Como eu escrevi há alguns anos, a chamada livre interpretação bíblica protestante não é um salvo-conduto para extrair, dos textos escriturísticos, aquilo que se bem entende. Pelo contrário, o intérprete da Bíblia está sujeito à verdade, à realidade e à real intenção do escritor, ou seja, está submetido ao espírito da letra. Portanto, a acusação de que essa livre análise representa, pura e simplemente, uma possibilidade de se interpretar o texto como bem se quer é uma falácia.

Isso não significa, aliás, como é comum a todo ato livre, que o intérprete protestante não corra o risco de ir além daquilo que está escrito, de inovar em relação ao que foi revelado, de criar doutrinas, sem que haja fundamento para isso. Este é um perigo real, que é característico quando existe a liberdade. Como Adão que, em seu livre-arbítrio, fez a escolha errada, nem por isso aquela liberdade foi tida por má em si mesma, o protestante é livre para analisar a Bíblia, com todos os riscos inerentes a essa empreitada e os perigos de errar nesse exercício, sem que isso torne tal liberdade um mal em si.

A despeito disso, não é difícil me deparar com protestantes que acabam cometendo exatamente aquilo que seus adversários lhes acusam. Invariavelmente, sou exposto a uma interpretação bíblica dada por eles que nada mais é do que uma mera inovação, sem lastro histórico qualquer, sem paradigma hermenêutico algum.

E a forma como apresentam tais comentários segue, invariavelmente, o mesmo roteiro: começa por uma rejeição leviana de uma doutrina qualquer, seguido por uma atitude de pretensa superioridade sobre o que acham ser um resquício de uma idéia ultrapassada, com a apresentação do que acham ser a verdadeira interpretação do tema, normalmente excêntrica e inverificável, tudo isso com aquele ar de quem resolveu definitivamente o problema apresentado.

Quando, porém, é feita uma avaliação séria sobre a interpretação oferecida, quase sempre o que resta dela é apenas uma idéia confusa, sem possibilidade de comprovação pelos meios normais de pesquisa e raciocínio e sem resquício histórico algum de debate sobre ela. No fim das contas, vejo que me deparei com uma inovação pura e simples.

Não que o intérprete esteja absolutamente proibido de inovar. No entanto, quais as chances de haver ainda algum tema que não tenha sido explorado nesses dois mil anos de história do cristianismo? Qual a possibilidade de ter ocorrido um insight absolutamente original, jamais ocorrido a qualquer pensador anterior?

Até porque, não lembro de, alguma vez, algum desses intérpretes inovadores serem representantes daqueles tipos realmente estudiosos e profundos, eruditos e de vasta cultura. Muito diferente disso, normalmente trata-se de pessoas apenas inteligentes, mas que sabem somente alguns detalhes superficiais da teologia e que, por isso mesmo, acreditam que estão preparados para entender, por si mesmos, as profundezas da revelação.

Em meu alunos, ao contrário disso, tento inculcar-lhes que a postura de um estudioso sério vai na direção contrária desses intérpretes cheios de originalidade. Quem busca compreender a verdade deve ter consciência que quase tudo nesta vida já foi pensado, refletido, debatido e exposto. Que aquilo que parece ser uma maneira nova de ver as coisas, é bem provável que já tenha sido refutada por homens muito mais instruídos e preparados. Que antes de interpretar, por si mesmo, algum texto, deve-se conhecer qual o estado dos debates sobre o assunto, para, aí, sim, ter alguma autoridade para tentar ir um pouco além.

O mais curioso é que a ânsia pela novidade, por ter algo inovador para apresentar como entendimento do texto bíblico, é inversamente proporcional ao estudo e à pesquisa séria. Quanto menos sabem, mais acreditam saber.