Categoria: Artes e Cultura

Cultura

Análise dos Dois “São Mateus” de Caravaggio

Costumamos criar uma imagem relativa a cada período histórico, como se fosse um filme projetado numa tela ou um quadro pendurado na parede. Para cada época concebemos uma visualização característica e a julgamos conforme essas cenas. Tais épocas tornam-se, assim, como momentos estanques, como se a passagem de uma para outra se desse como que virando páginas em um álbum de fotografias.

Julgamos os tempos, muitas vezes, sem considerar os períodos anteriores, nem mesmo os mais imediatos. Sendo assim, tendemos a acreditar que certas características pertencem exclusivamente a uma época e não a outras. Mais ainda, ignoramos os períodos de transição, como se o advento de certas formas de pensamento e comportamento surgissem de repente.

No entanto, nenhum momento histórico retira suas energias e espírito de si mesmo. Geralmente, ele foi alimentado por longos períodos de maturação de determinadas ideias e circunstâncias. O que vemos florescer em uma época, não raramente, foi semeado séculos antes, passando por um processo de crescimento que permite ser contemplado somente quando já está maduro suficiente para se estabelecer.

O Renascimento é um desses períodos. Os saudosos da Idade Média costumam tê-lo como o início da decadência espiritual e intelectual do Ocidente. Vêem nele o centralismo do homem, a relativização dos costumes, o enfraquecimento da autoridade eclesiástica e concluem que se trata do momento da história quando iniciamos nossa derrocada cultural. Porém, quando investigamos a intelectualidade renascentista e observamos suas manifestações, testemunhamos homens que ainda vacilavam entre os motivos do período anterior e as novas concepções. Vemos neles pessoas que ainda procuravam manter a sujeição ao transcendente, mas que já não podiam abrir mão da autonomia epistemológica que haviam começado a experimentar.

Tecnicamente, considero o Renascimento como a verdade Idade Média, como o período de passagem da era teológica para a era científica. Em todos os renascentistas observa-se ainda fortes elementos do passado medieval, principalmente sua sujeição ao temas escriturísticos e seu esforço por harmonizá-los às novas maneiras de encarar a realidade, mas com maneiras que seriam inconcebíveis na Idade Média, como a reivindicação de completa autonomia na investigação da verdade, a partir da natureza.

Entre tantos elementos que poderiam representar o Renascimento, considero os dois quadros de Caravaggio, intitulados “A Inspiração de São Mateus”, e as circunstâncias que lhe envolveram como um exemplo perfeito da luta que havia no espírito renascentista entre o passado e o futuro. A impressão que eu tenho, ao refletir sobre as circunstâncias dessas obras, é que o pintor, ainda que forçosamente, expôs ali todo o conflito que havia entre a concepção antiga e a nova.

Conta a história oficial que “A Inspiração de São Mateus” foi encomendada pelos religiosos da Capela de São Luis dos Franceses, de Roma. Segundo essa versão, Caravaggio apresentou um primeiro quadro que fora rejeitado pelos eclesiásticos. Então, teria ele pintado um outro, com o mesmo tema e, este sim, teria sido aceito. Há outras versões dessa história, mas, ainda que ela não seja completamente verdadeira, serve bem para os meus propósitos de mostrar que Caravaggio apresentou conscientemente duas pinturas que se chocam em suas perspectivas e mensagens.

Fiz uma análise de cada aspecto que me chamou a atenção e comparei-os:

Considerando as duas pinturas, observamos que, na primeira, o apóstolo e o anjo estão num mesmo nível, indicando uma parceria entre Deus e os homens na documentação do Evangelho, enquanto, na segunda, o anjo encontra-se num nível superior, fazendo da Revelação uma obra exclusivamente divina; na primeira pintura, as mãos do anjo parecem conduzir suavemente o apóstolo, como se ambos estivessem, juntos, construindo a narrativa, enquanto, na segunda, o anjo transmite um ditado exato, mostrando com os dedos a exatidão do que está falando; na primeira pintura, o apóstolo parece refletir sobre o texto que está sendo escrito, enquanto, na segunda, ele parece apenas preocupado em reproduzir o que lhe está sendo exposto; na primeira pintura, a expressão do apóstolo é de alguém que está absorto no sentido das palavras que estão sendo escritas, na segunda, sua expressão é de respeito e até temor; na primeira pintura, o apóstolo está confortavelmente sentado, com as pernas cruzadas, mostrando estabilidade e segurança, enquanto, na segunda, ele se apóia apressadamente sobre um banquinho que, inclusive, está mal posto no chão, com um dos seus pés flutuando, o que dificilmente pode-se dizer que representa um estado de reflexão.

A impressão que as composições das obras de Caravaggio me passam é que o segundo quadro fora pintado quase como uma crítica à rejeição do primeiro. Usando de sua genialidade, o pintor italiano teria feito uma representação de um santo afoito e servil, talvez para transmitir a ideia de que isso resumiria a visão dos próprios religiosos que encomendaram o trabalho. O mais interessante é que, pelo que tudo indica, a segunda pintura foi aquela que agradou os clérigos, por ser, segundo a visão deles, mais condizente com a santidade do apóstolo, ainda que o único indicativo explícito dela fosse a auréola acima da sua cabeça.

Obviamente, estou tratando das impressões de uma pintura. Nem sequer estou adentrando em qualquer interpretação simbólica, mas apenas daquilo que ela me transmite diretamente. E, sendo assim, não consigo me furtar da sensação que tenho, comparando-as, de que a segunda obra tem um tom crítico que foi ignorado por quase todo mundo, inclusive pela posteridade.

De qualquer forma, eu vejo nessas duas pinturas um reflexo da mentalidade renascentista, que oscilava entre os motivos religiosos e a crescente busca por autonomia e individualidade, entre a manutenção do senso de hierarquia e autoridade e a liberdade epistemológica quase anárquica. Como eu afirmei acima, todo tempo é uma mescla do que foi e do que há de ser e o Renascimento não me parece ter sido diferente.

Enquanto a Guerra Durar

ara quem não tem a reflexão como um aspecto essencial de sua vida é muito difícil entender o drama que representa, para um escritor, a relação da expressão dos seus pensamentos com a complexidade contraditória da vida cotidiana, especialmente da política.

A vida intelectual, desenvolvida em grande parte no mundo das ideias, tende a abstrair os problemas reais, e o pensandor, quando se depara com esses problemas, pode assustar-se com a dissonância entre eles e suas próprias especulações.

O filme “Enquanto a guerra durar” mostra bem essa aflição. Nele está retratada a tensão existente, em um intelectual, entre sua necessidade de escrever sobre a realidade que observa, ao mesmo tempo que testemunha os caminhos contraditórios que ela toma, muitas vezes se opondo àquilo que foi escrito.

Não há nada mais caro para um filósofo do que sua coerência e nada mais angustiante do que vê-la ameaçada, quando as análises feitas sob certas circunstâncias parecem equivocadas, ao serem confrontadas com a experiência real.

A obra de Alejandro Almenábar trata disso e consegue transmitir a contínua e silenciosa ansiedade que toma conta do pensador Miguel de Unamuno por causa do progressivo contraste que vai se apresentando entre seus princípios intelectuais e suas opções – ainda que ocasionais – políticas.

Apesar do roteiro de “Enquanto a guerra durar” ocultar a confusão e violência promovidas pelo esquerdismo espanhol – o que conduzia o país ao caos – enfatizando a reação franquista, com sua óbvia virulência, o foco do filme é principalmente voltado para a aflição de Unamuno – e ele a mostra muito bem, apesar de certo lirismo e discrição.

Miguel de Unamuno apoiou o início do movimento liderado pelo general Francisco Franco por entender que era preciso fazer algo para conter a anarquia promovida pelos ‘rojos’ republicanos. No entanto, o fascismo franquista logo mostrava para o escritor que esse apoio estava sujeito a muitas ressalvas.

Na política, geralmente, é assim: apoiar o grupo que se levanta contra o mal evidente não significa apoiar o bem, mas o mal menor. Aliás, política é a contínua escolha pelo mal menor. No entanto, este mal, muitas vezes, é só um pouco menor que o mal maior, ou seja, contém muito de mal em si mesmo e apoiá-lo, seja qual for sua intensidade, vai contra os valores de qualquer pensador minimamente honesto.

A coerência é um patrimônio inegociável para um intelectual. Portanto, a falta de linearidade, a ambiguidade moral e a incerteza quanto às motivações, que tanto caracterizam os movimentos políticos e sociais, podem ser inquietantes para ele. Por isso, o filme “Enquanto a guerra durar” merece louvor, afinal, tem o mérito de captar essa angústia de forma sensível e profunda.

Artes e Cultura de Massa

A cultura de massa sempre foi criticada pela intelectualidade. Tornou-se lugar comum apontar a arte submetida a processos industriais como um rebaixamento cultural. Deu-se até um nome para o produto disso: kitsch.

Os grandes vilões, que sempre foram apontados como os responsáveis pelo florescimento do kitsch, eram os capitalistas. Foi o desejo de lucro que os críticos da cultura de massa denunciaram como o motivo de uma arte apenas preocupada em vender-se.

A lógica da cultura de massa foi identificada com a mesma lógica do processo capitalista: busca-se atingir o maior número de pessoas e, para isso, padroniza-se o produto, ajustando-o aos desejos e necessidades do consumidor.

Obviamente que esse processo de padronização leva a arte a diminuir-se, afinal, menos espaço sobra para o gênio, para o toque individual, que geralmente entram em conflito com o gosto da maioria.

Com a internet, surgiu a expectativa de que o processo da cultura de massa pudesse ser rompido. O artista, agora, não mais dependeria da lógica do mercado, à qual está submetido o capitalista financiador, e que acaba determinando como a obra deve ser oferecida ao público.

A internet trouxe a esperança de que o artista, finalmente, teria a oportunidade de ser ele mesmo, já que não mais sujeito às necessidades mercadológicas, podendo deixar transparecer sua originalidade e criatividade.

No entanto, o artista pode até não ansiar pelo lucro, mas precisa de reconhecimento. Ele não faz arte apenas para si. Todos esperam que a obra seja recepcionada e elogiada pelo público. Se as pessoas não reconhecem uma obra artística, seu destino é ser esquecida.

Diante disso, o artista acaba caindo no mesmo ciclo que movia o capitalista, ainda que por outros motivos. Ele precisa, se quiser ser visto, de alguma maneira, adequar-se ao público.

O problema é que o gosto das massas é sempre medíocre, porque equalizado pelo número. A lógica é simples: quanto mais pessoas se deseja alcançar, menos requinte, menos sutileza a arte pode ter. Para ser reconhecido pelo público, então, o artista abre mão de sua expressão genial, espontânea e verdadeiramente autoral, para ser, como era quando bancado por um financiador, um produto a ser consumido.

Dessa forma, o público guia a cultura, exigindo dela que jamais ouse ir além do que ele quer, sob pena de ignorá-la, de deixá-la ao esquecimento. Não são mais os artistas que dizem o que é melhor, são as massas que o determinam.

Quando as artes eram financiadas pelos empresários, pelo menos, podia haver a influência da autoridade, que pela força do dinheiro e do prestígio “ensinava” o público o que era bom e deveria ser consumido. Era possível, com isso, às vezes, que a genialidade aparecesse.

Agora, porém, quando não existem mais os mecenas e a arte “democratizou-se”, resta ao público decidir o que é desejável. E, sendo massa, ele sempre vai escolher o mais fácil, aquilo com que ele se identifica.

O artista que ousa ser original tem pouquíssima chance de resplandecer, porque lançará sua obra numa floresta cheia de seres bárbaros, incapazes de reconhecer a diferença estética entre uma escultura de Rodin e um anão de jardim, prontos a consumir tudo como se fossem bananas.

Sobram os corajosos, que lançam trabalhos verdadeiramente independentes e originais. E os há! Estes, porém, têm de torcer para que, pelo menos, aquela parcela do público que é capaz de compreendê-los e admirá-los os encontrem e ofereçam o mínimo de reconhecimento que todo bom artista merece.

Darkest Hour

A vantagem de seguir a multidão é não ter de assumir a responsabilidade caso as coisas dêem errado. Enquanto a decisão for do grupo não é você o culpado pelas desgraças oriundas dela.

As decisões em grupo tendem a seguir o óbvio porque elas não costumam ser fruto do gênio, mas da deliberação, que invariavelmente ajusta-se à mediocridade. Decisões grupais costumam ser pequenas, óbvias, sem grandes riscos. Exatamente por isso, não poucas vezes, são burras. Por outro lado, grandes decisões precisam ser heróicas, corajosas, arriscadas. Para tomar grandes decisões quase sempre é preciso escapar do lugar comum.

No filme “Darkest Hour” vemos Winston Churchill diante do dilema de seguir a obviedade do que um grupo de notáveis lhe apresentava como solução e suas próprias convicções, praticamente incompreensíveis para todo mundo. Chamberlain e o Visconde de Halifax haviam conduzido quase todo o conselho de Guerra, diante do extermínio iminente de praticamente todo o exército britânico diante das tropas alemãs, a buscar uma solução de paz com os inimigos, o que significaria uma rendição completa. Churchill, porém, mesmo diante dos fatos desoladores, entendia que não se devia negociar com o inimigo, principalmente nessas condições. “Você não pode ser razoável com um tigre quando sua cabeça está dentro da boca dele” foi a frase colocada em sua boca. E para tomar a decisão de não se render a Hitler, precisou agarrar-se teimosamente às suas convicções e é nisso que se encontra o seu heroísmo.

O que o filme retrata é exatamente essa força heroica – e todo o desafio que isso envolve – que enfrenta o poder persuasivo de um grupo que tem os fatos ao seu lado. A maior disputa que uma convicção pode encarar é a da oposição da multidão. Enquanto na cabeça, ela está protegida, mas quando desafiada pelo grupo é que mostra se realmente está bem estabelecida. As convicções de Churchill estavam bem estabelecidas porque baseadas num valor superior, que era a independência da Inglaterra. Ele sabia que se o país se rendesse, não sobraria mais nada dela.

Não que uma convicção precise ser tão rígida a ponto de não sofrer oscilações. Inclusive, “Darkest Hour” as mostra muito bem. Porém, são nos momentos de maiores dúvidas que surge aquilo que costuma salvá-la. No caso do primeiro-ministro, na hora de maior desespero, surgem o rei e o povo para dar a ele o apoio que precisava para enfrentar os políticos e burocratas.

Apesar de “Darkest Hour” retratar um Winston Churchill um tanto mais excêntrico e um tanto mais vacilante do que ele deve ter sido na realidade, o filme acerta ao transmitir toda a luta que um indivíduo pode enfrentar ao se colocar contra a força do grupo, principalmente nos momentos de maior crise, naquelas horas mais escuras.

Cultura de Massa

Os marqueteiros dizem que quem quer ser ouvido precisa falar o que o público quer ouvir; precisa, por isso, achar o seu nicho, onde suas ideias encontrarão guarida, onde elas serão bem recebidas. Quem busca reconhecimento, portanto, não deve pretender ser original, pois o aplauso nada mais é do que uma reação quase instintiva do aplaudidor ao reconhecer suas próprias ideias na fala do orador.

Opiniões não são aconselháveis, a não ser que elas repliquem a opinião pública. Afinal, as pessoas não suportam escutar aquilo com o que não concordam e levantam-se ardorosamente contra as ideias que estão fora de seu campo de aceitação.

Isso porque as pessoas estão satisfeitas com os resultados que elas, como massa, alcançaram. Afinal, aprenderam a manipular os elementos da civilização com destreza, mesmo não entendendo nada do processo histórico que a formou. São técnicos, são peritos, muitas vezes competentes, mas completamente ignorantes dos princípios que sustentam essa mesma civilização.

Elas também estão satisfeitas consigo mesmas. Olham para o mundo ao seu redor e sua prosperidade e tecnologia e acreditam, sinceramente, que isso tudo é mérito seu. Admiram o ambiente que as cerca, vêem nele o reflexo de sua própria capacidade e louvam a si mesmas, camuflando esse louvor com elogios ao seu próprio tempo, implicitamente, ao condenarem o passado como ultrapassado.

De fato, as pessoas admiram aquilo com que se identificam. Por isso, são incapazes de transcender-se; incapazes de gostar de algo que esteja fora do seu círculo de interesses.

Aqueles que ousam ultrapassar as fronteiras desse mundo auto-lisonjeiro são tidos por excêntricos. Quem não pensa sob as mesmas categorias da mente comum, manifestando os mesmos interesses e expressando pensamentos que se encaixam no imaginário vulgar é visto como um alienígena.

É assim que a massa se transforma em dirigente cultural: impondo, por meio da força do mercado, o que deve ou não ser publicado. Além disso, ela também determina a forma como o autor deve se comunicar com a audiência. Desse modo, “o escritor, ao começar a escrever sobre um tema que estudou profundamente, deve pensar que o leitor médio, que nunca estudou o assunto, se o vier a ler, não será com o fim de aprender alguma coisa com ele, mas sim, ao contrário, para condenar o autor, quando as ideias deste não coincidirem com as vulgaridades que tal leitor tem na cabeça” (ORTEGA).

A cultura, então, estagna-se, pois, sendo autofágica, não permite que ideias que ousam ultrapassar os limites habitualmente estabelecidos surjam. Assim, o papel principal do pensador, que é arriscar-se em campos perigosos, fica interditado.

Identificar o que as pessoas querem ouvir e moldar o discurso para obter sua aprovação tornou-se a única atividade distinguível entre a classe dita intelectual. O resultado desse movimento circular é amaldiçoar a inteligência àquilo que ocorre a tudo o que não evolui, a tudo o que se mantém estagnado: a corrosão.

O Flaubert da minha juventude

Não somos os mesmos de quando éramos jovens. Tudo muda: a forma de ver o mundo, a personalidade trabalhada pelas experiências, a capacidade de perceber o que antes parecia impossível e, especialmente, a forma de ler os livros.

Muitas das minhas leituras de juventude foram feitas sem a capacidade, que tenho hoje, de interpretação e de captação das sutilezas. Por isso, foram leituras defeituosas, muitas delas feitas com um esforço muito maior do que o recomendável para uma boa absorção do conteúdo.

As leituras juvenis são excelentes, pois, apesar de suas falhas, preparam-nos para a vida intelectual da maturidade. Contudo, elas podem acarretar um problema, no qual eu me vi implicado.

Enquanto eu conversava com um amigo, Leonardo Quintanilha, sobre grandes autores, em algum momento ele citou-me Flaubert. Imediatamente, reconheci a superioridade linguística do romancista francês, mas, ao mesmo tempo, fiz um comentário desabonador, dizendo que esse escritor me parecia um tanto enfadonho. Imediatamente, notei a estranheza de meu amigo e eu mesmo fiquei intrigado com minha própria afirmação. Logo, então, corri para minha biblioteca e tomei o Madame Bovary para relê-lo. Que surpresa! Eu estava completamente equivocado.

Flaubert é ótimo! Além de possuir uma fineza de estilo em sua escrita, há, na sua narrativa, uma ironia sutil, qualidades que apenas são vistas nos grandes escritores. E escrevo isso não com a autoridade de um crítico literário, mas com a vergonha de quem não percebeu o que todo o mundo já havia percebido antes de mim.

Meu engano deveu-se por algo muito simples: ter baseado minha crítica em uma leitura feita na minha mocidade. O erro foi ter assumido a impressão juvenil como definitiva. Deslize imperdoável, diga-se de passagem!

Quando li Madame Bovary, o fiz no afã de um iniciado no universo das letras. Li-o estimulado pela moda, à época, de estudar a personagem de Flaubert em seus aspectos psicopatológicos. Na verdade, como todo mundo lia, eu achava que deveria lê-lo também. Deveras, não fiz nada de errado ao tomar um clássico moderno no início de minha jornada intelectual. O deslize foi ter formado uma ideia crítica definitiva a partir disso.

A vida intelectual não é um caminho linear, trilhada com um mero acúmulo de leituras e estudos, mas uma ascensão em espiral, pela qual, constantemente, é preciso retomar obras e autores que vimos tempos atrás, a fim de analisá-los sobre um novo olhar, mais amadurecido e mais sensível, forjado pelo tempo, pela experiência e pelo suor.

Considerar um livro lido na juventude como elemento definitivo do cabedal intelectual pode ser – como se demonstrou no meu caso – origem de equívocos censuráveis. E espero não cometer essa falha novamente.

Feiúra no mundo e no pincel

A arte moderna, principalmente na pintura, teve um grande impulso com a invenção da máquina fotográfica. Quando pareceu já não mais ser necessário retratar o mundo, pois a tecnologia prometia fazer isso, boa parte dos artistas passou a preocupar-se mais com as questões internas da arte, como a forma e o método, além de tentar expor menos o que viam e mais o que sentiam.

Nisso está, grosso modo, a origem dos ismos que inundaram o mundo contemporâneo com sua nova proposta artística. O impressionismo, praticamente como o movimento raiz, mas, principalmente, os posteriores, como o expressionismo, o cubismo, o surrealismo, o dadaísmo entre tantos outros, conduziram a arte a uma manifestação muito mais egocêntrica e subjetiva, praticamente arrancando a possibilidade de novos retratos de realidade que expressassem a natureza de uma maneira bela. Tanto que, a partir do fim do século XIX, não surgem mais grandes pintores que tentassem retratar a realidade de uma maneira fiel ou idealizada.

Isso, ao menos para mim, representa uma grande perda. Com a vitória da arte modernista, praticamente ficamos órfãos de pinturas que conseguissem expressar a beleza da vida conforme percebemos com nossos olhos e nossos sentidos. E, na minha opinião, isso ocorreu por uma percepção equivocada das possibilidades da fotografia. Se é verdade que ela é capaz de captar o momento, todavia ela não consegue escolher o momento que capta. E menos ainda é possível para o fotógrafo retratar um momento imaginado, idealizado e belo. Nem mesmo a fotografia consegue, a não ser por um lance de muita sorte, captar um momento único e inesquecível, o que o pintor poderia fazer, bastando algum talento e técnica, apenas expondo aquilo que reteve em sua memória.

Foi Claude Lorrain que deu início à chamada peinture de genre, ao desenhar belas paisagens, que extasiavam quem as contemplasse. Suas obras foram tão influentes que passaram a servir de modelo para jardins e campos da vida real, em relação aos quais seus proprietários gastavam rios de dinheiro para os deixarem o mais parecidos com os quadros do pintor francês. Atualmente, não há mais nada disso. Não encontramos mais trabalhos que causem esse tipo de efeito.

Hoje, pelo desenrolar dos movimentos artísticos, perdemos essa possibilidade. Não há mais grandes artistas que se dediquem a oferecer-nos pinturas que expressem momentos únicos, modelos de beleza, que nos façam, nem que seja por alguns instantes, mais felizes.

Nosso mundo está mais feio, não apenas na realidade dos olhos, mas também na tinta dos pincéis.

O cinema americano e os pecados da nação

É impressionante como o cinema americano vive em torno de tentar, de alguma maneira, se redimir de seus próprios erros. Não apenas os dos envolvidos com a indústria cinematográfica, mas os erros que eles acreditam ser da própria sociedade americana. É só prestar um pouco de atenção para perceber que grande parte dos roteiros tratam de algum tipo de crítica ao estilo de vida americano e a busca de uma saída alternativa para isso.

Pode ser sobre o excesso de trabalho, a busca desenfreada por dinheiro, a obsessão por sucesso profissional, sobre a vida essencialmente urbana, os perigos do patriotismo exacerbado, a tentativa de encarnar o american way of life ou tantas outras características da forma de pensar e viver americanas; tudo isso é retratado nesses filmes como se fossem problemas a ser superados. Aquilo que representou, durante décadas, o jeito de ser de quem vive nos Estados Unidos é tratado, quase sempre, como uma falha a ser corrigida.

E, então, surgem as soluções, que podem vir pela escolha de uma vida bucólica, pelo desapego material, por optar um trabalho que se ame de verdade, por ser mais tolerante, por ser menos careta etc.

Em princípio, isso que Hollywood faz não é nenhuma novidade, mesmo se considerarmos a arte e a literatura que extrapolam os cinemas nos espaço e no tempo. O artista e, também, os pensadores sempre tiveram essa tendência de buscar uma alternativa ao mundo presente que, para eles, sempre lhes pareceu meio sem sentido.

No entanto, ver a bilionária indústria do cinema insistir tanto nesses temas, não tem como não me fazer pensar no tamanho da hipocrisia que isso me parece. É como o herdeiro milionário que passa a vida reclamando da riqueza, enquanto não abre mão de um dólar sequer de seu direito como herdeiro. O cinema americano faz isso, quando pragueja contra aquilo que o sustenta, reclama do que o financia, nega o que lhe dá vida.

Na verdade, a sociedade americana, apresentada em suas telas cinematográficas, parece se envergonhar de sua própria prosperidade, parece temer seu poderio, parece que insiste em desculpar-se por conquistar mais do que a grande maioria dos outros países. O Estados Unidos retratados por seus roteiristas e diretores de cinema são formados por pessoas que alcançaram o que todas as nações ainda buscam, mas que, exatamente por isso, creem que precisam se retratar.

Os filmes americanos se tornaram uma forma da sociedade americana tentar expiar os pecados que acredita ter.

 

Meia-noite em Paris

Estaria, o homem de cultura, determinado a sofrer com a chamada “Síndrome da Era de Ouro”, condenado a enxergar o passado sempre como uma época superior e a lastimar todas as coisas que, imagina, eram melhores e foram perdidas? A pergunta que a estória de Woody Allen, Meia-Noite em Paris, faz são estas. De uma maneira um tanto surreal, com uma leveza surpreendente para o casting de atores escolhidos e sem perder a estética de um filme moderno, ele brinca com a ideia de seu personagem, um escritor apaixonado pela literatura dos anos 20, poder viver, ainda que por alguns instantes, naquele período visto como mais atraente e estimulante.

E quantos de nós, muitas vezes, não temos saudade do que não vivemos, derramando pesadas reclamações sobre nossa própria época, acreditando que tudo hoje está perdido, restando, talvez, se refugiar nos documentos que nos remetam aos tempos áureos, quando as pessoas eram mais felizes, mais inteligentes e mais satisfeitas?

De fato, quase não há como fugir de tais sensações. Isso porque a pessoa que pensa, que medita sobre a realidade, acaba, por conta de sua sensibilidade e perspicácia, captando as mazelas da vida, percebendo que muitas coisas não estão no lugar que deveriam estar. Inescapavelmente, o homem que reflete acaba por olhar para trás, para o passado, mesmo aquele que ele mesmo não viveu, e o toma como uma época melhor que a sua, quando o mundo parecia mais harmonioso, menos superficial e mais inspirador.

Ao fazer isso, porém, acaba não notando que tais sentimentos não são próprios de seu tempo, mas de todos os tempos. Os intelectuais do passado também se lamuriavam pelas virtudes abandonadas pelos seus contemporâneos. Desde os pensadores romanos, como Cícero, Marco Aurélio, Sêneca e Varrão, passando por toda a intelectualidade ocidental até os dias de hoje, a exclamação O Tempora O Mores*, fora exprimida por cada um, de sua própria maneira, em sua própria língua, em seu próprio tempo.

Também não percebe que, ao lançar para o passado todas as virtudes e todos os bens, acaba por abandonar sua própria realidade, deixando de a ter como uma oportunidade para fazer o que deve ser feito. Não que as degradações não sejam progressivas, nem que, cada vez mais, o mundo não pareça inexoravelmente mais corrompido e insolúvel. Porém, apesar de tudo, este é seu tempo, esta é sua vida e aqui estão suas possibilidades e, principalmente, oportunidades. Negar isso, de alguma forma, é negar a si mesmo, de uma maneira que, ao invés de fazê-lo superior, torna sua existência vazia e sem sentido. O que uma pessoa é depende do que ela faz com que está a sua disposição, em seu momento presente, e é sobre isto que ela deve trabalhar a fim de transformar sua presença neste mundo minimamente relevante.

Eu mesmo acho minha época deprimente. Não sou nem um pouco entusiasta de minha geração. A impressão que tenho é que o mundo fora melhor sempre e que, neste instante, quando existo, ele vive sua fase mais degradante. Mas, seria, por isso, a fuga para o passado a solução para este mal? Certamente, não.

No entanto, se os males presentes são reais e se simplesmente retornar a um passado fantasiosamente glorioso não é a solução, como manter a esperança na existência humana e torná-la, ao menos em si mesmo, algo de valor? A resposta do filme, que talvez tenha ficado escondida para alguns olhares menos sensíveis, é que há valores universais que permanecem e são neles que iremos encontrar os fundamentos para a própria existência. Talvez, no roteiro, isso tenha sido simbolizado pela própria Paris, cidade das luzes, mas é certo que havia algo mais ali. Não são apenas as luzes de uma cidade que permanecem, mas os olhares é que se renovam. E se Paris, de alguma maneira, mantinha seu charme, é porque, apesar das mudanças, permanecia nela algo inalterável. Assim é a vida! Podem ocorrer mudanças e degradações visíveis, mas sempre haverá valores fundamentais que permanecerão. E são sobre estes que o homem sábio fincará seus alicerces.

* Ó Tempos! Ó Costumes! Exclamação de Cícero contra a depravação de seus contemporâneos.

O vazio da nossa geração

É interessante a quantidade de filmes, desde os anos 90, que tratam da falta de sentido. São roteiros sem trama, sem estórias, que apenas mostram a completa ausência de razão para a vida. Normalmente, com personagens jovens, que refletem como esta atual geração não sabe para onde vai, nem quem é, esses filmes me parecem ser, simplesmente, o espelho do nosso tempo.

As gerações mais afetadas por essa ausência de sentido são daquelas pessoas nascidas entre o final dos anos 60 e o comecinho dos 80. Eles são os herdeiros daqueles idealistas que queriam mudar o mundo, que balançaram o planeta com suas bandeiras de libertinagem e amoralidade e legaram para seus filhos nada mais do que ilusão.

Os filhos do amor livre viram seus pais traírem a si mesmos. Estes se tornaram o oposto do que diziam ou, simplesmente, se afundaram naquela visão utópica da vida, que na realidade mostrou-se bem menos florida do que eles mesmos acreditavam. São pais sem autoridade, sem força e sem visão. Abandonaram os princípios e agora que precisariam deles não sabem o que fazer.

Quando esses novos roteiristas apresentam essas películas niilistas percebe-se quase um desespero, uma tentativa de encontrar por detrás dessa total falta de razão algum sentido oculto. Mas que sentido pode haver em uma existência sem fundamentos e sem transcendentalidade? Infelizmente, para esses autores, não há sentido mesmo.

Não há onde buscar algum motivo para a vida quando seus alicerces foram lançados longe. O resultado, então, é a completa falta do que falar, a dificuldade em enxergar algum rumo.

Paradoxalmente, sempre quando assisto alguns desses filmes, eles me fazem pensar talvez até muito mais do que pretendem seus próprios criadores. Me fazem refletir o esforço que a minha geração tem feito para entender a si mesma e o quanto ela tem falhado nessa busca. Me fazem entender, enfim, que enquanto ela não olhar para trás, onde estão os fundamentos de toda a existência e para o alto, onde está a razão de todo o ser, ela vai continuar meditando sobre o nada que é como se apresentam seus próprios dias.