Categoria: Sociologia

Igreja é Refúgio

Para seguidores de seitas político-materialistas tudo é política. Não é por acaso que eles transformam mesmo a mensagem mais espiritual em guerra social. Seu principal objetivo é colaborar com a transformação do mundo, o que se torna como seu propósito.

Quando eles infiltram-se nas comunidades religiosas, constituem-se em panfletos vivos, ávidos por convencer os outros fiéis em militantes de sua causa. Em seus discursos, salvação se transforma em libertação política e sacrifício em capacidade de doar-se à luta social. Sua pregação faz o
fiel olhar antes para a terra, e o céu se distancia cada vez mais.

Quem não comunga das mesmas convicções políticas dessa gente acaba enredado num dilema. Como contrapor seus discursos e defender-se desse ataque verbal constante que sofrem dentro de um ambiente essencialmente espiritual?

Por muito tempo, acreditei que um pecado que os líderes cristãos cometiam era evitar tratar desses temas mundanos. Eu pensava que exatamente por imiscuir-se de transformar a Igreja numa fortaleza de batalha, estávamos perdendo a guerra. Ao ver a militância ganhando tanto espaço no seio de comunidade religiosa, critiquei os pregadores que pouco falavam de política no púlpito.

Hoje, já começo a questionar essa convicção. As palavras de Edmund Burke que, inconformado com o uso do púlpito para a propagação de ideias revolucionárias, achava que a Igreja deveria ser preservada dessa guerra, começam a ressoar mais forte na minha cabeça. Ele dizia que “nenhum som deveria ser ouvido na igreja, senão a adorável voz da caridade cristã”. Ele também afirmava que “a Igreja é um lugar que deveria dar um dia de trégua às dissensões e animosidades da humanidade”. Isso porque, para Burke, a Igreja, cumprindo seu papel histórico, deveria ser preservada como lugar de refúgio em meio à guerra, onde as pessoas pudessem se sentir protegidas, sabendo que, pelo menos ali, não seriam agredidas.

É certo que, quando a mensagem mais constante e importante pregada dentro de uma comunidade religiosa é voltada para as questões políticas, há um rebaixamento da missão eclesiástica. Pode-se dizer que o discurso político mancha o Evangelho. De alguma forma a Igreja é corrompida.

Obviamente, dentro das circunstâncias atuais, simplesmente negar-se a abordar questões políticas faz dos próprios fiéis vítimas indefesas daqueles que incessantemente propagam suas ideologias travestidas de caridade. Por outro lado, decidir confrontá-los direta e abertamente, traz o risco de transformar a Igreja num campo de guerras políticas intermináveis, onde a única vitória certa é do ódio característico que envolve essas disputas e a sede de sangue que lhes acompanha.

Cada vez mais me convenço que as palavras bíblicas, que dizem que nossas armas são espirituais, devem ser interpretadas literalmente. Estou mais certo que afastar o mal de ideologia política que tenta tomar a Igreja como mais uma de suas comunidades de base, depende de uma elevação da pregação, impulsionando seus ouvintes a buscarem aquilo que é superior e que transcende as agitações mundanas.

Quando o papa Bonifácio VIII reiterou o que a Bíblia ensina, que o espiritual discerne o carnal, mais do que uma afirmação de poder, havia ali o ensinamento de que, em uma eventual disputa entre eles, o espiritual sempre vence, porque suas armas são superiores. Sua declaração não queria dizer que ambos estão em uma disputa de forças, mas sim que o espiritual sempre se sobrepõe, simplesmente por estar acima.

A Igreja não precisa imiscuir-se numa guerra política, porque ela é, na verdade, a solução para a guerra política. Isso quer dizer que se seus representantes quiserem anular aqueles que tentam usá-la para seus fins ideológicos basta elevar a alma de seus fiéis para além da mundanidade. Homens verdadeiramente espirituais estão devidamente vacinados contra a doença da ideologia materialista.

Os marxistas acreditam que tudo é política e esforçam-se por rebaixar tudo a esse nível. O que eles mais odeiam são aqueles que desprezam esse politiquismo integral. Inclusive, costumam chamá-los de alienados. Portanto, sentem-se muito bem quando a Igreja rende-se à guerra política e coloca esse assunto como pauta principal de sua pregação. Quando, porém, os sacerdotes e profetas falam daquilo que lhes é próprio, e saber, e salvação, o pecado, a redenção e a espiritualidade, os usurpadores tremem.

Isso não significa que a política jamais deva entrar na pauta das pregações. Pelo contrário, é importante tocar nesse assunto, ocasionalmente, principalmente com o intuito de alertar para os perigos que a ideologia materialista oferece. Todavia, essa pregação deve vir sempre de cima para baixo, com o espiritual julgando o carnal, permitindo que a Igreja evite ser palanque para a hipocrisia característica do discurso político e seja praticamente o único lugar que ainda sirva de refúgio para almas se aliviarem da loucura deste século.

A Vontade que Sustenta o Mundo

A partir do momento que os pensadores desapegaram-se da Revelação para investigar a natureza por conta própria, tornaram-se obsessivos por descobrir a lei subjacente que a sustenta. O objetivo era desvelar o processo que está por trás de tudo, que faz o mundo ser o que é e que demonstraria que Deus realmente não seria necessário.

Para isso, porém, era preciso que sua filosofia concebesse o cosmos como uma máquina, permitindo assim decifrar seu funcionamento, tornando tudo previsível, sem a preocupação de saber se há alguma inteligência por trás com o risco de tomar decisões inesperadas. Até porque o que mais incomoda a inteligência moderna, ansiosa por autonomia, é aceitar que possa haver porções da existência que sejam inexplicáveis, imprevisíveis, misteriosas. Aceitar que talvez ela dependa, no fim das contas, de uma mente que age como e quando quer lhe é aterrorizante.

Chesterton então toma essa busca por segurança dos cientistas e lança na cara deles que seus esforços são vãos, afinal, nada garante que exista uma lei que sustente toda a realidade. Ele observa que apenas testemunhamos uma mera repetição de fenômenos, e isso, seguindo o próprio rigor científico, não caracteriza uma lei, pois lhe falta um elemento crucial, que é a existência de uma inteligência que lhe determine. Leis são atos de vontade e chamar a mera repetição de acontecimentos de lei não passa de um eufemismo.

A repetição, em vez de indicar que o mundo possua um padrão impessoal e autônomo, insinua que é mais provável que haja uma inteligência determinando que as coisas ajam sempre da mesma maneira. Até porque a recorrência contínua costuma ser uma prova de que há vida envolvida no processo e não uma mera sucessão mecânica. Por exemplo, para acordar todos os dias, no mesmo horário, pela manhã, é preciso que diariamente se tome uma decisão nesse sentido. A repetição exige vontade.

Chesterton insiste que a reiteração dos fenômenos na natureza parece muito mais fruto do querer e do agir de alguém do que de um processo sem vida. Isso não significa que ele estivesse querendo impor uma nova filosofia, nem destruir a ciência. Seu objetivo era apenas ressaltar que aquilo que os cientistas chamam de lei da natureza não precisava ser, necessariamente, uma negação da vontade sustentadora de Deus. Pelo contrário, poderia ser exatamente a prova dela.

Democracia dos Mortos

Desde Platão, homens eruditos imaginam formas de governo que possam dar ordem à sociedade, para que ela funcione de maneira harmônica e eficiente. Idealizar os sistemas políticos passou a ser uma atividade corriqueira dos intelectuais.

Com isso, tornou-se lugar-comum a concepção de que se a sociedade é organizada de determinada maneira é porque homens inteligentes a configuraram dessa forma. Até mesmo a democracia acabou imaginada assim, como sendo um sistema pensado, desenhado em algum gabinete de um expert qualquer.

A democracia foi transformada em ideologia.

Chesterton, porém, deu uma conotação diferente à democracia, entendendo-a como o respeito às ideias preservadas pelos homens comuns de todas as épocas.

Por isso, ele vai conceber a Tradição e a Democracia como sendo uma única e mesma ideia, inclusive denominando aquela como “a democracia dos mortos”.

Na visão de Chesterton, é muito mais saudável ouvir o que os homens comuns sempre disseram do que dar atenção às ideias mirabolantes dos intelectuais.

O que o pensador inglês propõe é que a vontade da maioria, que é a característica elementar da democracia, seja estendida para além do presente, mas considere o que aqueles que já viveram nos legaram. Afinal, nisto estaria o verdadeiro conhecimento.

A verdade é que Chesterton tinha plena convicção de que ideologias não são combatidas com mais ideologias, por isso, em vez de afiliar-se a uma proposta social qualquer, preferiu abrigar-se no bom e velho senso comum.

Populismo Elitista

Eu sou um cosmopolita. Estou inteiramente inserido na sociedade moderna, com seus confortos e tecnologias. Almoço em restaurantes por quilo, peço pizza em casa e ultimamente sequer estou indo ao supermercado. Dificilmente ando a pé. Se o lugar para onde preciso me deslocar estiver a mais de duas quadras de distância, não titubeio em pegar meu carro.

Inclusive, há muito tempo não ia à feira. Nem havia razão para isso. No entanto, era domingo e a Leticia ia ficar o dia todo ocupada com um curso. Decidi, então, gastar um pouquinho do meu tempo nessa instituição milenar. Coloquei meus fones de ouvidos (daqueles grandes mesmo, que as pessoas já nem ousam iniciar uma conversa ou lhe fazer uma pergunta), liguei um Heavy Metal (este é o meu defeito, aliás. Inclusive, dizem que a música que você ouve na adolescência torna-se seu estilo preferido a vida toda. Foi assim que destruí minha capacidade de apreciar qualquer música que não pareça uma bigorna batendo no meu cérebro), fui direto ao carrinho de pastel e logo pedi um de queijo e uma coca-cola.

– Pra comer ou pra levar, senhor?

– Pra levar comendo, respondi.

– Melhor escolha, senhor.

Rimos.

Pastel numa mão, coca na outra e Threshold nos tímpanos – comecei meu passeio. De fato, eu não tinha o que fazer naquela feira, senão sentir o prazer de caminhar no meio da multidão (algo que eu não experimentava há algum tempo).

As feiras existem desde sempre. Foram elas que sustentaram os países da Europa Continental na Era das Trevas. Nelas, reúne-se verdadeiramente o povo. Não há nada mais democrático. Por isso, encontramos de tudo.

Enquanto eu andava, apreciava aquela sensação de realidade. O contraste com minha vida elitista e reclusa é evidente. Não há ali aquela ordem artificial criada por quem pretende manter tudo absolutamente seguro, nem a polidez de indivíduos carentes que se preocupam em demasia com a própria imagem. Na feira, há uma organização espontânea. De alguma maneira, cada um respeita o espaço do outro e tudo funciona perfeitamente bem. Existe também uma expansividade exagerada, que se torna histriônica. Os feirantes gritam muito e isso contagia o ambiente. Logo, não apenas eles, mas outros elementos ajudam a fazer daquele circo um lugar mais vivo e mais louco.

Durante minha travessia voluntária vi de tudo: discussões acaloradas, disputas por quem gritava mais alto o preço da fruta, velhinhos que pareciam perdidos em meio à balbúrdia, crentes evangelizando e até fazendo rodas de oração em volta de mendigos completamente confusos. Era dia de final de futebol e teve até guerra de gritos de torcidas. Já quase no fim, ainda me deparei com um “Sheik árabe” (vestido a caráter, obviamente), encenando uma luta de boxe (com luvas e tudo), com um sparring completamente machucado (mas não se preocupe, era só um assistente maquiado).

A sensação desse passeio foi deliciosa. Senti-me dentro do mundo, parte da sociedade na qual vivo e feliz por ter contato com aquilo que chamamos de povo. No entanto, pensando bem, todo esse sentimento só me ocorreu porque eu não precisava frequentar a feira todos os dias, nem acordar às três horas da manhã para preparar a barraca de frutas, nem voltar para casa esgotado depois de doze horas intensas entre gritos e esforços. A glamourização da feira só me é possível porque ela, para mim, não passa de um ambiente exótico, sobre o qual eu posso romantizar e pintar quadros divertidos. Se eu precisasse viver nela cotidianamente, me enjoaria do pastel, perderia a paciência com os mendigos, acharia os crentes inconvenientes e ficaria louco para pular em cima e calar a boca do primeiro feirante que gritasse perto do meu ouvido. A balbúrdia da feira, para quem a visita de vez em quando, pode parecer lúdica, mas para quem a frequenta diariamente é prosaica.

Tudo isso, me fez pensar sobre a pobreza. Ela também, com sua escassez, precariedade, falta de perspectiva, feiúra e insegurança não incomodam o pobre, mas também não o empolgam. É tudo apenas parte de sua realidade. Para o elitista, porém, que não a experimenta, senão pelas incursões semelhantes à minha, mas que pretende esbanjar populismo, a pobreza permite ser glamourizada, como se fosse algo até desejável em determinadas circunstâncias.

Tudo o que eu ouço da elite, quando ela se apresenta como defensora dos pobres, não passa de hipocrisia. Ela não suporta a vida simples, odeia suas limitações, não aguenta suas dificuldades e tem ojeriza do seu odor. A elite populista tem os ambientes pobres apenas como lugares exóticos, que ela resolve visitar, de vez em quando, quase como uma aventura no Safari ou como minha visita à feira.

Quando essa elite é política é ainda pior, porque a pobreza lhe serve como instrumento para fornecer-lhe a aparência de virtude que ela tanto precisa para manter sua retórica hipócrita. Sempre quando alguém se apresenta como o defensor dos pobres, já sei que se trata de um pilantra. Afinal, um defensor dos pobres, principalmente que vive desse discurso, depende que os pobres existam para que sua identidade não se perca.

A verdade é que os pobres não precisam ser defendidos. Eles só querem (como todo mundo) não ser impedidos de buscar sua própria felicidade. Os pobres não querem ser louvados. Eles só não querem (como todo mundo) ser tratados como massa de manobra nas mãos de especuladores ideológicos. Os pobres, no fim das contas, só querem ter o direito de tentar deixar de ser pobres.

A Quarta Teoria Política

Desde o século XVIII, utopias e ideologias revolucionárias sucederam-se, constituindo-se invariavelmente de elementos antiliberais e anti-individualistas. Todas elas se levantaram contra as forças do mercado, a autonomia dos indivíduos, a livre competição e a liberdade, de maneira geral. Mostraram-se, invariavelmente, coletivistas e apostaram num sistema social planificado, executado por meio de um poder centralizado, formado por uma elite iluminada.

O professor Alexander Dugin as tem como modelos a serem seguidos, propondo que se dê, de alguma maneira, continuidade ao que elas começaram. No entanto, ele identifica nesses movimentos características modernas, as quais rechaça, propondo que sejam abandonadas. Assim, o Eurasianismo acaba se apresentando como uma espécie de evolução das ideologias predecessoras, porém sem os elementos modernos que as caracterizaram.

O Eurasianismo denomina a si mesmo de Quarta Teoria Política porque, segundo sua interpretação, houve três movimentos políticos anteriores e que, agora, chegou a hora da manifestação do quarto movimento. O primeiro desses movimentos teria sido o liberalismo, que é o que dá origem ao capitalismo e, consequentemente, ao globalismo. Nele, o ator político principal é o indivíduo. Todos as ideologias posteriores vão se levantar contra ele, inclusive, o eurasianismo. Em seguida, viria o comunismo, que se caracterizaria por ser, além de antiliberal e anti-individualista, coletivista. Seu ator político principal é a classe. No entanto, o comunismo, segundo a visão duginiana, teria falhado por ser ateu, materialista e por querer se sobrepor às nacionalidades, por meio de uma união comunista internacional. O próximo movimento seria aquele que o professor Dugin chama de Terceira Via, que nada mais é do que o fascismo que se manifestou na Itália e na Alemanha. Este teria uma característica anti-individualista também bastante forte e isso é louvado no eurasianismo. Seu ator político principal é a nação. O defeito do fascismo, porém, estaria em sua xenofobia e racismo.

Após essas três teorias políticas, a Quarta Teoria Política, representada pelo eurasianismo, seria como uma evolução delas. Na verdade, seria como uma lapidação, principalmente do comunismo e do fascismo. O que o eurasianismo propõe é que simplesmente tome-se as ideias anticapitalistas, antiliberais e anti-individualistas dos dois movimentos anteriores, além de seu coletivismo e de sua índole revolucionária, apresentando uma nova versão ideológica, abrindo mão apenas daquilo que diz ser moderno neles e incompatível com a Tradição.

Fica claro, portanto, que a Quarta Teoria Política nada mais é do que mais uma manifestação revolucionária. Ela possui o mesmo espírito destrutivo dos movimentos ideológicos anteriores. Apesar de afirmar que pretende estabelecer um respeito ao tradicionalismo, propõe o fim do mundo como o conhecemos. À maneira revolucionária, deseja que não se deixe pedra sobre pedra do modo de vida atual (inclusive suas conquistas democráticas e a favor da liberdade do indivíduo), para o restabelecimento de um tipo de sociedade que se supõe ter existido num passado longínquo.

No entanto, que novidade há nisso? Não foi exatamente isso que todos os movimentos revolucionários propuseram? Não é essa crítica à forma de vida contemporânea e o sonho de trazer de volta algo de uma Era de Ouro, quando tudo parecia ser melhor e mais saudável, que estão contidos nos escritos dos socialistas utópicos, desde o século XVI?

Além do mais, apesar do professor Dugin se apresentar com um tipo de apóstolo antimoderno, ele mesmo está tomado de modernismo. Apesar de possuir uma retórica tradicionalista, seus valores basilares são todos modernos. 

Em primeiro lugar, o professor Dugin afirma que sua concepção do indivíduo é absorvida de Heidegger (um filósofo moderno). O sujeito da Quarta Teoria Política deve ser encontrado no conceito heideggeriano de “Dasein” (ser aí/aqui). No entanto, o “dasein” é tipicamente um conceito moderno, pois configura o indivíduo não como um ser metafísico, ontológico, nem individuado, mas como potencialidade, basicamente. É um conceito existencialista, que praticamente despreza o ser enquanto ser permanente – o que não deixa de ser uma compreensão bastante moderna.

Outro conceito defendido pelo professor Dugin é a multiculturalidade. O tempo todo ele reclama da unipolaridade do imperialismo americano e reivindica a dissolução desse etnocentrismo. Porém, isso também é um conceito bem moderno, diferente da perspectiva tradicional que, baseada na centralidade da religião, era mais universalista.

Além disso, o professor Dugin é saudosista de um tempo que não conheceu, mas acredita ter sido superior em diversos aspectos. Porém, essa é outra concepção característica da modernidade que, desde o Renascimento (pré-moderno), busca, de alguma maneira, a restauração de formas antigas. O próprio Rousseau propunha algo desse tipo. Praticamente todos os socialistas utópicos propuseram isso. Hitler propôs isso. Apenas o marxismo tentou evitar cair nesse saudosismo, mas nem ele pôde evitá-lo, quando pensou no comunismo como um sistema de vida semelhante aos tempos primitivos, quando não havia divisão de classes. De qualquer forma, esse saudosismo é mais um elemento moderno existente numa ideologia que se apresenta antimoderna.

Com tudo isso, considero demonstrado que o Eurasianismo (denominado de Quarta Teoria Política) é uma teoria contraditória, pois, apesar de sua retórica tradicionalista, não passa de uma ideologia revolucionária e apesar de seu apelo antimodernista não deixa ele mesmo de ser essencialmente moderno.

A Sociedade Holística

O que atrai a simpatia de muitos conservadores brasileiros para o discurso duginista é o seu constante apelo à Tradição. O professor Dugin se apresenta como um verdadeiro apóstolo da filosofia perene e diz querer salvar o mundo da modernidade que o está destruindo.

Segundo o professor Dugin, esses valores modernos têm como princípio o mais puro individualismo, que é a causa de toda competição, egoísmo e materialismo que os caracterizam.

Isso, segundo ele, gera uma sociedade fragmentária, na qual não há qualquer senso de cooperação, nem identificação coletiva. Uma sociedade sem fraternidade e sem unidade.

As mais afetadas por essa influência ocidental sobre todo o mundo seriam as identidades nacionais que, corrompidas pela mentalidade individualista e competitiva que o Ocidente disseminou, enfraqueceram-se.

Por isso, Dugin entende ser importante resgatar um tipo de sociedade que ele chama de holística, a qual se caracteriza por ser, à maneira de comunidades antigas, mais orgânica e hierárquica.

Na visão do professor Dugin, esse tipo de sociedade holística é naturalmente mais fraterna, mais ordeira e mais voltada para a preservação daqueles valores que o mundo moderno destruiu.

Portanto, a proposta eurasiana acaba sendo coletivista. O mundo que ela quer erigir não preza, definitivamente, pela autonomia do indivíduo. Pelo contrário, sua preocupação concentra-se na unidade social e na identidade coletiva, bem à maneira fascista.

Por isso, o eurasianismo vai propor abertamente o confronto direto contra o Ocidente e contra aqueles valores que Dugin vai dizer que, por meio do projeto globalista, têm corrompido o mundo inteiro. Sua luta é, de fato, contra a liberdade que o mundo ocidental propugnou desde o advento de suas democracias liberais.

O truque eurasiano, porém, é identificar toda a libertinagem que há no mundo com a liberdade que o Ocidente promove. Parece que toda depravação que existe é oriunda do Ocidente e que o Oriente é um oásis de puritanismo. O que ele esquece é que o Ocidente sempre foi sustentado por princípios claros de comportamento, baseados em seu alicerce cristão, enquanto toda a liberalização sempre foi patrocinada exatamente por aqueles mesmos que estão do outro lado, promovendo ideologias coletivistas e revolucionárias.

Inclusive, o professor Olavo de Carvalho adverte-nos que a corrupção ocorreu principalmente do Oriente para o Ocidente, através da infiltração que os governos comunistas fizeram, direta e indiretamente, nas instituições ocidentais.

Além do mais, o professor Olavo vai lembrar-nos que os defensores dessas sociedades coletivistas não possuem qualquer moral para julgar o Ocidente, afinal foram exatamente essas sociedades, por meio de seus governos, que cometeram as maiores atrocidades da história. Especialmente a Rússia, com o seu projeto comunista soviético, foi a responsável por milhões de mortes no século XX.

Sempre é bom destacar que o coletivismo possui uma retórica encantadora. Desde o princípio, ele declara que busca liberdade, igualdade e fraternidade. Na prática, porém, mostrou-se intolerante e violento, sufocando qualquer tipo de manifestação livre do indivíduo, além de justificar toda forma de totalitarismos que, com a desculpa de agir pelo bem comum, fazem dos cidadãos seus escravos.

Na verdade, apenas o individualismo (no sentido filosófico desse termo) é capaz de gerar um ambiente solidário. Isso porque apenas ele permite a expressão da fraternidade espontânea. Afinal, é o individualismo, como a forma de vida que protege o cidadão da tirania governamental e coletiva, que respeita a integridade da pessoa humana.

Por isso, quem imagina que o sonho eurasiano representa algum tipo de libertação dos povos ou de promoção da liberdade do indivíduo engana-se completamente. Ele não passa de mais uma ideologia totalitária, com a mesma retórica de fraternidade e igualdade que todos os movimentos revolucionários usaram desde pelo menos o século XVIII.

Vítima do Projeto Globalista

Na ideologia eurasiana, os Estados Unidos aparecem como os pivôs de um projeto de dominação global, que pretende implantar, no mundo inteiro, seu estilo de vida, seu modelo econômico e sua democracia liberal.

Porém, o eurasianismo entende que esse modelo americano nada mais é do que a expressão do indvidualismo, a encarnação da mentalidade materialista, a manifestação do racionalismo iluminista e a dinâmica da sociedade aberta popperiana.

O eurasianismo conclui, então, que essa exportação forçada do modelo americano representa a corrupção do mundo, com o consequente enfraquecimento das manifestações tradicionais dos povos e fragilização das soberanias nacionais.

O professor Olavo de Carvalho, porém, em sua contestação, lembra, antes de tudo, que o projeto de dominação global, arquitetado por ocidentais, não é o único existente, mas concorre com outros dois, a saber, o Russo-Chinês e o Islâmico.

O projeto Islâmico nada mais é do que uma consequência da própria teologia muçulmana, interpretada politicamente, que convoca seus fiéis a expandir a fé islâmica por todo o mundo, nem que seja à força; o projeto russo-chinês, do qual o eurasianismo é sua expressão mais atualizada, nada mais é do que a continuidade da velha utopia comunista, com algumas adaptações, mas conduzido pelos mesmos personagens – afinal, toda a elite russa é composta por ex-membros da nomenklatura soviética, que saíram da URSS milionários e mais poderosos do que nunca.

Quanto ao projeto de dominação global ocidental, o professor Olavo de Carvalho não nega sua existência, inclusive atribuindo a ele o nome de Consórcio, mas contesta a interpretação do professor Dugin de que esse é um projeto americano. Segundo o professor Olavo, os Estado Unidos, especialmente seu povo, são uma vítima do Consórcio, que os usa – de sua prosperidade e poderio militar – para a consecução de seus próprios objetivos.

Isso porque o americano médio é nacionalista e cristão. Sua cultura é baseada na valorização do indivíduo e em sua proteção contra os poderes deste mundo. A Constituição Americana é totalmente fundamentada nesses princípios, inclusive reconhecendo os direitos dos cidadãos diante de seu próprio governo.

Sendo assim, esse nacionalismo americano acaba sendo um entrave para as pretensões do Consórcio, que são alicerçadas numa ideia coletivista. Os globalistas insistem, por meio dos movimentos que patrocina, que, antes de tudo, importa a coletividade e os interesses do todo. O ambientalismo é o exemplo notório desse tipo de mentalidade, que sufoca o indivíduo em favor de um suposto direito coletivo.

O povo americano configura-se como um obstáculo que os globalistas precisam superar e fazem isso, antes de tudo, tentando corromper sua cultura. Portanto, diferente do que afirma o professor Dugin, não são os Estados Unidos que corrompem o mundo, mas os globalistas, muitas vezes em conluio com outros grupos – inclusive os russos, com a notória infiltração cultural marxista e institucional comunista – que fazem de tudo para corromper os Estados Unidos. O fato é que o projeto globalista esforça-se por sufocar o nacionalismo americano, enquanto usurpa suas riquezas e usa de suas instituições.

Na verdade, todos esses três projetos de dominação: o russo-chinês, o islâmico e o globalista, possuem um inimigo comum: o cristianismo, conforme expressão de fé de pessoas individuais e independentes das forças governamentais. Todos esses projetos expressam um ódio extremo pelo individualismo cristão. Para eles, a fé não pode se ruma expressão do homem em sua individualidade, mas, quando não for simplesmente extinguida, deve servir aos interesses do Estado.

Por isso, não dá para se empolgar com qualquer proposta vinda dos ideólogos russos. Nós que valorizamos a fé individual e a liberdade de consciência não podemos nos iludir com qualquer proposta oriunda de quem acredita que essa autonomia é um problema.

Breve Introdução ao Eurasianismo

Há uma guerra acontecendo, com o potencial de acarretar sérias consequências a todo mundo. Diante disso, acredito ser importante fazer uma análise mais aprofundada sobre as razões ideológicas que existem por trás das ações do governo de Vladimir Putin, e que estão além dos motivos geopolíticos e econômicos declarados.

Nem todo mundo sabe, mas Putin possui como que um conselheiro permanente em assuntos estratégicos. Alexandr Dugin é a mente por detrás de muitas das decisões do presidente russo e o principal responsável por fornecer para o governo uma estrutura ideológica que lhe dê sustentação.

Há dez anos, o professor Dugin – que possui alguns admiradores aqui no Brasil – foi convidado para um debate, por escrito, com o professor Olavo de Carvalho. O debate, então, transformou-se em um livro, chamado “Os Estados Unidos e a Nova Ordem Mundial”. Nele, a ideologia duginiana foi exposta e devidamente contraditada pelo professor Olavo. Nas próximas linhas, farei uma síntese daquilo que Dugin expôs, para que possamos começar a entender o seu pensamento.

Segundo o professor Dugin, depois do fim da guerra fria, nasceu uma Nova Ordem Mundial, baseada na cooperação entre os EUA e a URSS. No entanto, com a dissolução desta, os Estados Unidos passaram a buscar o controle hegemônico da política e da economia mundiais. Para isso, eles apostariam em três vias concomitantes: a do Império Americano (da preferência dos neocons), a da unipolaridade multilateral (da preferência dos democratas) e o do simples e direto governo mundial (delineada nas mesas do CFR).

Tudo isso porque, conforme pensa Dugin, os EUA enxergam a si mesmos como o pico da civilização e o fim da história. Com isso, entendem-se obrigados a impor uma ordem global unilateral, tendo seu estilo de vida como o modelo a ser seguido em todo o mundo. Nessa tentativa de imposição, os EUA estariam promovendo um período de transição, que seria a passagem do liberalismo para um tipo de pós-humanismo, com a destruição de qualquer entidade social holística e com a fragmentação e atomização da sociedade.

O que Dugin quer dizer é que os Estados Unidos querem impor o seu estilo de vida, baseado na competição, no individualismo e no materialismo sobre todo o mundo, sufocando as formas mais tradicionais e naturais de existência, dissolvendo as identidades nacionais e desprezando as raízes culturais dos povos.

Porém, explica Dugin, contra essa ordem americana, existem grupos que se opõem, propondo configurações globais alternativas. Um deles seria o mundo islâmico e outro o neo-socialismo. Porém, há também o eurasianismo, o qual o professor representa. O Eurasianismo propõe simplesmente a divisão do mundo em grandes espaços, com a união de nações através da comunidade de valores e princípios. Seria, então, um mundo repartido em blocos ideológicos, cada um possuindo seu próprio estilo de vida e, consequentemente, sua própria maneira de viver, incluindo aí, seu próprio sistema econômico. A proposta eurasiana é o rompimento com a ordem político-econômica global, como ela vem sendo desenhada, para apresentar um modelo alternativo, que, se diz não querer dominar o mundo inteiro, certamente quer ter autonomia para dominar as nações que estiverem sujeitas à sua própria ordem.

Sendo assim, é um objetivo manifesto da ideologia eurasiana fazer com que a Rússia rompa com o sistema global atual. Isso significaria, segundo sua perspectiva, a libertação em relação ao imperialismo americano e uma verdadeira independência daquilo que é considerado por ela como uma imposição de uma forma de vida que é uma afronta às tradições e história russas.

Há diversas teorias que sustentam a ideologia eurasiana e que precisam ser compreendidas com mais profundidade. Por ora, é preciso entender que se trata de uma ideologia revolucionária, com elementos socialistas e fascistas, que tem como objetivo não apenas romper com uma ordem imposta desde fora, mas que pretende criar uma nova ordem, da mesma maneira autoritária.

O Preço da Ordem e da Segurança

Muitos sonham com uma sociedade totalmente ordenada e plenamente segura, pois entendem a ordem e a segurança como valores absolutos.

Ninguém pode negar que a ordem e segurança são necessárias, mas quando se tornam absolutas destroem nossa humanidade.

Se tudo está ordenado, tudo é previsível, impedindo a manifestação da criatividade; se tudo está seguro, tudo está sendo monitorado, cerceando completamente a liberdade.

Como a criatividade e a liberdade são expressões da razão e a razão é o que nos faz humanos, pode-se dizer que em um mundo totalmente ordenado e completamente seguro nossa humanidade é mitigada.

Ordem e segurança são necessárias, mas precisam ser temperadas.

Sempre é bom lembrar que o Inferno de Dante era um lugar muito bem organizado e completamente vigiado.

É estranho dizer isso, mas, se quisermos nos manter humanos, precisamos preservar alguma desordem e insegurança.

Verdade Sequestrada

A censura, hoje em dia, é velada e, ao mesmo tempo, ampla. Houve épocas que o próprio Estado praticava-a. Porém, os termos eram mais bem definidos. Não havia a defesa de uma verdade absoluta, como se faz agora, mas de um regime. Era como se o governo dissesse claramente: “nós acreditamos que certas ideias são nocivas à sociedade porque representam uma ideologia que quer derrubar o sistema presente. Por isso, vamos proibir que se faça qualquer tipo de propaganda, explícita ou não, a favor dessa ideologia”. Os termos estavam postos e eram exatamente conhecidos. E por trás dela não havia a pretensão de uma verdade inegável, apenas a defesa de um regime político mesmo. Pode parecer uma censura menos justificável, mas certamente era menos hipócrita.

O que ocorre atualmente é diferente. Expressões, opiniões e ideias estão sendo previamente impedidas de circular. Quem se arrisca, está sujeito às sanções, como banimento dos veículos de comunicação, impedimento de faturamento e, em alguns casos, até uma conversinha com o delegado federal. Alguns, aqui no Brasil, acabaram inclusive presos.

Qual a diferença, porém, dos princípios que sustentam os censores da atualidade em relação aqueles que estavam ligados a determinados regimes políticos? A censura de agora é baseada na suposta defesa de verdades que se apresentam como indiscutíveis. Não se alega o combate contra uma ideologia nem a proteção de um sistema de governo, diz-se simplesmente que os censurados mentem. A defesa da verdade é o motivo da censura. Porém, que verdade é essa que não suporta a contradição?

Por mais incrível que pareça, os censores dizem defender a verdade científica, aquela mesma que só pode ser alcançada após intensos debates e que sequer se pretende no direito de pronunciar-se dessa maneira, pois faz parte da sua natureza estar sempre aberta para a apresentação de dados contraditórios.

Estamos, então, diante do pior tipo de absolutismo. A censura praticada tem sido pior até do que aquela baseada na religião, a qual, pelo menos, possuía claramente delineada a doutrina defendida. Além do que, era uma doutrina explicitamente defendida mesmo por aqueles que eram censurados. A censura era como que uma correção a um grupo que acreditava na mesma coisa que seus censuradores. O objetivo era evitar a cisão, a heresia.

No mundo de hoje, por tratar-se de um mundo plural, isso não tem mais nenhum sentido. Não existem mais crenças comuns, nem doutrinas universais que suportem o banimento de heréticos. Independentemente do quanto isso é positivo ou negativo, cada pessoa, teoricamente, tem o direito de acreditar no que bem entende, falar sobre o que bem entende e até divulgar essas suas convicções, sem que isso devesse lhe causar qualquer tipo de prejuízo.

No entanto, já não são mais doutrinas, nem teses, nem ideias que sustentam a censura, mas a simples defesa da verdade, a qual ninguém sabe quem a definiu e nem de onde surgiu. Simplesmente, uma dita verdade é lançada na cara de todo mundo que, mesmo sem ter qualquer relação com ela, é forçada a engoli-la.

Isso é bem estranho, pois como se pode falar de uma verdade imposta em uma sociedade que cultiva o pluralismo e o relativismo? Parece claro que isso tudo não passa de um pretexto para defesa de outros interesses muito mais mesquinhos.

O fato é que quando uma verdade está de antemão definida, a ponto de sequer poder levantar-se qualquer tipo de objeção contra ela, sob pena de sofrer as mais duras penas, significa que a sociedade alcançou um estágio de totalitarismo inimaginável até para as épocas de governos ditatoriais. Isso porque nestes, pelo menos, os motivos do censor eram evidentes, enquanto, agora, são ocultos.

Vivemos um período contraditório e perigoso. Enquanto parece que praticamente não existem mais ideologias, nem doutrinas que possam ser usadas para cercear a liberdade das pessoas, a criatividade humana foi mais longe e sequestrou a própria verdade para fazer isso. Por mais que seja uma verdade que ninguém sabe dizer por quem foi definida, ela está lá, firme e inabalável, ajudando a calar aqueles que dizem também querer revelá-la.

A verdade só se insinua onde a razão caminha livre. Essa que estão dizendo defender não pode ser a verdade, mas um simulacro, uma falsária que, mantendo a verdadeira encarcerada, toma seu lugar, porém, sem as sutilezas e complexidades da original, mas com rigidez, intransigência e brutalidade.