelo conhecimento. 

O pecado de Adão, considerando que ele era livre, não foi o exercício da liberdade de pensar, mas sua extrapolação. Pecou por reivindicar autonomia e querer entender as coisas por conta própria, tornando-se conhecedor do bem e do mal.

Deus jamais exigiria que os homens abdicassem de sua liberdade de pensar. A ideia sempre foi auxiliá-los no processo de desenvolvimento do conhecimento e da autoconsciência. Mas eles invejaram os deuses e, não contentes em ser livres, quiseram ser soberanos.

A partir do pecado adâmico, a sina humana passou a ser repeti-lo continuamente. A história do pensamento é a história de indivíduos tentando, por si mesmos, desvelar realidade.

Quando, porém, por volta do século XVIII, eles acreditaram estar aptos para concluir sua missão, constataram que eram incapazes de fazê-lo. Perceberam que não podiam confiar em seus sentidos e se conformaram em afirmar a suficiência de seus conteúdos internos.

Com a constatação da incognoscibilidade do real, os homens romperam com ele e lançaram-se numa queda vertiginosa para dentro de si mesmos, onde havia só escuridão e ecos de ruídos fracos e reflexos plácidos do mundo exterior.

Cada um então tornou-se sua própria caverna, com a conscência acorrentada, olhando apenas as sombras da realidade, tratando-as como se realidade fossem. 

A partir dessa penumbra interior, os indivíduos passaram a clamar por resgate. Envoltos em escuridão, esperam que alguém lhes mostre a luz.

O problema é que, incapazes de discernir a origem das ajudas que lhes são oferecidas desde fora, acabam aceitando o socorro das primeiras vozes que lhes parecem fazer algum sentido. Não por acaso, estão sendo constantemente enganados.

Paradoxos da Solidão Contemporânea

O homem está só, ainda que ande em meio à multidão; vive isolado, ainda que tenha contato com mais gente como nunca se teve na história; está perdido, mesmo instalado numa era em que a informação parece infinita. Este é o paradoxo da contemporaneidade e se manifesta na sensação de isolamento daquele que vive em aglomerados, que se associa a movimentos de massa e que tem acesso livre ao mundo inteiro.

Essa solidão moderna, porém, não é daquelas que existem nos que se encontram fisicamente longe dos outros; nem tampouco daquelas que invadem o espírito de quem se sente incompreendido em sua maneira de enxergar a vida. Trata-se de uma solidão existencial, que insiste em sufocar a alma de gente que vive com os outros, pensa como os outros, age como os outros e praticamente não possui nada que lhe distingua deles.

Era de se esperar que pessoas que se misturam à multidão, seguem os padrões culturais e da moda e se empenham para pensar segundo os ditames da ideologia do momento até sofressem de crise de identidade e de sentido, mas não que se sentissem sós. Se elas se esforçam por se ajustar às expectativas sociais é porque querem pertencer, querem evitar frustrar as expectativas da sociedade e, em consequência, perder as vias de acesso abertas por ela. No entanto, parece que quanto mais tentam fazer parte do grupo, mais sozinhas se sentem; quanto mais parecidas com o mundo, mais são ignoradas por ele; quanto mais imitam os padrões culturais, mais deslocadas parecem; quanto mais se acoplam, menos ajustadas se mostram.

Os homens se gabam da evolução de sua autoconsciência, mas há algo que, apesar dela, os tem impedido de escaparem de si mesmos. Parece que estão encarcerados dentro de suas próprias almas, ainda que seus corpos interajam com todo o resto. De fato, não conseguem libertar-se de sua escuridão interior e a única realização efetiva que a autoconsciência alcançou foi o clarividência de sua própria solidão.

Excesso de Vozes nas Redes Sociais

As redes sociais nos têm feito muito mal. Nossa estrutura humana – psíquica e física – não é capaz de processar tantas informações, principalmente da maneira desenfreada como as consumimos. É um verdadeiro ataque silencioso ao nosso espírito.

Tenho plena convicção de que muito da depressão, pensamentos suicidas, sensação de falta de sentido e um desânimo mórbido são consequências dessa exposição inconsequente.

O ser humano sempre absorveu uma quantidade limitada de dados. Mesmo com os meios de comunicação em massa, quando houve um aumento exponencial das informações, nada se compara ao que temos hoje. Somos bombardeados pelos conteúdos mais diversificados, que se alternam em segundos. Abarrotamos nossa alma com todo tipo de ideias, pensamentos, conselhos, notícias, estudos, informações, piadas, imagens e sensações.

Tudo a que nos expomos, querendo ou não, ingressa em nosso espírito. Independentemente da qualidade desses conteúdos, nosso cérebro tentará processar essas informações, ainda que nada faça sentido para ele. Claro que essa tarefa lhe é hercúlea. Como consequência, pensamentos e sentimentos afluirão anarquicamente de dentro de nós, sem que sequer percebamos.

Nós não temos controle de tudo o que absorvemos. Em geral, somos meros pacientes nesse processo, colaborando muito pouco com ele. Como nossa mente vai processar tudo acaba sendo uma incógnita. Pode ser que crie sínteses criativas e inteligentes, ou gere neuroses, ideias negativas, ilusões esquizóides e obsessões. Por isso, tenho convicção que muito dos sentimentos e pensamentos negativos que brotam de dentro de nós são fruto dessa relação irresponsável com as redes sociais.

Pouca gente irá falar sobre isso, porque muitas delas ganham muito com essa dependência que as redes sociais provocam. Mesmo assim, não sou contra seu uso, pois reconheço as possbilidades que oferecem. Apenas proponho a ponderação em relação ao seu consumo, lembrando sempre de que não nos há nada mais caro do que a nossa sanidade.

A Vida é Imprevisível

A vida é complexa. Ainda que existam leis que a sustentem e fenômenos que se repitam, ainda que exista uma essência nas coisas, a maneira como tudo isso se relaciona permite uma infinidade de combinações que tornam tudo muito imprevisível.

Essa imprevisibilidade é insuportável para o ser humano, pois nada lhe incomoda mais do que a sensação de insegurança que a incerteza sobre o amanhã lhe proporciona. Se ele não consegue garantir que seus planos, sonhos e vontades se concretizarão, parece que tudo se perde.

Para afastar o imprevisível, os homens simplesmente costumam negá-lo, e um dos procedimentos mais comuns, para isso, é criar esquemas mentais que expliquem a realidade, simplificando-a, apagando sua complexidade e colocando cada coisa em um lugar que lhe seria próprio. Tornam, então, tudo mensurável, e, como consequência, previsível. Agora, sim, podem se sentir em paz, seguros de que a vida foi domesticada por eles.

No entanto, as incongruências e contradições da realidade, invariavelmente, fazem aparecer seu aspecto selvagem e desmontam o equilíbrio ilusório, desmascarando-o, mostrando-o insustentável. É de se esperar, diante disso, que, finalmente, as pessoas aceitem a vida como ela é, em seu caráter incerto. Porém, a reação delas oscila entre apegar-se ainda mais às fantasias esquemáticas ou desenvolver um sentimento de absurdo, de falta de sentido. Ficam entre o fortalecimento da quimera e o mergulho no desespero.

De nossa parte, se não quisermos afundar nem na racionalização nem na frustração precisamos abandonar a necessidade de previsibilidade e acostumarmo-nos com a imponderabilidade da existência.

Na verdade, o melhor que podemos fazer é aprender a lidar com a vida não como se seguíssemos por uma estrada bem pavimentada e sinalizada ─ por isso, tediosa e triste ─, mas como em uma aventura, que tem na aleatoriedade o seu verdadeiro sentido e prazer.

O Fechamento da Livraria Cultura

Recebi a informação de que a Livraria Cultura, do Conjunto Nacional, fechou suas portas. Confesso que, mesmo já sabendo da decretação da falência da empresa, ocorrida meses antes, ter lido essa notícia me deu um embrulho no estômago.

Essa loja da Livraria Cultura foi meu ponto de visita periódico, quando das minhas andanças pela Avenida Paulista. Nunca me neguei a caminhar várias quadras para passar o dia entre seus milhares de livros, em meio às rampas e escadas que nos levam às suas diversas seções.

O ambiente daquela livraria sempre me pareceu mágico. A grandiosidade do seu acervo, seu espaço generoso, com a pomposidade de sua decoração, cheia de luzes, carpetes e um tom dourado que dominava tudo oferecia uma experiência única para quem andava por ela, sentava em suas poltronas ou se esparramava pelo chão para folhear um livro.

Havia ainda seu cafés e seu teatro que completavam a magnitude daquele local que abrigou tantos lançamentos, tantos eventos, tantos espetáculos.

O fechamento da Livraria Cultura do Conjunto Nacional é o fim de uma era, quando os livros representavam mais do que o conhecimento neles contido, mas toda a experiência que proporcionam aos seus amantes. Entrar em uma livraria, em um sebo ou em uma biblioteca é como parar no tempo; é se transportar para longe da frieza do mundo; é como adentrar num universo paralelo, onde a barulheira, a correria e a fugacidade cotidianas não têm vez.

Essa experiência, porém, parece estar se extinguindo. A artificialidade promovida pela tecnologia está substituindo a humanidade naquilo que esta tem de mais precioso: sua relação direta com as coisas e com as pessoas. Hoje, há menos contato, menos conversa, menos permissão para, simplesmente, deixar-se levar pelo gozo de um livro, sentado despreocupadamente ante as prateleiras de uma livraria.

O fechamento da Livraria Cultura é um símbolo de uma realidade que está além dos próprios livros, mas que afeta toda a sociedade. Estamos, de fato, sendo menos humanos, principalmente quando nos afastamos cada vez mais das experiências reais, das coisas reais e das pessoas reais.

Choro pelo Monopólio Perdido

A velha imprensa anda muito agitada com a concorrência, principalmente aquela vinda de um setor que ela não domina: a internet. Quase em uníssono, os grandes nomes da mídia tradicional estão reclamando que as redes têm proliferado notícias falsas e violência verbal. Diante disso, insistem que medidas firmes sejam tomadas.

O interessante é que essa mesma velha imprensa que anseia por restrições se gaba de promover a diversidade e não cansa de louvar a democracia. Parece até que o objetivo dela é que todos tenham voz.

No entanto, bastou que ideias contrárias às suas começassem a se multiplicar e seu espírito democrático arrefeceu-se. Assustaram-se quando perceberam que muita gente tinha um discurso diferente do seu e não sabem bem como lidar com isso.

As empresas jornalísticas mais conhecidas do país, negando sua própria imagem de defensoras da liberdade, tomaram a dianteira dos pedidos de aplicação de ações contundentes contra as mídias independentes, com o objetivo de silenciá-las. Apontando, de maneira generalizada, aqueles que trazem notícias e emitem opiniões fora do círculos tradicionais, de promoverem a radicalização e de espalharem mentiras, apoiam os poderes estabelecidos para que a censura seja imposta.

Nos tempos que essa mesma mídia tinha o controle das narrativas, parecia estar tudo bem. Naquela época, ela acusava o governo de cerceamento e queria a liberdade plena. Qualquer ameaça ao direito de falar o que se bem entendia era visto, por ela, com horror e a possibilidade da imposição de procedimentos que o limitasse era rechaçada veementemente.

Enquanto havia apenas as mesmas concepções, compartilhando as mesmas ideias, elegendo os mesmos heróis e criando seus vilões, tudo andava em paz. Quando havia uma perspectiva única, que fazia com que apenas uma visão de mundo fosse exposta, ninguém falava nada. Bastou, porém, pensamentos diferentes e contrários aqueles que sempre foram ditos começarem a aparecer e o esperneio passou a ser geral.

A velha mídia acostumou-se a construir narrativas e não ser contestada por isso. Ela passou décadas criando as histórias que iriam moldar a mentalidade da sociedade sem ser questionada seriamente sobre suas intenções. Quando, então, a tecnologia começou a permitir que outras histórias surgissem, novas opiniões aparecessem e interpretações diversas sobre os fatos fossem dadas, suas mentiras e vieses começaram a aparecer, incomodando-a sobremaneira. Muitos de seus motivos foram expostos e isso lhe fez perder grande parte de sua credibilidade. Por isso, todo esse desespero.

Não é por acaso que esses velhos escravizadores das narrativas tentam passar a imagem de estar havendo uma radicalização, uma afronta ao debate civilizado. Como o contraditório lhes prejudicou, tentam fazer parecer que essa profusão de ideias diferentes não é a mera exposição de pensamentos livres, mas abusos da liberdade de expressão.

De fato, essa imprensa não quer diversidade, ela quer o monopólio para continuar direcionando as mentes, como sempre fez. Mimada que foi por mais de três décadas de uniformidade na linguagem, assustada com a constatação de que há ideias fortes e contundentes do outro lado, está desesperada ao ver que as mesmas pessoas que sempre foram subjugadas às suas narrativas agora só querem saber o que falam os veículos alternativos.

Isso não significa que não haja abusos na mídia independente. Pelo contrário, há uma profusão de veículos que só servem para confundir o debate público. No entanto, os males causados por estes não são piores do que as meia-verdades e desvirtuamentos praticados por aqueles que se aproveitam da imagem construída de fonte confiável.

A verdade é que esses que reclamam que a liberdade está sendo ameaçada não querem liberdade alguma. O que eles querem é o retorno do antigo monopólio. O que eles querem é impedir que ideias diferentes das suas circulem livremente e atinjam – como têm atingido – cada vez mais leitores. Até porque sabem que suas mentiras, agora que sua credibilidade está destruída, já não estão mais protegidas.