Certos personagens representam bem a época em que viveram. Caravaggio é um desses e a história da confecção dos seus quadros chamados “A Inspiração de São Mateus” nos mostra isso.
Conta-se que “A Inspiração de São Mateus” foi encomendada pelos padres da Capela de São Luis dos Franceses, de Roma, e que a primeira versão teria sido rejeitada por ser considerada indecente pelos religiosos, os quais teriam aceitado de bom grado a segunda versão.
Mas qual a diferença entre os quadros que teria causado toda essa celeuma?
Naquele aceito pelos religiosos, vemos o anjo apresentado num nível superior, como que ditando o conteúdo da Revelação, enquanto o apóstolo, apoiado desajeitadamente sobre um banquinho improvisado, com os pés flutuantes, parece preocupado apenas em anotar a mensagem, sem sequer olhar para o papel, numa expressão de respeito, obediência e até temor. Não transmite reflexão, apenas obediência.
No quadro rejeitado, São Mateus é retratado no mesmo nível do anjo, o qual conduz suas mãos, como se ambos estivessem, em parceria, construindo a narrativa. O apóstolo é retratado confortavelmente sentado, com as pernas cruzadas, numa postura firme e concentrada, absorto nas palavras a serem escritas. Aqui, já se percebe uma certa autonomia humanista.
Caravaggio, no primeiro quadro, parece expor sua visão renascentista do Evangelho, mostrando o santo numa postura ordinária e simples e o divino próximo dos homens. Como, porém, os padres teriam achado este um retrato indigno do santo, o artista se preocupa em entregar uma segunda pintura mais conforme a visão dos religiosos. No entanto, sem deixar de expor um tom crítico e até irônico, não exatamente na representação da obediência apostólica, mas em sua postura servil, afoita, preocupada e superficial. De qualquer forma, foi este trabalho o que mais agradou os encomendadores.
A verdade é que o contraste entre os quadros reflete o espírito do Renascimento, oscilante entre a religiosidade obediente e a busca por autonomia e vacilante entre a subordinação à autoridade e a liberdade de pensamento. Os “São Mateus”, de Caravaggio, são, de fato, o retrato de sua época.
Deixe uma resposta