Categoria: Comunicação

Comunicação

Polidos selvagens

Não adianta nada, na vida privada, usar das expressões mais vulgares e não possuir nenhuma preocupação estética na construção das próprias frases que emite, mas exigir de governantes e autoridades que falem como lordes ingleses. Isto é hipocrisia.

Uma sociedade que incentiva o pudor linguístico público, inexistente em seus círculos íntimos, faz de seus cidadãos facilmente manipuláveis. Basta surgir um engravatado, falando suave, afável e educadamente, que todo mundo acha que tem o dever de respeitá-lo. Assim, quem quer foder a vida das pessoas sabe que só precisa aprender a falar bonito.

Exaltar demais a polidez na expressão faz da pessoa como uma donzela iludida, que prefere a doce voz do canalha ao jeito grosseiro do sincero. Gente assim se incomoda com a maneira de falar mais contundente de homens como Jair Bolsonaro e Abraham Weintraub, mas se submete a psicopatas como Lenin, Stalin, Mao e Fidel, que, ao mesmo tempo que tiranizavam multidões, sabiam se expressar graciosamente e demonstrar cortesia.

Vamos ser sinceros? A sensibilidade em relação à linguagem alheia geralmente é só jogo de cena; é apenas uma maneira de se fingir civilizado enquanto, junto aos familiares, amigos e colegas de trabalho, age e fala como um selvagem.

Postura diante de um falacioso

O governador João Dória é um cínico. Seus argumentos são falácia pura. Desmascará-lo, portanto, é obrigação de toda pessoa de bom senso.

Se você for como eu, tem uma vontade incontrolável de responder a altura quando ouve certos absurdos, como os que ele tem falado. O problema, é que, muitas vezes, essa resposta não vem. A gente sente que tem algo errado, mas não consegue identificar na hora o que é.

Por exemplo, quando o governador solta o seu famigerado “melhor confinado do que enterrado”, no mesmo instante, qualquer pessoa, minimamente inteligente, percebe que tem algo que não se encaixa nessa frase.

O problema é que, na hora, antes de vir a resposta, vem a indignação, e os argumentos contra o que foi dito parece que ficam entalados na garganta.

Por isso, quando você se depara com uma falácia desse tipo, é importante tomar algumas medidas, que lhe ajudarão a não ficar paralisado diante do absurdo. São medidas que lhe darão certo traquejo, colaborando com que você responda à altura as idiotices que se ouve por aí.

O que eu lhe digo é o seguinte: com um pouco de treino retórico é possível destruir todos esses tipos de falácias.

Por isso, aqui vão quatro medidas claras e objetivas, que servirão sempre nesses casos.

A primeira coisa que você precisa saber é que desmascarar um argumento falacioso não é algo tão complicado. Falhamos nisso, muitas vezes, porque nos deixamos levar pelo sentimento. Às vezes, o argumento é tão sem vergonha, tão claramente cínico, que paramos de raciocinar, deixando a raiva dominar.

E esta é uma regra básica de qualquer debate: NUNCA SE DEIXE LEVAR PELA RAIVA.

Uma pessoa tomada por ela sai do modo racional para entrar no modo instintivo. Neste momento, o raciocínio não funciona direito e a única vontade que temos é de revidar, com os instrumentos mais primitivos, aquilo que detectamos como uma afronta.

Portanto, mantenha a calma, sempre. Mesmo quando do outro lado tenha um safado, que usa a retórica apenas para nos irritar. Autocontrole, neste caso, é essencial.

Feito isso, também É ESSENCIAL NÃO SE DEIXAR LEVAR PELAS PRIMEIRAS IMPRESSÕES. Isso porque um argumento falacioso aposta exatamente nelas para ser aceito.

O que é uma falácia senão a mera aparência de verdade? Como ela não pode convencer pela veracidade do que diz, aposta na ilusão, causando uma impressão de realidade.

Além do mais, a falácia costuma apelar para elementos extra-discursivos. A emoção é um dos preferidos. No caso da fala do governador, o contraste entre isolamento e morte é forte, mexe com um sentimento elementar, que é o instinto de sobrevivência.

Por isso, para não ser enredado pelo discurso falacioso, É IMPRESCINDÍVEL CRIAR O HÁBITO DE NUNCA PERMITIR QUE A EMOÇÃO INFLUENCIE O JULGAMENTO. Acostume-se a avaliar as razões puras e isole as sensações que elas despertam em você.

Isso é imprescindível para se pensar direito.

Por fim, ESTUDE RETÓRICA E ARGUMENTAÇÃO. Estas são duas áreas da comunicação geralmente deixadas de lado, em prol da persuasão e da oratória, mas que, quando bem estudadas, tornam-se uma arma poderosa em favor do orador e do debatedor.

Por exemplo, um estudioso de retórica e erística logo identificaria a falácia do falso dilema exposto por João Dória.

Para que você entenda: pelo falso dilema, duas opções são colocadas como as únicas alternativas possíveis, ignorando todas as outras gamas de possibilidades existentes.

No caso do confinamento x morte é exatamente isso o que acontece. Porque já está mais do que provado que, para uma pessoa fora do grupo de risco, a chance de morrer por causa do vírus é mínima. Na verdade, é algo probabilisticamente irrelevante.

Sendo assim, quem deixar o confinamento não vai morrer necessariamente. Pelo contrário, dificilmente morrerá.

Portanto, não se trata de um dilema.

Portanto, o governador engana, fingindo que se trata de uma bifurcação inescapável.

No entanto, infelizmente, muita gente não percebe isso. Mas nós, que temos um compromisso com a verdade, com a inteligência e com a justiça, temos a obrigação de perceber.

Assim, preparar-se para enfrentar essas falácias é nosso dever.

O tom emocional do manipulador

Quando a intenção é convencer que o problema da epidemia é sério, os patrocinadores do pânico não economizam as expressões mais agudas. Assim, deixam claro, para a plateia descrente, o quanto é preciso estar convencido da gravidade da situação.

Nessa cavalgada apocalíptica, não se satisfazem com a mera descrição dos fatos (principalmente, porque esses fatos não corroboram seu alarmismo), mas laçam mão de um tom extremamente dramático, com o intuito, não de informar, mas de chocar o ouvinte ainda resistente ao pânico.

O tom usual é o mais emocional possível. O objetivo é despertar sentimentos histéricos. Recorre-se então a frases de efeito que constranjam o interlocutor a render-se ao sentimentalismo obrigatório, sob pena de ser tachado de insensível.

Não são meros arroubos retóricos, mas escolhas de expressões muito bem selecionadas selecionadas, com o intuito de revelar o quanto é sensível o seu pronunciador e frígido quem não embarca em sua jornada de horror.

“Famílias dilaceradas”, em vez de “mortes”; “epidemia devastadora”, em vez de “doença séria”; “choramos as vidas interrompidas”, em vez de “lamentamos os falecimentos” – são exemplos de escolhas de formas de expressar, que têm o claro objetivo de causar impacto, não expor uma realidade.

O fato é que a definição da forma de expressão indica as intenções de quem fala. O tom retórico impingido denuncia o intuito disfarçado.

Em geral, o uso da emoção é recurso retórico legítimo. Porém, quando usado não como mera ênfase, mas como forma de desenhar, com traços ainda mais dramáticos, uma situação que já é séria, sinaliza um propósito manipulatório.

Uma pessoa honesta respeita os fatos, dando a cada um deles a denominação devida. Um manipulador ultraja-os, manejando-os de maneira a servirem seus interesses.

Por isso, esteja atento a quem descreve os fatos com entoação muito catastrófica. Se o discurso for excessivamente emocional, pode ter certeza que por trás dele há alguém tentando lhe manipular.

A gripezinha de Bolsonaro: uma lição de oratória

Bolsonaro não disse que o coronavírus era uma gripezinha. Quem afirma isso, age de má-fé ou então sofre da mesma tendência que a média dos ouvintes brasileiros: a de se deixar levar pela impressão do que ouvem ou lêem.

O que o presidente disse é que, em síntese, para uma pessoa com imunidade alta, o coronavírus provavelmente vai ser como uma gripe ou até mesmo um resfriado – a pessoa mal vai sentir que teve.

Bom, isso é o que os próprios especialistas dizem, inclusive, colocando a imunidade baixa como uma das maiores causas para a complicação com a doença.

No entanto, a fala de Bolsonaro foi mal interpretada não apenas por causa da deficiência dos ouvintes, mas também pela falta de traquejo oratório do presidente.

Bolsonaro cometeu dois erros oratórios clássicos: deixou subentendido um ponto importante de sua fala, além de dar ênfases à palavras erradas, em seu discurso.

Eu sempre aconselho meus alunos a deixar o mínimo possível de ideias subentendidas. Brinco com eles que o melhor é tratar o público como estúpido, sempre esperando que ele não vá compreender o que está sendo dito. A gente pode se surpreender como ideias subentendidas, que parecem tão óbvias, podem passar desapercebidas pelas pessoas.

Assim, quando Bolsonaro fala sobre gente como ele, com um histórico de atleta, ele está deixando subentendido a ideia de pessoas com boa saúde e, consequentemente, com provável sistema imunológico saudável. No entanto, essa é uma inferência que poucas pessoas conseguem fazer. A maioria vai apenas interpretar isso como se ele estivesse se gabando e menosprezando a força da doença.

O certo seria ele explicar isso, completando a frase, dizendo “Pessoas como eu, com um histórico de atleta, POR TER A IMUNIDADE MAIS ALTA, provavelmente não sentirão nada se contraírem essa doença”. Ao referir-se a imunidade, ele deixaria claro sobre o que ele está falando.

O fato é: jamais confie na capacidade de inferência de seu auditório.

O segundo erro oratório de Bolsonaro deu-se na ênfase errada. Explico: uma das características principais da arte oratória é saber destacar bem algumas palavras e as ideias, além de atenuar outras. Para isso, o orador precisa fazer com que palavras importantes se destaquem e que as incômodas se escondam.

Por exemplo, em seu discurso em cadeia nacional, o presidente disse a seguinte frase: “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus, não precisaria me preocupar. Nada sentiria ou seria, quando muito, de um GRIPIZINHA ou RESFRIADINHO, como bem disse aquele conhecido médico, daquela conhecida televisão”.

Conforme eu destaquei, a ênfase dada pelo presidente foi às palavras gripizinha e resfriadinho, fazendo com que elas soassem mais fortes do que as outras. No entanto, essas eram exatamente as palavras mais incômodas. Sendo assim, elas deveriam ter sido faladas em um volume mais baixo e de forma mais veloz, como se fossem algo sem importância. O que o presidente fez foi exatamente o contrário.

O destaque deveria ter sido dado, considerando o que ele disse, às expressões CONSIDERANDO O MEU HISTÓRICO DE ATLETA e CASO FOSSE CONTAMINADO. Melhor ainda, se ele tivesse falado sobre a imunidade, como eu apontei. Caso tivesse feito isso, a referência à gripe teria causado menos impacto e passado uma impressão menos ruim.

Como vocês podem ver, oratória envolve também entender como funciona a apreensão que as pessoas fazem daquilo que é dito. Afinal, essa apreensão é o objetivo mesmo da oratória.

O que é mais persuasivo

Nada convence mais do que a verdade. Esta parece uma frase óbvia, e até batida, mas é preciso ser repetida, principalmente em tempos quando se pensa que persuadir é o objetivo final de tudo.

Vivemos tempos mercadológicos. Tudo, hoje, virou produto. E, independentemente das questões valorativas em relação a isso, o fato é que, em épocas como esta, o que impera é a utilidade, o pragmatismo, o resultado. E o resultado é, nada menos, que a ação do outro em meu favor. O objetivo último de nossos dias é fazer com que os outros adquiram, comprem, aceitem, tomem, obtenham aquilo que temos a oferecer – seja um objeto, um negócio, um curso, uma ideia etc.

A persuasão tornou-se o objetivo. Os meios para isso irrelevantes. Se, no fim, o outro aceitar fazer o que eu estou lhe propondo, é isso que vale.

Agora, imagine essa mentalidade suportada por uma era pavloviana, que tem a firme convicção que o ser humano não é nada mais do que um animalzinho reativo, talvez apenas um pouco mais inteligente que os outros.

O resultado é todo mundo usando todo tipo de artimanhas persuasivas, principalmente aquelas que provoquem o instinto do indivíduo para que ele aja de acordo com a vontade do manipulador.

E a verdade nisso tudo? A verdade é dispensável. No processo persuasivo, a verdade é a ação buscada e se o ouvinte age de acordo com o proposto, esta passa a ser a verdade entre as partes. Dentro da mentalidade dos nossos dias, isso basta.

A questão é que tratar os homens como meros bichinhos reativos é um erro. Somos mais que isso. Possuímos a razão e ela é o que temos de superior, a diferença específica que nos torna capazes de não apenas corroborar uma verdade, mas de explicá-la. É a razão que nos leva para além das meras impressões iniciais e nos permite ter alguma estabilidade em relação ao mundo que nos cerca.

O coração dos homens não se alcança diretamente, mas por meio de suas cabeças. E ainda que os sentimentos deem alguns sinais, é na razão a confirmação de que esses sinais estão corretos.

E se a razão confirma essa verdade é porque a verdade já estava lá.

Por isso, quando alguém fala a verdade, isso vai ao encontro das convicções mais profundas de cada ser humano. Ele pode até não entender isso, mas a verdade lhe toca. Ele pode até brigar contra isso, mas, lá no fundo, a verdade lhe incomoda.

Por isso, no fim das contas, não existe nada mais persuasivo do que a verdade.

Assim, quem quer alcançar a adesão de seus interlocutores, mais do que esforçar-se por lançar mão de técnicas de manipulação, deveria preocupar-se simplesmente em ser veraz.

Compromisso com a realidade

Ninguém precisa ser isento, basta ser exato; não é preciso ser neutro, basta ser fiel. Toda pretensão de isentismo e neutralidade é ilusão ou má intenção mesmo.

Ainda que não concorde com a radicalização que os analistas do discurso fazem, de praticamente ignorarem os argumentos para dar atenção apenas às circunstâncias que o envolvem, eu não posso negar que toda manifestação carrega, atrás de si, algo mais do que os argumentos em si mesmos. Estão ali as crenças, as convicções e até os interesses de quem fala.

E não há nada de mal em que as coisas sejam assim. A sociedade desenvolve-se exatamente no confronto dessas visões diversas e muitas vezes antagônicas. Visões que se repelem, mas também que podem se completar.

Assumir que toda manifestação possui um universo de ideias, fatos e experiências por trás é apenas constatar uma obviedade.

Isso não significa, porém, que toda manifestação precisa ser, de tal modo, direcionada por essa conjuntura prévia, a ponto de que a fala em si, os argumentos apresentados e mesmo os fatos narrados não possam ser considerados por suas próprias razões. Não é porque toda fala carrega um conjunto de concepções prévias que ela não pode ser confiável por si mesma.

Quem discursa não precisa ser imparcial, só precisa ser honesto. Seu primeiro compromisso é não esconder suas intenções por trás de uma máscara de de neutralidade. Se busca algum resultado, se quer causar algum efeito, que seja claro quanto a isso.

O outro compromisso do argumentador é com a realidade em si. Independentemente de sua ideologia, de seus interesses, de sua fé, os fatos são os fatos. Inventá-los, sob o pretexto de visão pessoal, não deveria ser uma opção.

Obviamente, eu sou plenamente consciente das dificuldades que as nuances e ambiguidades da linguagem proporcionam. No entanto, conheço bem suas possibilidades para afirmar que é possível, sim, usá-la de maneira íntegra e confiável.

Linguagem e realidade

A linguagem é poderosa, mas o poder que ela oferece aos homens está menos na capacidade de expandirem suas perspectivas em relação ao mundo do que na possibilidade de inventariá-lo.

A maior força da linguagem reside no fato de ser um instrumento de descrição, tornando possível a discriminação das coisas. Com isso, permite a cada indivíduo organizar seu próprio mundo interior, integrar a realidade externa a esse mundo e tornar inteligível, para os outros, a realidade como percebida individualmente. Nisto está a base da vida comunitária e o fundamento de qualquer sociedade.

No entanto, a linguagem tem um aspecto limitador. Isso porque existe a realidade, que é ampla, complexa e cheia de nuances e existe a linguagem, que se refere a ela, mas que não pode descrevê-la totalmente. Há muitos aspectos da existência, como sentimentos, experiências, percepções e sutilezas que a linguagem não alcança, sendo, neste ponto, uma forma de restrição. Qualquer pessoa que já teve alguma convicção e não conseguiu traduzi-la em palavras sabe do que eu estou falando.

A linguagem é, provavelmente, a maior arma do ser humano. Porém, jamais se deve perder de vista que ela só existe porque há uma realidade para a qual aponta e da qual depende.

O limite da beleza na escrita

Na escrita – que me desculpem aqueles que não sabem escrever – mas beleza é fundamental. Não apenas porque um texto bonito é bonito – e a beleza não precisa de justificativas – mas porque um texto esteticamente bem apresentado adquire um poder de convencimento maior.

No entanto, há uma linha muito tênue que separa uma escrita bonita de uma afetada e nem todo escritor tem sensibilidade para identificá-la. É uma fronteira que se ultrapassa sem perceber e, quando se dá conta, o que se configurava belo se transforma em algo pedante, exagerado, forçado.

A beleza em um texto é, de qualquer forma, um adorno e, como tudo o que é bonito, possui uma medida. São como seios: aparentemente, quanto mais evidentes, mais belos, até que se descobre que, a partir de determinado tamanho, o que era bonito fica esquisito.

É que a beleza tem uma característica essencial: a proporção. Quando esta é ignorada, o escritor perde a mão do seu texto; é quando suas palavras perdem a naturalidade; quando a estética se sobrepõe ao conteúdo.

É na identificação do limite entre beleza e o exagero que reside a arte da escrita e saber caminhar sobre essa linha a principal qualidade do escritor.

Naturalidade conquistada

Quem quer ser ouvido precisa expressar-se com naturalidade. É ela que toca os corações, que mexe com a alma. Espíritos humanos são despertados por manifestações de espíritos humanos. Portanto, só a expressão natural alcança o outro.

As pessoas parecem que possuem um filtro contra a artificialidade. Elas percebem quando alguém está apenas sendo uma mera imitação. Em geral, não se abrem quando percebem que a expressão é só uma cópia.

Há, em todos nós, uma sede por sinceridade. Ninguém quer ser enganado e todos querem ter certeza que o que estão ouvindo é a expressão sincera da alma de quem está falando.

No entanto, é mais fácil fingir, imitar, emular. A cópia exige apenas repetir os movimentos exteriores, os mecanismos superficiais. O exercício mimético não pede nenhum aprofundamento, nenhuma compreensão da essência.

A naturalidade, por seu lado, requer um mergulho interior profundo. Só quem entende bem quem é e o que realmente quer pode expressar-se naturalmente. Ser natural exige espontaneidade e esta só é verdadeira quando acompanhada de autoconhecimento.

Por isso, tantos expressam-se com afetação, com falsidade. Entre o esforço, muitas vezes dolorido, de autocompreensão e a mera prática mecânica da imitação, escolhem esta sem hesitação. E, por isso, não tocam os corações, não falam com as almas. No máximo, alcançam aquelas mesmas pessoas que, como eles, são superficiais. Quanto aos que têm um mínimo de sensibilidade: a estes não convencem.

A verdade é que a naturalidade se alcança, sendo o resultado de um esforço de compreensão de si mesmo e do conhecimento das técnicas necessárias para que ela se manifeste. Ser natural é a capacidade de espelhar a própria alma, e isso não surge naturalmente, se conquista.

Escrever, um ato de coragem

As idéias, quando na cabeça, são fluidas. Por causa do dinamismo de nossos processos mentais, costumam ser movediças, incertas, cheias de oscilações. O que mantemos no pensamento é, por isso, móvel, sempre passível de atenuações e acréscimos.

Apesar da instabilidade consequente do processo dinâmico de nossa mente, é exatamente isso que nos permite pensar muitas coisas, possibilitando a abordagem de conjunturas complexas e variáveis. Se não fosse assim, o que poderíamos conhecer seria muito pouco.

Mesmo que a riqueza da mente dependa da dinâmica de seu processo, as idéias anseiam estabelecer-se, encontrar seu lugar no mundo. Enquanto vagam na fluidez dos pensamentos, parecem adquirir um mero quase-ser, uma potência que promete assumir uma existência, mas que ainda não é.

Apenas quando exteriorizados, quando postos para fora do universo cerebral, é que os pensamentos começam a tomar uma forma mais estável. Enquanto na mente, parecem possuir apenas um querer-ser. Quando verbalizados é que assumem um compromisso com a realidade.

A verbalização estabiliza o pensamento, contudo, carrega um ônus: o comprometimento do emissor. Ninguém é criticado pelo que pensa, mas pelo pensamento que expõe. Verbalizar é também assumir uma responsabilidade com o que se diz. Palavras emitidas ganham identidade. Não são mais idéias livres, descompromissadas, como quando estão apenas na mente. Agora, são as idéias de alguém; idéias que identificam a pessoa.

De qualquer forma, a verbalização, quando é meramente oral, ainda retém algum privilégio de provisoriedade, pois o que é falado pode ser posto na conta do momento, da má escolha, da emoção. A linguagem falada nunca é definitiva. É sempre uma intenção, um direcionamento, um desejo.

Apenas a palavra escrita assume a condição de verdadeira estabilidade. O escrito pressupõe a devida reflexão, a possibilidade de revisão antes de sua exposição, a certeza do que se quer dizer. Quem escreve teve tempo de pensar e sabe que está assumindo um compromisso com que está disponibilizando para ser lido. O escritor sabe que a desculpa do instante, da paixão, da pressa e da leviandade não lhe cabem.

Escrever é, no fim das contas, expor-se definitivamente; é um caminho sem volta. A escrita é a materialização do pensamento e a solidificação das idéias. Quem escreve se abre, se oferece para a crítica, se desnuda para o mundo. Por isso, escrever é um ato de coragem – quando não, de pura imprudência.