Costumamos criar uma imagem relativa a cada período histórico, como se fosse um filme projetado numa tela ou um quadro pendurado na parede. Para cada época concebemos uma visualização característica e a julgamos conforme essas cenas. Tais épocas tornam-se, assim, como momentos estanques, como se a passagem de uma para outra se desse como que virando páginas em um álbum de fotografias.
Julgamos os tempos, muitas vezes, sem considerar os períodos anteriores, nem mesmo os mais imediatos. Sendo assim, tendemos a acreditar que certas características pertencem exclusivamente a uma época e não a outras. Mais ainda, ignoramos os períodos de transição, como se o advento de certas formas de pensamento e comportamento surgissem de repente.
No entanto, nenhum momento histórico retira suas energias e espírito de si mesmo. Geralmente, ele foi alimentado por longos períodos de maturação de determinadas ideias e circunstâncias. O que vemos florescer em uma época, não raramente, foi semeado séculos antes, passando por um processo de crescimento que permite ser contemplado somente quando já está maduro suficiente para se estabelecer.
O Renascimento é um desses períodos. Os saudosos da Idade Média costumam tê-lo como o início da decadência espiritual e intelectual do Ocidente. Vêem nele o centralismo do homem, a relativização dos costumes, o enfraquecimento da autoridade eclesiástica e concluem que se trata do momento da história quando iniciamos nossa derrocada cultural. Porém, quando investigamos a intelectualidade renascentista e observamos suas manifestações, testemunhamos homens que ainda vacilavam entre os motivos do período anterior e as novas concepções. Vemos neles pessoas que ainda procuravam manter a sujeição ao transcendente, mas que já não podiam abrir mão da autonomia epistemológica que haviam começado a experimentar.
Tecnicamente, considero o Renascimento como a verdade Idade Média, como o período de passagem da era teológica para a era científica. Em todos os renascentistas observa-se ainda fortes elementos do passado medieval, principalmente sua sujeição ao temas escriturísticos e seu esforço por harmonizá-los às novas maneiras de encarar a realidade, mas com maneiras que seriam inconcebíveis na Idade Média, como a reivindicação de completa autonomia na investigação da verdade, a partir da natureza.
Entre tantos elementos que poderiam representar o Renascimento, considero os dois quadros de Caravaggio, intitulados “A Inspiração de São Mateus”, e as circunstâncias que lhe envolveram como um exemplo perfeito da luta que havia no espírito renascentista entre o passado e o futuro. A impressão que eu tenho, ao refletir sobre as circunstâncias dessas obras, é que o pintor, ainda que forçosamente, expôs ali todo o conflito que havia entre a concepção antiga e a nova.
Conta a história oficial que “A Inspiração de São Mateus” foi encomendada pelos religiosos da Capela de São Luis dos Franceses, de Roma. Segundo essa versão, Caravaggio apresentou um primeiro quadro que fora rejeitado pelos eclesiásticos. Então, teria ele pintado um outro, com o mesmo tema e, este sim, teria sido aceito. Há outras versões dessa história, mas, ainda que ela não seja completamente verdadeira, serve bem para os meus propósitos de mostrar que Caravaggio apresentou conscientemente duas pinturas que se chocam em suas perspectivas e mensagens.
Fiz uma análise de cada aspecto que me chamou a atenção e comparei-os:
Considerando as duas pinturas, observamos que, na primeira, o apóstolo e o anjo estão num mesmo nível, indicando uma parceria entre Deus e os homens na documentação do Evangelho, enquanto, na segunda, o anjo encontra-se num nível superior, fazendo da Revelação uma obra exclusivamente divina; na primeira pintura, as mãos do anjo parecem conduzir suavemente o apóstolo, como se ambos estivessem, juntos, construindo a narrativa, enquanto, na segunda, o anjo transmite um ditado exato, mostrando com os dedos a exatidão do que está falando; na primeira pintura, o apóstolo parece refletir sobre o texto que está sendo escrito, enquanto, na segunda, ele parece apenas preocupado em reproduzir o que lhe está sendo exposto; na primeira pintura, a expressão do apóstolo é de alguém que está absorto no sentido das palavras que estão sendo escritas, na segunda, sua expressão é de respeito e até temor; na primeira pintura, o apóstolo está confortavelmente sentado, com as pernas cruzadas, mostrando estabilidade e segurança, enquanto, na segunda, ele se apóia apressadamente sobre um banquinho que, inclusive, está mal posto no chão, com um dos seus pés flutuando, o que dificilmente pode-se dizer que representa um estado de reflexão.
A impressão que as composições das obras de Caravaggio me passam é que o segundo quadro fora pintado quase como uma crítica à rejeição do primeiro. Usando de sua genialidade, o pintor italiano teria feito uma representação de um santo afoito e servil, talvez para transmitir a ideia de que isso resumiria a visão dos próprios religiosos que encomendaram o trabalho. O mais interessante é que, pelo que tudo indica, a segunda pintura foi aquela que agradou os clérigos, por ser, segundo a visão deles, mais condizente com a santidade do apóstolo, ainda que o único indicativo explícito dela fosse a auréola acima da sua cabeça.
Obviamente, estou tratando das impressões de uma pintura. Nem sequer estou adentrando em qualquer interpretação simbólica, mas apenas daquilo que ela me transmite diretamente. E, sendo assim, não consigo me furtar da sensação que tenho, comparando-as, de que a segunda obra tem um tom crítico que foi ignorado por quase todo mundo, inclusive pela posteridade.
De qualquer forma, eu vejo nessas duas pinturas um reflexo da mentalidade renascentista, que oscilava entre os motivos religiosos e a crescente busca por autonomia e individualidade, entre a manutenção do senso de hierarquia e autoridade e a liberdade epistemológica quase anárquica. Como eu afirmei acima, todo tempo é uma mescla do que foi e do que há de ser e o Renascimento não me parece ter sido diferente.