Filosofia Esclarecedora

Na cabeça de muita gente, Filosofia é algo complexo. Chegam a imaginá-la como um tipo de conhecimento esotérico, acessível apenas aos iniciados.

Os próprios filósofos acabam sendo os responsáveis pela incompreensão que cerca suas ideias, pois costumam expressar seus conhecimentos de forma hermética, com o uso de termos inusuais e raciocínios obscuros.

Parece até que a filosofia cuida de assuntos que não interessam a quase ninguém, apesar de seu objeto ser algo que interessa a todos nós: nossa própria existência.

Sendo assim, a filosofia não deveria se esconder atrás de conceitos impenetráveis e formas pomposas. Pelo contrário, sua função deve ser superar as aparências que se manifestam por meio de uma infinidade de elementos que escondem a verdadeira realidade por trás delas.

Pode-se dizer que o objetivo da filosofia é dissipar a confusão que os homens e a própria estrutura da realidade impõem. Assim, ela não precisa ser complicada.

Se a vida é complexa, a filosofia está aí para fazê-la simples, ou seja, fazer com que a consciência humana consiga identificar na existência alguma unidade.

É verdade que, às vezes, a própria realidade se apresenta cheia de dificuldades. Pois é nesse momento que a filosofia se faz importante, tornando compreensível aquilo que, em princípio, parece muito difícil de ser entendido.

O filósofo precisa lembrar que a função da sua ciência não é complicar, mas esclarecer. Por isso, seu esforço deve ser por torná-la inteligível, a despeito das dificuldades que encontre para dissipar a névoa de confusão que a realidade impõe. Como diz Locke, a filosofia deve ser complacente a ponto de se vestir segundo a moda ordinária.

Pensar por Palavras

Uma pessoa fala uma coisa, a outra aparentemente fala a mesma coisa e, no final, percebemos que elas estão falando coisas bastante diferentes. Este é o resumo das discussões que testemunhamos por aí. Os conversadores usam os mesmos símbolos, mas a realidade a que se referem, geralmente, são bem discordantes.

Isso acontece porque não sabemos o significado de boa parte das palavras que usamos. Aprendemos seus símbolos, mas não sabemos qual é a realidade que de fato se encontra por detrás delas. Com a educação formal que recebemos na escola, esse problema amplia-se formidavelmente. Somos inundados com termos e expressões sobre os quais, no máximo, possuímos uma ideia muito vaga e, só depois, e mesmo assim apenas em alguns casos, somos apresentados às coisas indicadas por eles. Nos acostumamos, então, a falar sem saber sobre o que estamos falando.

Durante toda a nossa vida há uma infinidade de palavras que só conhecemos pelos seus símbolos, seus sons e como uma referência distante a algo sobre o qual sabemos muito pouco. Ainda assim, é-nos exigido que manipulemos essas palavras no dia-a-dia, usando-as largamente como se delas fôssemos íntimos. O que mais existe são pessoas de inteligência normal falando coisas com uma compreensão muito limitada do que dizem. Verbalizam ideias, expressam pensamentos, raciocinam com base em sensações, mas são incapazes de identificar onde tudo isso se encontra na realidade. Possuem uma referência muito vaga daquilo que dizem, pois estacionaram nos signos. É como se falassem da doçura de uma fruta sem nunca tê-la provado. Se bem que, neste caso, ainda haveria a consciência de estar se referindo a algo que sabem que existe em algum lugar, enquanto em diversas outras situações, principalmente naquelas que tratam de coisas mais abstratas, pelo simples fato de conhecerem a palavra, acreditam que também conhecem aquilo que ela representa, o que é um engano profundo.

Vivemos sob uma cultura essencialmente linguística, imersa em abstrações que sequer são pensáveis diretamente. Ainda assim, acreditamos que sabemos exatamente a que elas se referem. Termos como “liberdade”, “amor”, “democracia”, “ética”, “virtudes”, “coragem”, “pecado” e uma infinidade de outros, sobre os quais se tem alguma ideia sobre o que significam, são usados abundantemente, mas acompanhados de uma incapacidade extrema de identificá-los na realidade. Assim, cada pessoa acaba fazendo sua própria interpretação daquilo que diz. Quando discute com alguém, nada pode garantir que esteja falando sobre a mesma coisa que a outra pessoa. É bem provável que não. Isso porque, apesar de usarem as mesmas expressões, é quase certo que cada uma tenha em sua cabeça algo bastante diferente do que há na outra. E se a discussão sobrevive é só porque faz uma referência, ainda que diáfana, à realidade – o que preserva a sensação de compreensão.

A verdade é que pensar por palavras é a grande enfermidade espiritual de juristas, teólogos, filósofos e eruditos em geral. E esta é uma doença contagiosa, que se espalha por toda a cultura, impregnando a mente de todo mundo. Hoje em dia, já não se pode confiar no que qualquer pessoa diz, pois é quase certo que o que ela diz não tenha muito a ver com o que aquela palavra realmente significa. Não é por acaso que as discussões dificilmente chegam a algum consenso. Com essa incapacidade de conectar as palavras com a realidade, o único resultado que se pode esperar é a mais absoluta confusão.

Escrita Habitual

Todo escritor passa por fases desérticas, quando seu gênio parece adormecer e seus textos se apresentam burocráticos, sem vida, protocolares. Para ele, não há momentos piores do que esses nos quais parece que seu espírito se apaga e sua energia criativa se dissipa.

Muito do sofrimento do escritor é causado por sua dependência da inspiração. Sofre porque espera que ela surja de repente, como uma entidade, e insufle em sua mente as palavras e ideias que serão jorradas no texto, quase como uma possessão mediúnica. Não vou negar que, algumas vezes, isso acontece, fazendo com que as letras pareçam ser vomitadas, como em um reflexo fisiológico. Em momentos assim, parece que o escritor não pensa, mas apenas permite com que o fluxo das ideias se transponha de sua cabeça até o texto.

No entanto, não é sempre assim. Talvez, na maioria das vezes, seja necessário que o escritor tenha de debruçar-se sobre o texto com muita atenção e cuidado; será preciso concentração e esforço para fazer com que suas ideias apareçam e ganhem vida; exija-se disposição para que a redação tome forma. Por isso, alguém que tenha a escrita como uma atividade regular não pode depender da inspiração. Quando ela surgir, obviamente, será bem vinda e enriquecerá seu ofício, mas é preciso saber o que fazer quando Momo, a divindade dos escritores e poetas, decide se afastar.

Portanto, o escritor, se quiser se tornar independente da inspiração, precisa fazer da sua escrita habitual, ou seja, forçar-se a escrever mesmo naqueles dias quando parece que nada de bom e útil irá sair de sua redação. Isso porque a escrita habitual concentra o espírito nas letras, na disposição das palavras, na associação das imagens. Como uma máquina lubrificada, faz com que a mente se mantenha iluminada para manipular os argumentos, permitindo com que as ideias manem com muito mais facilidade e fluidez.

A inspiração – aí, sim – qao encontrar o hábito, torna tudo ainda mais produtivo, pois parte de algo que já está funcionando bem, elevando-o à excelência.

O Preço do Conhecimento

Há dois motivos para não sermos compreendidos: o primeiro, quando falhamos, por ignorância ou imperícia linguística, na transmissão de nossas idéias; o segundo, quando o nosso interlocutor é incapaz de apreender o sentido do que estamos lhe dizendo. Ambos os motivos têm consequências, mas enquanto o primeiro gera, no máximo, a impaciência no ouvinte, o segundo pode provocar nele pavor.

Sócrates explica isso em sua Alegoria da Caverna, ao contar sobre a pessoa que, após deparar-se, pela primeira vez, com a luz, tomada de compaixão pelos antigos companheiros que permaneciam nas sombras, retorna até a cova escura, onde eles estão, para contar-lhes a novidade. No entanto, nesse trajeto de retorno, já não mais adaptada à escuridão, impossibilitada de enxergar qualquer coisa com distinção, age de maneira desajeitada e esquisita, provocando, nos moradores da caverna, estranheza e medo.

Na vida real ocorre o mesmo. Quem se depara com um conhecimento que não está imediatamente disponível às pessoas comuns não consegue mais fazer uso das categorias e fórmulas usadas em seus tempos de ignorância. Assim, quando tenta se comunicar com os ignorantes, aos olhos destes acaba parecendo um excêntrico. Os ignorantes, então, concluem que o conhecimento transmitido pode ser perigoso e, por mais que não o entendam, acham melhor afastar seu portador.

Diversos alunos e leitores meus relatam algo semelhante: que, ao contar para seus amigos e familiares sobre o conhecimento que adquiriram, são tratados como estranhos, loucos e até perigosos. No entanto, o principal motivo não costuma ser a discordância dos ouvintes, mas o medo provocado neles por algo tão fora do seu universo de consciência.

Este é o preço que o conhecimento cobra. Sendo assim, para quem o adquire, resta esforçar-se por traduzir, em uma linguagem compreensível aos ignorantes, a nova realidade ou, simplesmente, conformar-se com a reprovação social. Se bem que o exemplo de Cristo, que fez bem aquilo, mostra que esta geralmente é inescapável.

Pensamento Crítico

Pais, com ares de que irão tomar uma grande decisão, saem de casa garbosos, em busca de uma escola na qual confiarão seus filhos. A oferta é grande e as promessas infinitas. Escolhem uma que na propaganda afirma que aplica os métodos mais modernos da pedagogia. Como tudo o que é moderno parece bom, marcam uma reunião com a diretora. Ao chegarem à escola ficam encantados com a ordem e segurança do local. No entanto, como são pais que se preocupam em proporcionar a melhor formação para suas crianças, ficam seduzidos pela promessa de que ali os alunos são estimulados a desenvolverem, desde cedo, um pensamento crítico.

Aqueles pais, já imaginando, cheios de orgulho, seus filhos vociferando, numa tribuna qualquer, à maneira de uma Greta Thunberg, contra os males da sociedade, assinam o contrato e voltam para casa aliviados, certos de que cumpriram sua missão.

A escola, então, cumprindo fielmente o prometido, começa a estimular as crianças a olharem para a sociedade de maneira a examiná-la, avaliá-la e julgá-la. Não demora e logo surge uma redação sobre algum tema espinhoso (pode ser sobre as queimadas na Amazônia, o racismo estrutural, a participação feminina na política ou mesmo sobre os altos índices de criminalidade).

Não importa que aqueles pequenos infantes não tenham a mínima ideia do assunto que vão tratar; que não tenham a mínima capacidade de tecer qualquer comentário sobre o tema; que não saibam nada da vida, nem tenham estudado nada sobre a matéria. O que importa, para os novos pedagogos, é que, sendo estimuladas a dar suas opiniões, fortalecerão sua capacidade de criticar, que é o objetivo pedagógico declarado.

Desenvolver o pensamento crítico até seria louvável. O problema é querer fazer isso desde muito cedo, estimulando as crianças a darem opinião sobre o que não têm a mínima noção, viciando-as em serem palpiteiras e a falar sem ter dedicado um mínimo de atenção e espaço ao assunto abordado.

Obviamente que, ao serem estimuladas a isso, aprendem a concentrar-se em seus próprios raciocínios, valorizando seus próprios processos cognitivos, enquanto desprezam a riqueza do conhecimento acumulado pela sociedade e os próprios fatos.

O resultado desse tipo de aprendizagem é a exaltação da opinião, não do conhecimento. Com o tempo, o apego às concepções pessoais torna-se tão forte que o aluno já não consegue conceber outras “verdades” senão aquelas que ele mesmo consegue formular. Suas opiniões acabam confundidas com a própria realidade.

Alguns métodos educativos modernos, portanto, tornam os jovens intelectualmente autofágicos e cognitivamente egocêntricos. São capazes de gerar falastrões, mas dificilmente formarão filósofos.

Isso é uma traição à própria missão da pedagogia, que não é fazer o aluno mergulhar para dentro de si mesmo, em um processo de retroalimentação de suas próprias concepções, mas conduzi-lo para além de suas experiências e perspectivas, colocando-o em contato com a riqueza de sabedoria que existe no mundo.

Na verdade, o objetivo da educação é tornar o aluno menos confiante em relação ao que pensa saber e fazê-lo desconfiar do que sabe, despertando nele o desejo de buscar o conhecimento fora, onde quer que o conhecimento esteja.

O fato é que educar (do latim ex ducere, ou seja, levar para fora) é tirar o indivíduo de dentro de si, de seu mundinho reflexo unicamente de suas sensações imediatas; é fazê-lo ver as coisas de maneira indireta; é ensiná-lo a olhar por outros prismas; é fazê-lo entender que o abismo entre o que se pode retirar da sua experiência direta e o que se pode absorver do conhecimento universal é imenso.

A função da educação é colocar o aluno em contato com o conhecimento universal. Se isso irá gerar nele um pensamento crítico, será meramente por um efeito indireto, porém nunca como meta; no máximo, como efeito indireto do desenvolvimento de uma mente capaz de ler a realidade.

Filosofia Prática

Qual a utilidade da Filosofia? Para o senso comum, que a vê como uma divagação estéril ou mera atividade acadêmica, nenhuma. 

Em geral, as pessoas acreditam que a filosofia se encontra longe das questões que fazem parte do seu dia-a-dia. Filosofar, para elas, é o mesmo que se perder em reflexões desapegadas do mundo real.

Muitas vezes, os filósofos contribuíram com isso, promovendo debates que interessavam somente aos especialistas. Eram os filósofos de gabinete.

Não surpreende que a percepção popular tenha dificuldade de enxergar qualquer ligação da Filosofia com a vida cotidiana. Exceto, quando, ao ser despida de sua vocação, ela é rebaixada a mero discurso motivacional.

No entanto, a Filosofia possui mais de dois milênios de ideias que formataram a mentalidade da nossa sociedade. É impossível que, nessa multidão de pensamentos, não existam aqueles que tenham aplicação na vida das pessoas. Não é concebível que sejam apenas séculos de palavrórios e controvérsias irrelevantes.

A Filosofia, como dizem, é a busca pela sabedoria e esta pressupõe saber agir de determinadas maneiras, em determinadas situações. Não existe sabedoria meramente abstrata. Ela sempre envolve algo além da mera reflexão, uma atuação visível.

É verdade que a Filosofia se apresenta, antes de tudo, como um instrumento para a compreensão da realidade. Só que, ao ajudar a compreender a realidade, não há como ela não ser útil na resolução de problemas concretos, na solução dos dilemas da vida, na superação de suas dificuldades. Nesse sentido, não há dúvida que a Filosofia é também prática.

Não que a aplicação prática seja seu objetivo. Este continua sendo a compreensão, o entendimento da realidade. No entanto, não há como compreender a realidade e isso não afetar diretamente a forma como nos relacionamos com ela.

Filosofia é, portanto, mais que reflexão; é um modo de vida; é uma capacitação; é uma maneira de estar no mundo e de encará-lo. Filosofia é mais do que uma matéria de estudo; é, além de tudo, uma maneira de viver.

A Vontade que Sustenta o Mundo

A partir do momento que os pensadores desapegaram-se da Revelação para investigar a natureza por conta própria, tornaram-se obsessivos por descobrir a lei subjacente que a sustenta. O objetivo era desvelar o processo que está por trás de tudo, que faz o mundo ser o que é e que demonstraria que Deus realmente não seria necessário.

Para isso, porém, era preciso que sua filosofia concebesse o cosmos como uma máquina, permitindo assim decifrar seu funcionamento, tornando tudo previsível, sem a preocupação de saber se há alguma inteligência por trás com o risco de tomar decisões inesperadas. Até porque o que mais incomoda a inteligência moderna, ansiosa por autonomia, é aceitar que possa haver porções da existência que sejam inexplicáveis, imprevisíveis, misteriosas. Aceitar que talvez ela dependa, no fim das contas, de uma mente que age como e quando quer lhe é aterrorizante.

Chesterton então toma essa busca por segurança dos cientistas e lança na cara deles que seus esforços são vãos, afinal, nada garante que exista uma lei que sustente toda a realidade. Ele observa que apenas testemunhamos uma mera repetição de fenômenos, e isso, seguindo o próprio rigor científico, não caracteriza uma lei, pois lhe falta um elemento crucial, que é a existência de uma inteligência que lhe determine. Leis são atos de vontade e chamar a mera repetição de acontecimentos de lei não passa de um eufemismo.

A repetição, em vez de indicar que o mundo possua um padrão impessoal e autônomo, insinua que é mais provável que haja uma inteligência determinando que as coisas ajam sempre da mesma maneira. Até porque a recorrência contínua costuma ser uma prova de que há vida envolvida no processo e não uma mera sucessão mecânica. Por exemplo, para acordar todos os dias, no mesmo horário, pela manhã, é preciso que diariamente se tome uma decisão nesse sentido. A repetição exige vontade.

Chesterton insiste que a reiteração dos fenômenos na natureza parece muito mais fruto do querer e do agir de alguém do que de um processo sem vida. Isso não significa que ele estivesse querendo impor uma nova filosofia, nem destruir a ciência. Seu objetivo era apenas ressaltar que aquilo que os cientistas chamam de lei da natureza não precisava ser, necessariamente, uma negação da vontade sustentadora de Deus. Pelo contrário, poderia ser exatamente a prova dela.

Democracia dos Mortos

Desde Platão, homens eruditos imaginam formas de governo que possam dar ordem à sociedade, para que ela funcione de maneira harmônica e eficiente. Idealizar os sistemas políticos passou a ser uma atividade corriqueira dos intelectuais.

Com isso, tornou-se lugar-comum a concepção de que se a sociedade é organizada de determinada maneira é porque homens inteligentes a configuraram dessa forma. Até mesmo a democracia acabou imaginada assim, como sendo um sistema pensado, desenhado em algum gabinete de um expert qualquer.

A democracia foi transformada em ideologia.

Chesterton, porém, deu uma conotação diferente à democracia, entendendo-a como o respeito às ideias preservadas pelos homens comuns de todas as épocas.

Por isso, ele vai conceber a Tradição e a Democracia como sendo uma única e mesma ideia, inclusive denominando aquela como “a democracia dos mortos”.

Na visão de Chesterton, é muito mais saudável ouvir o que os homens comuns sempre disseram do que dar atenção às ideias mirabolantes dos intelectuais.

O que o pensador inglês propõe é que a vontade da maioria, que é a característica elementar da democracia, seja estendida para além do presente, mas considere o que aqueles que já viveram nos legaram. Afinal, nisto estaria o verdadeiro conhecimento.

A verdade é que Chesterton tinha plena convicção de que ideologias não são combatidas com mais ideologias, por isso, em vez de afiliar-se a uma proposta social qualquer, preferiu abrigar-se no bom e velho senso comum.

A Racionalidade do Cristianismo

Quando abri o NEC, o objetivo era compartilhar, com quem se interessasse, minhas investigações teológicas e filosóficas. A proposta era oferecer reflexões mais profundas do que aquelas que comumente são feitas nas comunidades religiosas.

As abordagens tinham sempre um viés filosófico, mesmo quando os assuntos envolviam religião e espiritualidade. Sempre procurei manter um nível intelectual superior e mostrei para os meus alunos o quanto o cristianismo era uma proposta inteligível, perfeitamente compatível com análises racionais.

Fiz muitos amigos nessas aulas e trouxe para perto muitos companheiros antigos. No entanto, um deles sempre se negou a participar dos meus cursos. Não por ser despreocupado de assuntos intelectuais, mas porque, segundo suas palavras, a teologia não lhe interessava, afinal, ele era uma pessoa muito lógica.

Não sei se vocês conseguem captar o que está por trás do argumento do meu amigo. Segundo ele, estudos teológicos, que estão baseados em uma perspectiva religiosa e espiritual, não possuem a racionalidade mínima para satisfazer as necessidades lógicas de uma pessoa que valorize a inteligência.

Chesterton, certamente, identificaria, nesse meu amigo, o reflexo da forma moderna de pensar. No capítulo “O Suicídio do Pensamento”, do seu livro “Ortodoxia”, ele trata dessa característica que faz da modernidade arrogante e, ao mesmo tempo, contraditória.

O pensamento moderno enxergou-se como o ápice da racionalidade humana. O orgulho racionalista, cientificista e positivista eram evidentes. Ele realmente acreditou que havia superado a “superstição” medieval. De fato, seu objetivo era libertar-se das amarras do pensamento religioso. Ele queria ter autonomia para desenvolver, por si mesmo, as investigações para a compreensão das coisas. Para isso, escolheu abandonar as bases que sustentavam o cristianismo, como a Revelação e a religião.

No entanto, a modernidade não tinha como, simplesmente, negar os valores e princípios cristãos. Restou, então, para ela, replicá-los, porém, fragmentando a realidade que os sustentava. Levantou-se então contra o sistema de pensamento do cristianismo, não o negando, mas despedaçando-o.

O problema é que essa fragmentação do cabedal intelectual cristão, em vez de conduzir o pensamento humano para uma racionalidade superior, fê-lo tresloucado. Isso porque “quando um sistema religioso é estilhaçado (como na Reforma), não apenas os vícios que são liberados, mas as virtudes também são liberadas”. As ideias cristãs permaneciam vivas, mas agora, isoladas, passaram a vagar, sem rumo, no mundo. Isso fez com que ele ficasse “cheio de velhas virtudes cristãs enlouquecidas”.

Todavia, essa arrogância não foi apenas uma busca por independência, mas, por mais estranho que pareça, representou uma verdadeira revolta contra o excesso de razão escolástico. Sim, a modernidade, que se apresentou como a superação da superstição medieval, na verdade, estava apenas se levantando contra seu racionalismo.

Isso porque os intelectuais da Idade Média desenvolveram um sistema extremamente racionalizado de pensamento, o que só foi possível porque o cristianismo é uma religião essencialmente racional por ser uma revelação da realidade, a ser compreendida de maneira inteligente pelos homens; apresentar uma proposta que, para se tornar eficaz, depende de que o indivíduo a aceite racionalmente; conter diversos elementos moralizadores que são reflexo de uma doutrina, o que exige uma coerência lógica entre esta e o regramento que lhe segue. Inclusive, nas Escrituras, o próprio Messias é identificado com o Logos, que na filosofia grega representava a Razão. Essa relação é tão íntima que, não por acaso, “na medida em que a religião já desapareceu, a razão vai desaparecendo”.

O cristianismo nunca poderia ser um inimigo da razão, mas era necessário que fosse fiel a ela. A sobrevivência da religião sempre dependeu da manutenção de sua racionalidade. Esse é o motivo por que a religião católica (e mesmo a protestante) desenvolveu sistemas rígidos de proteção à coerência da fé. As inquisições, concílios e confissões existiram exatamente para proteger a inteligibilidade daquilo que era pregado, buscando impedir, com isso, que a religião se desvirtuasse em uma afronta ao pensamento. “Os credos e as cruzadas, as hierarquias e as horríveis perseguições foram organizadas para a difícil defesa da razão. São todas sombrias defesas erigidas em volta de uma autoridade central – a autoridade do homem de pensar”.

O fato é que, sendo o cristianismo uma expressão da própria realidade, comprometido com a verdade em sua inteireza e, por isso, completamente dependente da razão, qualquer tentativa de superá-lo não poderia culminar, por mera impossibilidade lógica, em algo superior, mas só poderia acabar, apesar de sua arrogância, em um tipo de racionalidade inferior.

Populismo Elitista

Eu sou um cosmopolita. Estou inteiramente inserido na sociedade moderna, com seus confortos e tecnologias. Almoço em restaurantes por quilo, peço pizza em casa e ultimamente sequer estou indo ao supermercado. Dificilmente ando a pé. Se o lugar para onde preciso me deslocar estiver a mais de duas quadras de distância, não titubeio em pegar meu carro.

Inclusive, há muito tempo não ia à feira. Nem havia razão para isso. No entanto, era domingo e a Leticia ia ficar o dia todo ocupada com um curso. Decidi, então, gastar um pouquinho do meu tempo nessa instituição milenar. Coloquei meus fones de ouvidos (daqueles grandes mesmo, que as pessoas já nem ousam iniciar uma conversa ou lhe fazer uma pergunta), liguei um Heavy Metal (este é o meu defeito, aliás. Inclusive, dizem que a música que você ouve na adolescência torna-se seu estilo preferido a vida toda. Foi assim que destruí minha capacidade de apreciar qualquer música que não pareça uma bigorna batendo no meu cérebro), fui direto ao carrinho de pastel e logo pedi um de queijo e uma coca-cola.

– Pra comer ou pra levar, senhor?

– Pra levar comendo, respondi.

– Melhor escolha, senhor.

Rimos.

Pastel numa mão, coca na outra e Threshold nos tímpanos – comecei meu passeio. De fato, eu não tinha o que fazer naquela feira, senão sentir o prazer de caminhar no meio da multidão (algo que eu não experimentava há algum tempo).

As feiras existem desde sempre. Foram elas que sustentaram os países da Europa Continental na Era das Trevas. Nelas, reúne-se verdadeiramente o povo. Não há nada mais democrático. Por isso, encontramos de tudo.

Enquanto eu andava, apreciava aquela sensação de realidade. O contraste com minha vida elitista e reclusa é evidente. Não há ali aquela ordem artificial criada por quem pretende manter tudo absolutamente seguro, nem a polidez de indivíduos carentes que se preocupam em demasia com a própria imagem. Na feira, há uma organização espontânea. De alguma maneira, cada um respeita o espaço do outro e tudo funciona perfeitamente bem. Existe também uma expansividade exagerada, que se torna histriônica. Os feirantes gritam muito e isso contagia o ambiente. Logo, não apenas eles, mas outros elementos ajudam a fazer daquele circo um lugar mais vivo e mais louco.

Durante minha travessia voluntária vi de tudo: discussões acaloradas, disputas por quem gritava mais alto o preço da fruta, velhinhos que pareciam perdidos em meio à balbúrdia, crentes evangelizando e até fazendo rodas de oração em volta de mendigos completamente confusos. Era dia de final de futebol e teve até guerra de gritos de torcidas. Já quase no fim, ainda me deparei com um “Sheik árabe” (vestido a caráter, obviamente), encenando uma luta de boxe (com luvas e tudo), com um sparring completamente machucado (mas não se preocupe, era só um assistente maquiado).

A sensação desse passeio foi deliciosa. Senti-me dentro do mundo, parte da sociedade na qual vivo e feliz por ter contato com aquilo que chamamos de povo. No entanto, pensando bem, todo esse sentimento só me ocorreu porque eu não precisava frequentar a feira todos os dias, nem acordar às três horas da manhã para preparar a barraca de frutas, nem voltar para casa esgotado depois de doze horas intensas entre gritos e esforços. A glamourização da feira só me é possível porque ela, para mim, não passa de um ambiente exótico, sobre o qual eu posso romantizar e pintar quadros divertidos. Se eu precisasse viver nela cotidianamente, me enjoaria do pastel, perderia a paciência com os mendigos, acharia os crentes inconvenientes e ficaria louco para pular em cima e calar a boca do primeiro feirante que gritasse perto do meu ouvido. A balbúrdia da feira, para quem a visita de vez em quando, pode parecer lúdica, mas para quem a frequenta diariamente é prosaica.

Tudo isso, me fez pensar sobre a pobreza. Ela também, com sua escassez, precariedade, falta de perspectiva, feiúra e insegurança não incomodam o pobre, mas também não o empolgam. É tudo apenas parte de sua realidade. Para o elitista, porém, que não a experimenta, senão pelas incursões semelhantes à minha, mas que pretende esbanjar populismo, a pobreza permite ser glamourizada, como se fosse algo até desejável em determinadas circunstâncias.

Tudo o que eu ouço da elite, quando ela se apresenta como defensora dos pobres, não passa de hipocrisia. Ela não suporta a vida simples, odeia suas limitações, não aguenta suas dificuldades e tem ojeriza do seu odor. A elite populista tem os ambientes pobres apenas como lugares exóticos, que ela resolve visitar, de vez em quando, quase como uma aventura no Safari ou como minha visita à feira.

Quando essa elite é política é ainda pior, porque a pobreza lhe serve como instrumento para fornecer-lhe a aparência de virtude que ela tanto precisa para manter sua retórica hipócrita. Sempre quando alguém se apresenta como o defensor dos pobres, já sei que se trata de um pilantra. Afinal, um defensor dos pobres, principalmente que vive desse discurso, depende que os pobres existam para que sua identidade não se perca.

A verdade é que os pobres não precisam ser defendidos. Eles só querem (como todo mundo) não ser impedidos de buscar sua própria felicidade. Os pobres não querem ser louvados. Eles só não querem (como todo mundo) ser tratados como massa de manobra nas mãos de especuladores ideológicos. Os pobres, no fim das contas, só querem ter o direito de tentar deixar de ser pobres.