Há um tipo de erro de pensamento teológico que se dá por excesso de piedade. Ele ocorre quando, ao se conceber os atributos divinos, tender ao entendimento de que, quanto mais absoluta for essa concepção, mas correta ela será. E é assim que muitos teólogos pensam a soberania de Deus. Raciocinam que imaginar maior autonomia do ser divino significa ser mais piedoso e, pelo contrário, quanto mais se pensa em qualquer tipo de limitação da parte de Deus, mais esse pensamento é blasfemo.

Esta é uma sutileza que poucos percebem, mas está no coração da mentalidade calvinista, por exemplo. E aí reside uma confusão. Não é a concepção em relação ao tamanho do poder divino que faz o pensamento mais verdadeiro, nem mais piedoso, e, sim, a realidade que o faz. Quem pensa os atributos divinos deve buscar a verdade, a realidade, não simplesmente o raciocínio lógico de que quanto mais o atributo for pensado absolutamente mais certo ele estará.

Deus é soberano e não há um cristão que possa negar isso. Porém, certas linhas teológicas inclinam-se a pensar que sua concepção sobre essa soberania é tão mais cristã quanto mais absoluta ela for. Isso é tão verdadeiro que tendem a acusar concepções que sugiram algum tipo de limitação (mesmo que seja uma autolimitação) dessa soberania como herética.

Para essa teologia, não existe a possibilidade de Deus, no uso de sua soberania, limitar-se, deixando certa autonomia para o homem na direção de seu destino. Meramente sugerir isso já seria prova de impiedade ou de descrença.

Essa forma de raciocínio permeia as concepções teológicas desse tipo de pensamento, não apenas em relação à soberania divina, mas também quanto à soteriologia, antropologia e o livre-arbítrio. O princípio é sempre o mesmo: quanto mais absoluta for a concepção, mais piedosa ela é. Assim, posta está a base para a eleição incondicional, para a depravação total e para o monergismo.

Na verdade, o erro maior não está nem em conceber os atributos divinos de maneira absoluta. Isso, todos os pensadores cristãos, desde pelo menos Santo Agostinho, fizeram. O problema reside no momento de pensar nas consequências práticas disso. Isso porque entender que Deus é absolutamente soberano não significa necessariamente que imaginar que seus atos são sempre despóticos e que Ele, em sua soberania, não possa conceder certa (talvez ampla) liberdade para a atuação humana. Afinal, só um Deus soberano poderia autolimitar-se. Aliás, se é para pensar como esses teólogos do absoluto, não poder fazer isso seria até uma certa limitação em sua soberania.

O fato é que pensar nos atributos divinos é pensar nos efeitos reais desses atributos, não apenas em sua descrição teórica. Soberania, amor, misericórdia, justiça são poderes reais, com efeitos reais e que se manifestam na realidade complexa e paradoxal do nosso mundo. Simplesmente imaginá-las absolutamente e crer que isso explica toda sua contingência é praticar uma teologia desapegada da vida. É pensar uma teologia como uma matéria acadêmica, forçando as pessoas a aguentar as consequências, ainda que absurdas, disso.

Que os atributos divinos são absolutos, ninguém pode negar. Porém, esforçar-se para entender como eles se materializam no mundo concreto, na experiência fática do ser humano, que é o destinatário final desses atributos, é que faz o verdadeiro teólogo.

Publicado originalmente no Teologosofia