Categoria: Pensamentos Existenciais

Necessidade de Sentido

Há pessoas que são muito estáveis em tudo o que fazem. Elas se mantêm no mesmo emprego, têm, há anos, os mesmos amigos, cultivam os mesmos gostos que tinham na sua juventude. São pessoas que vivem das escolhas que assumiram há muito tempo. Parece até que desde sempre têm a certeza do que querem e suas decisões refletem exatamente seus objetivos.

Sinceramente, eu invejo gente assim, porque comigo as coisas aconteceram de maneira bem diferente. Já enveredei por vários caminhos, mas nunca tive muita convicção de que eles eram os melhores. Foi tudo meio por tentativa e erro: seguia a intuição e depois, na prática, tentava entender se aquela escolha era boa ou não.

Eu tinha inclinações, gostos e potenciais que foram se mostrando cada vez mais claros para mim. Mas isso não era suficiente, porque a dificuldade era fazer com que essas inclinações, gostos e potenciais fossem aplicados na vida cotidiana. Nem sempre aquilo que gostamos de fazer ou que achamos que fazemos bem têm a oportunidade de serem colocados em prática. A vida impõe necessidades e responsabilidade que não coatumam negociar tão livremente suas exigências.

Na verdade, a quase totalidade dos seres humanos sentem que são lançados neste mundo não para cumprir qualquer propósito, mas para sobreviver, para obedecer a tarefa de manter-se vivo, saudável, seguro e, se sobrar alguma disposição, próspero.

No entanto, há alguns poucos agraciados (ou amaldiçoados) – entre os quais me incluo – que sentem que suas vidas não podem ser resumidas à aritmética que faz da prosperidade material o fator definidor de tudo. São estes que se questionam se aquilo que fazem tem algum sentido além do objetivo imediato de lhes dar o sustento necessário.

Por isso, quem tem a necessidade de sentido vai sempre encontrar dificuldade de atuar em uma área onde não consiga enxergar um propósito. Para ele, cumprir meramente com suas responsabilidades pode se transformar em um peso insustentável. Eu mesmo, muitas vezes, me senti assim, pressionado entre as minhas inclinações – pelas quais eu sabia que poderia expressar o melhor de mim – e as minhas necessidades do momento, que me forçavam a trabalhos que nada tinham a ver com minha personalidade e não me davam propósito algum.

Sem conseguir encontrar sentido no que faz, a pessoa que tem necessidade dele vai tentar justificá-lo, racionalizando sua atividade. Porém isso é apenas um subterfúgio, uma artificialidade. Eu mesmo fiz isso muitas vezes: criava, em minha mente, uma narrativa que transformava o que eu fazia em uma missão. O problema é que esse autoconvencimento não durava muito e logo a rotina e a falta de relação com algo superior ficavam muito claras para serem ignoradas.

Para quem tem necessidade de sentido, viver afastado dele faz da vida insuportável. A tal ponto que exige uma solução. Nesse ponto, ou a pessoa direciona a sua vida para o seu propósito ou ela abafa essa necessidade de vez, assumindo que a vida não permite esse tipo de preciosismo.

Obviamente, a negação do propósito acaba mantendo as pessoas presas em trabalhos que detestam, com rotinas que odeiam, tudo porque não tiveram a oportunidade (ou não tiveram a coragem) de orientar suas vidas para aquilo que satisfazia a sua necessidade de sentido. Claro que acabam tristes, frustradas ou até mesmo neuróticas.

Para quem não tem a necessidade de sentido, tudo isso parece mero capricho. Soa como desculpa de quem quer fugir de suas responsabilidade. Por isso, ele jamais vai entender as escolhas de quem tem essa necessidade. Quem a possui, porém, sabe que ela é inescapável, pois lhe persegue durante toda sua vida, reclamando, sem tolerância, preeminência e satisfação.

No meu caso, foi apenas na maturidade que tive a coragem de encaminhar a minha vida para aquilo que me fazia sentido. Alguns podem pensar que fiz isso somente quando tive a possibilidade de fazê-lo, quando as condições me eram favoráveis. Pelo contrário! Na verdade, para seguir minhas convicções e vocação precisei abrir mão de algumas certezas, de certas seguranças e até de alguns confortos.

No entanto, apesar das dificuldades, ter seguido o caminho daquilo que fazia sentido para mim foi a melhor decisão que eu poderia ter tomado. Isso porque, quando nossos propósitos podem ser colocados em prática nossa vida fica mais simples, mais leve, mas fácil. Parece que tudo está em harmonia. As necessidades diminuem e as expectativas se estabelecem em outro nível, já que os resultados são o que menos importam, afinal, o objetivo de quem decide seguir seu propósito é exercê-lo cotidianamente.

Casais que Não Têm Harmonia

Conflitos, dentro de um casamento, podem ter muitos motivos. Um deles é o fato dos cônjuges não serem capazes de estimular o outro no desenvolvimento dos seus potenciais.

São comuns casamentos onde cada um dos companheiros, olhados como indivíduos, tem qualidades admiráveis, mas que juntos não conseguem viver em harmonia, no sentido de cada um fazer do outro melhor.

Pelo contrário, casais formados por pessoas agradáveis, trabalhadoras, virtuosas, muitas vezes, vivem um relacionamento cheio de conflitos e frustrações. Geralmente, porque as características de um, por melhor que sejam, não servem de alicerce e de estímulo para o outro; naquela relação específica não funcionam. Um cônjuge acaba sugando as possibilidades do outro, por não ser o tipo de complemento que o outro precisa.

Por outro lado, características que podem ser consideradas inusuais e até excêntricas podem suprir os anseios do companheiro, exatamente porque se harmonizam com as características dele, potencializam-no. Neste caso, as inclinações de um estimulam o outro, ajudam o outro e se realizar existencialmente.

Não se trata de afinidade, de gostar das mesmas coisas, mas de ter um perfil que faça o outro sentir-se seguro, apoiado e motivado.

Fala-se muito de sacrifício no sentido de negar suas próprias inclinações para suprir os anseios daquele com quem se vive. Porém, há um grande risco nisso, pois dificilmente a pessoa conseguirá fazer isso bem, por não ser da sua natureza. Ao anular-se, em vez de potencializá-lo, frustrará ambos.

Infelizmente, nossos critérios para a seleção amorosa são, em geral, subjetivos e instintivos. Se pudéssemos, nesse caso, agir com alguma racionalidade, um desses critérios deveria ser considerar se nossas inclinações ajudarão a realizar as inclinações de quem escolhemos para viver do nosso lado e vice-versa.

Paradoxos da Solidão Contemporânea

O homem está só, ainda que ande em meio à multidão; vive isolado, ainda que tenha contato com mais gente como nunca se teve na história; está perdido, mesmo instalado numa era em que a informação parece infinita. Este é o paradoxo da contemporaneidade e se manifesta na sensação de isolamento daquele que vive em aglomerados, que se associa a movimentos de massa e que tem acesso livre ao mundo inteiro.

Essa solidão moderna, porém, não é daquelas que existem nos que se encontram fisicamente longe dos outros; nem tampouco daquelas que invadem o espírito de quem se sente incompreendido em sua maneira de enxergar a vida. Trata-se de uma solidão existencial, que insiste em sufocar a alma de gente que vive com os outros, pensa como os outros, age como os outros e praticamente não possui nada que lhe distingua deles.

Era de se esperar que pessoas que se misturam à multidão, seguem os padrões culturais e da moda e se empenham para pensar segundo os ditames da ideologia do momento até sofressem de crise de identidade e de sentido, mas não que se sentissem sós. Se elas se esforçam por se ajustar às expectativas sociais é porque querem pertencer, querem evitar frustrar as expectativas da sociedade e, em consequência, perder as vias de acesso abertas por ela. No entanto, parece que quanto mais tentam fazer parte do grupo, mais sozinhas se sentem; quanto mais parecidas com o mundo, mais são ignoradas por ele; quanto mais imitam os padrões culturais, mais deslocadas parecem; quanto mais se acoplam, menos ajustadas se mostram.

Os homens se gabam da evolução de sua autoconsciência, mas há algo que, apesar dela, os tem impedido de escaparem de si mesmos. Parece que estão encarcerados dentro de suas próprias almas, ainda que seus corpos interajam com todo o resto. De fato, não conseguem libertar-se de sua escuridão interior e a única realização efetiva que a autoconsciência alcançou foi o clarividência de sua própria solidão.

A Vida é Imprevisível

A vida é complexa. Ainda que existam leis que a sustentem e fenômenos que se repitam, ainda que exista uma essência nas coisas, a maneira como tudo isso se relaciona permite uma infinidade de combinações que tornam tudo muito imprevisível.

Essa imprevisibilidade é insuportável para o ser humano, pois nada lhe incomoda mais do que a sensação de insegurança que a incerteza sobre o amanhã lhe proporciona. Se ele não consegue garantir que seus planos, sonhos e vontades se concretizarão, parece que tudo se perde.

Para afastar o imprevisível, os homens simplesmente costumam negá-lo, e um dos procedimentos mais comuns, para isso, é criar esquemas mentais que expliquem a realidade, simplificando-a, apagando sua complexidade e colocando cada coisa em um lugar que lhe seria próprio. Tornam, então, tudo mensurável, e, como consequência, previsível. Agora, sim, podem se sentir em paz, seguros de que a vida foi domesticada por eles.

No entanto, as incongruências e contradições da realidade, invariavelmente, fazem aparecer seu aspecto selvagem e desmontam o equilíbrio ilusório, desmascarando-o, mostrando-o insustentável. É de se esperar, diante disso, que, finalmente, as pessoas aceitem a vida como ela é, em seu caráter incerto. Porém, a reação delas oscila entre apegar-se ainda mais às fantasias esquemáticas ou desenvolver um sentimento de absurdo, de falta de sentido. Ficam entre o fortalecimento da quimera e o mergulho no desespero.

De nossa parte, se não quisermos afundar nem na racionalização nem na frustração precisamos abandonar a necessidade de previsibilidade e acostumarmo-nos com a imponderabilidade da existência.

Na verdade, o melhor que podemos fazer é aprender a lidar com a vida não como se seguíssemos por uma estrada bem pavimentada e sinalizada ─ por isso, tediosa e triste ─, mas como em uma aventura, que tem na aleatoriedade o seu verdadeiro sentido e prazer.

Culpa, Um Sentimento Moderno

O caráter cristão é comumente visto como vinculado ao sentimento de culpa. Não foram poucos os pensadores que criticaram esse elemento que entendiam ser parte indissociável da mentalidade cristã. A postura de muitos religiosos, ao dar ênfase, acima de tudo, à culpa como elemento essencial da religiosidade, ofereceu a filósofos, como Nietzsche, munição para que acusassem o cristianismo de colocar sobre os homens um peso pernicioso. No entanto, quero demonstrar aqui que, na verdade, essa consciência culpada e atormentada não é uma característica cristã, mas essencialmente moderna, e penetrou na consciência cristã apenas com o decorrer da modernidade.

O mundo medieval, fechado que era, tinha o indivíduo como um membro do corpo social, com uma função determinada, uma posição definida, sujeito a um ordenamento eterno e com com seu destino vinculado ao destino da sociedade em que vivia. Seu próprio conceito de salvação era bastante simples: para livrar-se do Inferno, bastava, por meio do batismo, fazer parte da cristandade. Os castigos eternos eram reservados aos hereges e impiedosos, ou seja, era uma exceção. Pode-se dizer que o cristão medieval estava, de alguma maneira, destinado ao céu (ainda que tivesse de passar antes pelo Purgatório), sem que precisasse fazer qualquer esforço especial. Bastava ser cristão, o que significava fazer parte de uma sociedade cristã.

Veio então a Modernidade e separou a sociedade do indivíduo. Este tornou-se um ser autônomo e responsável por suas próprias escolhas. Não havia mais posição definida, destino determinado, função determinada. A sociedade deixou de ser, para ele, aquela que lhe direcionava à verdade. Nos escritos de Francis Bacon e de René Descartes há uma evidente desconfiança em relação aos ensinamentos oriundos da sociedade. Ela deixa de ser confiável, sendo agora aquela que engana, desvirtua, atrapalha o homem em sua busca de conhecimento. Bacon se levanta contra os axiomas, que têm sua origem em princípios muito gerais e permanecem pela tradição (pela sociedade); Descartes é mais direto e desconfia abertamente das autoridades sociais (guias e mestres) que lhe ensinaram tudo o que ele sabia.

Diante de uma sociedade que já não possuía o monopólio da verdade e que já não estava apta a determinar a posição e o destino dos homens, o indivíduo teve de assumir a responsabilidade por forjar sua própria ventura. Agora, senhor de seu próprio destino, precisou assumir também as rotas que iria trilhar. Para isso, foi forçado a desenvolver seus próprios métodos para seguir adiante, em direção aos seus propósitos. Não é por acaso que nesse período se proliferaram os conselhos de comportamento, as dicas de etiqueta e de postura, os exercícios espirituais, o louvor à austeridade ─ tudo aquilo que as pessoas identificavam como necessário para prosperar, em todos os sentidos. Esse auto-gerenciamento refletiu-se também na religião. Nela, disseminaram-se as regras, os hábitos, as disciplinas. São desse período os exercícios de Inácio de Loyola, que enfatizavam o esforço (inclusive físico) como indispensável para o crescimento espiritual. Há também a rigidez comportamental dos puritanos que, mesmo enfatizando a salvação sem as obras, resgatam-na ao exigi-la como prova dela. O fato é que, na modernidade, o esforço, seja no contexto religioso como no mundano, passou a ser visto não apenas como necessário, mas meritório. A diligência, seja para alcançar a graça, seja para cumprir com seus propósitos terrenos, tornou-se uma virtude.

Esse indivíduo moderno, dependente do empenho, da dedicação e da postura, precisava ser um perpétuo vigilante e lutar ininterruptamente contra sua própria natureza. Não havia mais espaço para o relaxamento, como deixam claras as palavras de Santa Teresa D’Ávila: “Não vos deis por seguras, nem vos deiteis a dormir. Ficamos nós mesmas e bem sabeis que não há pior ladrão”. O fiel que, nos tempos antigos, era contemplado pela graça divina, pelo simples fato de ser membro do corpo da cristandade, agora não podia vacilar, precisando esforçar-se para agradar a Deus. Dessa forma, o sacrifício se tornou virtude e sua ausência, vício.

Esse espírito tão dependente do autodomínio passou então a sofrer quando este lhe faltava. Quem não desse o melhor de si passava a ser visto como preguiçoso, indolente e merecedor de todas as desgraças. Seja no contexto religioso ou mundano, só merece a boa sorte quem se dispõe a sacrificar boa parte de seus prazeres e descanso. No entanto, como não há um parâmetro exterior que determine o quanto dessa entrega é suficiente, o homem moderno sente que nunca está fazendo o suficiente para cumprir os seus propósitos. A sensação é de que, por mais que se esforce, sempre pode fazer mais e sempre é possível alcançar resultados melhores. Sendo assim, a culpa passa a consumi-lo e ser-lhe uma companhia constante.

O homem medieval até podia temer seriamente os castigos divinos, mas é o moderno que vive assombrado pela consciência. É ele que carrega nos ombros o peso de não conseguir cumprir seus objetivos por meio de seus esforços. Por isso, a culpa é sua companheira constante, constituindo-se um sentimento típico do seu tempo.

Nem Tudo é Importante

Pela saúde da minha vida social, eu aprendi a falar sobre qualquer assunto. Isso evita aquele desgaste de parecer metido simplesmente por não participar de determinadas conversas. Confabulo sobre filosofia, artes e história; mas também falo sobre futebol, política e, claro, mal dos outros. Tudo pela boa convivência.

A única diferença entre boa parte das pessoas e eu é que elas falam sobre tudo isso com o mesmo entusiasmo. Contam um detalhe qualquer de sua vida cotidiana com a mesma paixão de que discutem um dogma de fé. Tudo parece ter igual importância. Enquanto isso, os temas triviais são tratados por mim apenas como uma concessão que faço para não me afastar demais da sociedade. Obviamente, neste caso, não demonstrarei euforia.

Sinceramente, não me importo de ter de conversar sobre assuntos vulgares. Entendo que eles fazem parte da vida e inclusive servem para aliviar um pouco as pressões do dia-a-dia. Até gosto de falar sobre esportes e política, mas confesso que faço isso sempre com um pouco de desdém, como quem comenta vídeos engraçadinhos de cachorros fofinhos no instagram. O problema é que falar desdenhosamente de assuntos que outros tratam como importantes não é nada simpático. Não tem como não parecer arrogante ao fazer um comentário desinteressado sobre algo que o outro tem como se fosse da mais alta relevância. Assim, minha estratégia para manter uma boa convivência acaba dando n’água.

Defrontar-se com as questões da vida como se tudo tivesse o mesmo peso já seria um problema, no entanto, as pessoas fazem ainda pior: mostram-se entusiasmadas ao falar do lance polêmico da última rodada do campeonato carioca, da fofoca política da semana ou de algum fato corriqueiro de sua vida comezinha, enquanto ficam profundamente entediadas quando são apresentadas a algum tema mais abstrato, filosófico, que exija um pouco mais de reflexão. São fervorosas nas ninharias ordinárias e letárgicas diante das coisas superiores.

Todavia, eu não posso fugir de uma verdade óbvia: as coisas têm importâncias diferentes e, por isso, merecem tratamentos diferentes. Não vejo nada demais em fazer comentários jocosos sobre um amigo sem-vergonha, mas é claro que isso não pode me empolgar mais do que um bate-papo sobre um artigo do Olavo de Carvalho. Se eu tratar tudo com a mesma animação, isso não significa que sou feliz, mas é um forte indício de que seja um perfeito idiota.

O problema é que as pessoas não hierarquizam as coisas. Para isso, elas precisariam saber o que as coisas são, ou seja conhecer a natureza delas, identificar a essência de cada uma. Sem isso, tudo se apresenta como um emaranhado indistinguível e inordenável, como um amontoado de bugigangas que se sobrepõem sem razão e sem sentido. Então, perde-se a noção do tempo, energia e atenção que cada coisa merece.

Só quem hierarquiza aquilo sobre o que se debruça não se prende ao que não merece mais do que uma olhada de soslaio. Porém, se tudo, para a pessoa, tem a mesma importância ─ o que pressupõe seu desconhecimento das essências ─ resta-lhe reagir através do único elemento que lhe está disponível: a sensação que a coisa lhe provoca ─ o que explica seu entusiasmo ao falar de sua vida diária ou do seu time do coração e seu tédio quando o assunto se eleva além do nível da paixão.

Quando o que define o comportamento é a sensação e não a inteligência, aquilo que mexe com a emoção, com os sentimentos pessoais, com os interesses mais mesquinhos acaba provocando mais fervor do que aquilo que realmente importa. Assim, torna-se muito mais comum as pessoas serem capazes de brigar por seu político preferido ou mesmo por uma sua opinião qualquer ─ mesmo sobre os assuntos mais irrelevantes ─ mas manterem-se inertes diante de pecados mortais e crimes de todo tipo.

Sabendo disso, não tem como não achar que muito do palavrório acalorado com o qual me deparo por aí não passe de fogo fátuo. Sendo assim, minha falta de animação diante de alguns temas acaba sendo inescapável. Espero, portanto, que meus amigos me compreendam se eu não me mostrar muito empolgado por causa de uma discussão política qualquer.

As Ideias dos Náufragos

Importam apenas as ideias dos náufragos, pois são pensamentos de alguém em um cenário concreto, inescapável, fatal; pensamentos que dispensam o supérfluo e agarram-se ao essencial.

Em meio ao caos e às restrições que enfrenta, o náufrago organiza sua vida com base naquilo que lhe está disponível. Nesta situação, não há espaço para a pose, para a falsidade, nem afetação; não faz nenhum sentido perder-se em sutilezas vazias e especulações estéreis. Diante do caos instalado, ele precisa ser sincero e absolutamente honesto consigo mesmo, sem fingir que sua situação não é trágica.

Nós, porém, escolhemos negar essa circunstância fatal na qual nos encontramos e preferimos nos refugiar numa mentalidade abstrata que, para manter-se coerente e lógica, recorta a realidade, purifica-a de sua experiência vital, afasta-a de suas incongruências práticas e evita suas contradições. Encontramo-nos, por isso, alienados.

O que são os nossos sistemas de governo, estruturas jurídicas e modelos sociais senão aquilo que nos permitem ter a ilusão de viver em uma situação minimamente estável, apesar de imponderável?

Se vivemos, porém, como se tudo fosse inabalável, ainda que instalados em terreno movediço, nos encontramos, então, como que hipnotizados, e, para libertar-se dessa situação, a única saída é uma conscientização radical, uma abertura total de visão para o que está acontecendo.

Precisamos admitir que construímos uma ilusão e, ao mesmo tempo, abraçar o nosso caos, aceitando que este é o estado natural das coisas; enfrentar a vida de forma corajosa, sem nos escondermos no universo quimérico das ideias abstratas; reconhecer o caráter desafiador da existência e concordando com o fato de que nos encontramos perdidos.

Precisamos ser como os náufragos que, pela característica extrema e vital que os acomete, encontram-se desprovidos de fingimento e engano, reconhecem a fatalidade da sua experiência real e consideram aquilo que, verdadeiramente, deve ser levado em conta. Por isso, suas ideias são as que realmente importam.

Vocações Especiais

Pouca gente é capaz de entender uma pessoa que se diga livre de ambições. A mentalidade medíocre acredita que o que dá sentido à existência são suas conquistas pessoais ou, pelo menos, a perseguição delas.

Para uma mente mediana é muito difícil compreender uma alma que se dispõe apenas a cumprir sua vocação, independentemente dos resultados que possam dela advir.

A vocação é a convicção de um chamado, não apenas para fazer algo, mas para se encaixar na existência de determinada maneira. Responder a esse chamado significa dispor-se a aceitar viver neste mundo de uma forma peculiar, que é a única forma que faz sentido para essa pessoa.

Isso é incompreensível para quase todo mundo porque a mente comum, mesmo a que esteja entre as mais inteligentes, só consegue entender as missões universais, o cumprimento que vale para todas as pessoas igualmente. Os encaixes especiais, que escapam das responsabilidades e, algumas vezes, dos valores comuns, são vistos como desvios, não como missões específicas. A não ser que esses desvios levem a resultados que se conformem à expectativa coletiva – neste caso, a peculiaridade é tolerada por um bem maior.

No entanto, há espíritos que, seja qual for a consequência disso, só encontram sua razão de existência quando se dispõem a viver de certa maneira, a cumprir certos tipos de tarefas, a buscar certas coisas para as quais nem eles mesmos, muitas vezes, entendem o motivo. Por isso, a vocação tem muito de disposição de fé, de confiança que esse encaixe no cosmos existe por algum motivo que pode ser que sequer seja vislumbrado ou compreendido. A vocação pode se manifestar simplesmente pela certeza de que se deve dedicar a algo sem nem saber por quê.

De qualquer forma, o mundo nunca esteve preparado para os vocacionados especiais. Inclusive, condenou alguns deles. O que o mundo, porém, não pode negar é que sem eles praticamente todas as grandes conquistas da humanidade não teriam acontecido.

Velhice Desprezada

A grande vantagem de envelhecer é ter tido a oportunidade de errar e com esses erros aprender. A vida nos ensina, por causa das consequências dos nossos atos, principalmente aqueles com efeitos mais dolorosos, que aquilo que fizemos pode nos servir como mestre eficiente.

Essa sabedoria oriunda da dor jamais deveria ser desprezada. Ela é uma fonte inesgotável de conhecimento, especialmente daquele conhecimento que não se encontra nos livros e que mantém o mundo funcionando.

Quando essa sabedoria pela vivência junta-se àquela oriunda da cultura e da instrução, o idoso, pode-se dizer, tem a possibilidade de experimentar o ápice de sua existência. Para aqueles que se enriqueceram com uma larga cultura, as alegrias da vida multiplicam-se com os anos – afirma Payot, que confessava que, para ele, sua velhice foi um tempo mais doce que o de sua juventude.

No momento quando nosso corpo já não responde à nossa vontade é que o nosso espírito tem a chance de atingir seu estado mais agudo. Uma pessoa que amadurece devidamente, que sabe aproveitar bem o que passou em sua vida, tem a oportunidade de atingir um estágio no qual sua inteligência pode ser capaz de discernir melhor as coisas.

Por isso, os velhos deveriam ser a referência dos mais jovens. Pelo menos, aqueles velhos que atingiram a última fase da existência com alguma sabedoria. Eles deveriam ser consultados por quem ainda não teve a chance de experimentar muita coisa na vida; deveriam ser vistos como o repositório da experiência e a fonte dos bons conselhos. Numa sociedade saudável, cada idoso seria tratado como o ponto de contato entre a geração ativa e o conhecimento universal.

No entanto, nosso tempo é daqueles que perderam a conexão com tudo o que não tem a ver diretamente com ele. Seu único interesse são os interesses do momento. O passado é desprezado como relíquia curiosa, daquelas que só servem para ser apreciadas como símbolo de um mundo que não existe mais.

Sob essa perspectiva, o idoso acaba visto como alguém que já não serve para muita coisa. Com exceção dos pouco agraciados com oportunidade e disposição para participar ainda da vida produtiva, os outros são tratados como gente que pertence a uma era que ficou para trás e, por isso, não têm mais nada a contribuir. São quase como mortos-vivos, caminhando por aí, como pesos para uma sociedade que só tem olhos para si mesma.

Uma comunidade que esquece de seus velhos, tratando-os apenas como um peso incômodo digno da mesma compaixão que se tem aos cães, a quem dão comida, remédios e uma cama para dormir, não enxergando neles nada que se possa extrair, é uma sociedade prisioneira do imediato, abandonada à sua própria estupidez; refém de erros evitáveis; condenada a cometer as mesmas falhas, as quais poderiam ser evitadas se ouvissem aqueles que já as cometeram antes.

O desprezo à velhice é um pecado, típico das gerações arrogantes a partir do século XX. O pior é que isso parece não ter mais volta, pois as pessoas costumam perceber a importância da sabedoria amadurecida somente quando deixam de ser jovens, quando elas mesmas já começam a ingressar no rol daqueles que serão tidos por obsoletos. E quando chega nesse ponto, é tarde demais.