A pequena caixinha chamada escola (carta aberta)

Dra. Rosely Sayão:

Em texto publicado no jornal Folha de São Paulo, chamado Fora da panelinha, é admirável tua preocupação com as crianças que vivem em famílias que optaram pela educação em casa, aquilo que em outros países é conhecido como homeschooling. Tuas afirmações são espantosas e merecem ser bem avaliadas.

Como psicóloga, sabes que qualquer ser humano, seja adulto ou criança, necessita de instrução e de direcionamento. Por si mesmo, o homem tende a se perder. Tu mesmo adquiriste teus conhecimentos aprendendo de teus mestres e lendo autores que, antes de ti, descobriram o que hoje tu podes saber simplesmente correndo teus olhos pelas letras de um livro.

Onde está, portanto, o conhecimento? Em edifícios criados para receber centenas ou milhares de crianças de uma única vez? Não, e tu sabes disso. O conhecimento está nos livros, nos trabalhos, nas publicações, nos registros das experiências e dos pensamentos. Também está na cabeça dos mestres que possuem a capacidade de transmiti-lo com sabedoria e paciência.

No entanto, quem escolhe os livros e os professores que ensinarão nossos filhos nas escolas? E qual o método de ensino? E o acompanhamento, quem fará? Ora, se eu posso escolher, segundo meu entendimento sobre qual o melhor material a ser usado, a capacidade do mestre que ensinará meus filhos, segundo o método que eu entendo mais eficiente, por que devo ser obrigado a depositar minhas crianças em um prédio no qual elas serão apenas mais uma dentro de um universo gigantesco, aprendendo não de acordo com suas capacidades e possibilidades, mas conforme uma média de conhecimento que possa abarcar todos que lá estão?

E que tu não venhas me dizer que os filhos não me pertencem e que eu não tenho direito de direcionar suas vidas. Tens filhos? Sabes o que é isso? Se tens, colocaste eles em uma escola que tu acreditas ser a melhor, que dará melhor ensino e os preparará melhor para o futuro. O que é isso senão o direcionamento de suas vidas? Não estás fazendo com tuas crias o que um proprietário faz com seus bens, aplicando onde acreditas ser o mais rendoso? Os motivos que me fazem preferir que eu escolha a forma como meus filhos vão estudar são os mesmos que tu tens para escolher a escola dos teus.

A diferença entre nós é que tu crês que a escola é realmente um lugar de conhecimento. Como típica acadêmica, prostra-te diante deste ídolo de pedra, que promete, sem cumprir, um futuro brilhante para aqueles que ingressam em seus templos. Tu és, inclusive, cria desse lugar. Como uma sacerdotisa, embriagada pelo vinho do falso conhecimento, inebriada pelas visões quiméricas de catedráticos charlatões, acreditas que fora desse seu universo não há conhecimento, não há sequer vida que valha alguma coisa.

Por isso tu afirmas que aqueles que optam pelo homeschooling o façam por medo do conhecimento. Em tua sandice universitária, vês esses como ignorantes, retrógrados, que temem expor seus filhos a novas teorias, novas formas de pensar. Diante disso, só posso te fazer uma simples perguntinha: de onde tiras tais parvoíces?

Em teu orgulho acadêmico, acreditas sinceramente que uma escola, simplesmente por ser escola, é a depositária do verdadeiro conhecimento. É óbvio que acreditas que todas as teorias, todas as descrições históricas, todas as hipóteses levantadas em sala de aula são inatacáveis. Para ti, o conhecimento é algo estático, propriedade de um grupo, principalmente daqueles que possuem a autorização governamental para fornecer diplomas.

Não percebes que o conhecimento é algo que está além dos muros da academia. Que são os homens que o carregam e o transmitem. Por isso, não entendes que a opção desses pais é, ao contrário do que afirmas, possibilitar que suas crianças tenham acesso a um conhecimento mais amplo, mais sólido e mais profundo do que as escolas podem oferecer.

Defendes as escolas como se elas fossem o paraíso do saber. Com isso, mostras que, além de não compreender o que é o conhecimento, ainda tens o olhar obscurecido para a realidade. Nunca ouvistes falar da péssima formação dos professores, da falta de estrutura das escolas públicas, da ausência de método no ensino e da grade curricular limitadíssima imposta pelo governo? De que escola te referes? Talvez, daquelas que apenas pessoas abastadas podem dar a seus filhos, das quais apenas as mensalidades são de valor maior que o salário de 90% dos brasileiros. Agora entendo porque acreditas que a educação em casa é o mesmo do que a perda do convívio social. Para ti, mulher de posses, há apenas dois ambientes sociais para teus filhos: a família e a escola. Não conheces nada além disso. Para ti, uma criança viver socialmente é ingressar em prédios que parecem mais presídios, cercados de seguranças e arame farpado, sendo monitorada todo o tempo, com horário para todas as atividades. Este é o teu conceito de liberdade, não é? Bom, é bem parecido com as utopias totalitárias imaginadas durante mais de quatro séculos até hoje.

Nunca passou pela tua cabeça que quando escolhes uma dessas escolas estás tentando dar a melhor instrução e o melhor ambiente para teus próprios filhos? E que diferença há entre isso e decidir dar toda a educação fora desse ambiente cerrado? Não, os adeptos do homeschooling não temem o conhecimento, mas querem oferecer para seus filhos mais conhecimento do que qualquer escola pode dar. Tu queres passar a idéia de que são estes os entenebrecidos, quando, na verdade, o que eles buscam é a verdadeira luz do saber.

Tu, com estas divagações, pelo contrário, demonstra-te preconceituosa. O que dizes parece demonstrar uma afeição à diversidade e à universalidade, mas denota, apenas, que não consegues pensar nada fora da pequena caixinha chamada escola. Devias saber que se há algum conhecimento na escola, ele veio de fora e não foi criado em sala de aula. Ora, se ele reside fora dos prédios escolares, por que não buscá-lo diretamente em suas fontes?

E ainda tens coragem de te mostrares amante da liberdade? Acusas os pais adeptos da educação em casa de a ofenderem ou temerem, mas não percebes que és tu que a odeia? Tu não consegues aceitar que os pais possam ter liberdade de escolher a melhor maneira de educar seus filhos. Nem de que esses filhos tenham a liberdade de aprender diferente e além do que se ensina dentro dos currículos herméticos determinados pelo Estado. Se tu amas a liberdade, se te delicias com a diversidade, por que tens tanta dificuldade de aceitar que pais tenham a liberdade de decidir pelo melhor para seus filhos e por que não aceitas a diferença que há entre a visão de mundo deles e a tua?

Na verdade, tu és como os outros: figem amar a liberdade, fingem defender a diversidade, mas odeiam tudo aquilo que é diferente do que consideram seu mundo ideal. És, de fato, intolerante e não sabes lidar com o que não conheces.

Além disso, o que escreveste apenas demonstra que sequer te informaste sobre a tradição do homeschooling, seus métodos, suas formas, suas possibilidades. Despejaste no papel apenas impressões e preconceitos. Com isso, demonstras muito bem o que acontece com aqueles que são forjados dentro dos pátios das academias.

Os filhos do ambientalismo

Desconfia de quem se mostra demais solícito com as crianças, disposto a ensiná-las nos caminhos certos da vida moderna e a discipliná-las em um pensamento coerente com o que há de mais politicamente correto. Não deixes teus filhos à mercê dos educadores, das políticas educacionais e dos currículos escolares; eles não existem para tornar tuas crianças boas, mas moldadas conforme à imagem e semelhança dos poderes deste mundo.

Quando vejo, como vi em uma reportagem na tv, uma ecologista dizendo que concentrava seu trabalho de divulgação nas crianças, por serem elas um grande instrumento propagador das idéias ambientalistas, onde, talvez, a maioria das pessoas tenham visto amor, bondade e as melhores intenções, para mim, era como se o próprio Satanás estivesse, esfregando as mãos, avisando que eles, os pequenos, lhes pertencia.

Desde Rousseau, com seu Emílio, é possível perceber tal obsessão: a moldagem das mentes infantes segundo a visão de mundo de seus educadores. Não são os pais, em seu ambiente familiar, transmitindo os valores herdados e as características próprias da família os que devem assumir a educação, mas, sim, os representantes dos poderes maiores, como o Estado, o Globo e, quem sabe, até os seres dos ares.

Com isso, esvaem-se os vínculos, eliminam-se os elos. Todos são forjados segundo a Grande Mente global, e apenas se vêem ligados a esta fraternidade mundial, que existe somente na cabeça de ideólogos de uma Nova Era onde o indivíduo não é ninguém em si mesmo, mas unicamente parte de um poder superior terreno.

Não abandones teus filhos! Não largue-os na escola, ficando tu aliviado por poder tê-los controlados, por outros, durante algumas horas. Mais ainda, não abandones teus filhos às ideias propagadas em sala de aula. Pergunta, indaga, investiga. Deseja saber o que eles estão aprendendo e, no que puderes, destrói as armadilhas postas em suas mentes. Tu és o educador. Tu és o transmissor de valores. Tu sabes o que é bom para eles. Não permitas que eles transformem teus filhos em teus acusadores e delatores.

Quando ouço uma criança me repreender por alguma noção segundo a visão politicamente correta moderna, sinto-me no romance de Orwell e percebo que o escritor não era apenas um visionário, mas um profeta. Filhos denunciando pais, crianças informantes delatando amigos e familiares, tudo isso parecia, até bem pouco, apenas uma hipérbole sombria de uma mundo opressivo. Mas não! Isso já está acontecendo e teus filhos estão sendo doutrinados para fazerem parte desse grande exército.

Não sejas tu, também, um acólito das idiotices modernas. Informa-te sobre a verdade, rastreia a informação e descobre quem são aqueles que promovem a agenda que, com a desculpa de proteger a terra, pretende destruir seu maior tesouro: o homem em sua individualidade.

Um trabalhador combativo

És operário e teu maior sonho é o reconhecimento disso: o descanso perpétuo

Conheces teus direitos. Sabes bem exigir que te sejam cumpridos, afinal tu és um cidadão e a lei te concede privilégios. Tu não entendes bem as coisas do espírito, da cultura e do entendimento, porém dizes exatamente o que a Justiça te deve, como protetora de teu patrimônio. Que ninguém falhe contigo, pois sabes muito bem onde requerer o que te cabe.

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Conservador, um horror

No Brasil que é teu e meu 

muito menos é um horror

um homem dizer-se ateu

do que um conservador.

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Minha perpétua dívida filosófica para com Olavo de Carvalho

Todos precisam de mestres, de pessoas que sejam seus conselheiros intelectuais, que ensinem o que eles mesmos aprenderam e, de alguma maneira, encurtem o caminho que seus alunos devam trilhar

Para quem não sabe, devo muito do meu conhecimento ao filósofo Olavo de Carvalho, hoje, também, com muito orgulho, meu professor. E por que esta homenagem? Simplesmente porque é necessário que minha consciência esteja limpa em relação às idéias que exponho neste espaço.

Conheci o professor em meados de 1998, quando adquiri, por mera curiosidade acerca do título, o livro “O Imbecil Coletivo”. Naquela época, eu, que já era um leitor voraz, porém conduzido pela maré cultural vigente, progressista e modernista, propagandeava as idéias básicas da comunidade esquerdista. Mesmo sem jamais ter sido um eleitor de partidos tipicamente de esquerda, repetia os mesmos chavões vociferados por eles e, principalmente, pelos seus asseclas da intelligentzia. Me sentia assim um jovem de vanguarda, sem preconceitos, um cristão liberal, solto das amarras da tradição. Estava bem acompanhado de pastores e líderes religiosos também modernos, que não se viam como parte do grupo reacionário e dogmático, como eles se referiam.

Voltando ao livro do professor Olavo, quando comecei a lê-lo, tomei o primeiro susto ao ver o encarte que acompanhava a obra. Um questionário engraçadíssimo sobre como o leitor poderia interpretar aquele trabalho. Nunca tinha visto ninguém se referir a si mesmo como um “mistifório reacionário”, por exemplo, já dando para os seus críticos o arsenal pronto para bombardeá-lo. Aquilo, para mim, além de absolutamente original me fez ficar muito curioso quanto ao conteúdo que vinha adiante.

Lendo a obra, não sei descrever bem minha impressão e reação. Na verdade, era uma mistura de estranheza, incompreensão, susto e atração. Mesmo sem compreender como alguns “ídolos” poderiam ser destruídos daquele jeito por um, ao menos para mim, desconhecido, não conseguia parar de ler e ser absorvido pela maneira absolutamente coerente e irretrucável como o autor expunha seu pensamento.

Ao fim da leitura, tive a certeza que eu não era mais o mesmo. Caíram os totens, ruíram as imagens de barro que estavam tão orgulhosamente postas em minha estante mental. Mesmo sem ter me tornado automaticamente o conservador retrógrado que sou hoje, o caminho já estava traçado.

Naquele momento, a estrada certa que eu seguia foi tomada por uma nuvem e suspendi minhas certezas políticas e filosóficas, revendo meus conceitos. Claro que isso durou algum tempo, afinal havia toda uma gama de novos autores, novas idéias que precisavam ser consultadas e analisadas para que eu pudesse fazer uma honesta comparação. E as comparações foram devidamente feitas. Lendo autores conservadores pude compreender o quão estava equivocada a visão progressista e como os ideais utópicos da esquerda eram falsos e maléficos. Mais ainda, dei-me conta do quanto fui enganado, usurpado em minha consciência, roubado em minha possibilidade de aprender as coisas como elas devidamente são. Percebi que durante toda a minha vida fui um receptáculo passivo de todo o lixo gramsciano, preenchido até a boca de palavras vazias que tinham o intuito único de agradar, mas não de demonstrar o que é real.

Voltando ao professor Olavo, minha homenagem é mais do que um agradecimento, é um reconhecimento de que ele foi a pessoa que me indicou, e até hoje me indica, o caminho das pedras para a compreensão de todo um cenário político e filosófico que se encerra diante de nós. E não tenho o mínimo receio de ser tachado como seu discípulo, ou como alguns pejorativamente chamam, de “olavete”. Isso é besteira. Todos precisam de mestres, de pessoas que sejam seus conselheiros intelectuais, que ensinem o que eles mesmos aprenderam e, de alguma maneira, encurtem o caminho que seus alunos devam trilhar.

Como o próprio Olavo, que não deixa dúvidas de que ele mesmo teve seus mestres, não me envergonho em nada em dizer que ele é o meu professor e dele absorvo o que há de mais profundo em matérias políticas e filosóficas.

Um dos motivos que me fez expor tudo isso é ver como tantos outras pessoas que passaram pelo ensinamentos do mestre, que absorveram dele quase tudo o que hoje proclamam aos quatro cantos, simplesmente agem como se tudo o que tivessem adquirido de conhecimento fosse fruto de suas próprias pesquisas e estudo. Uns têm a petulância ainda de dizer que o Olavo deu sua contribuição, mas já está superado; outros, talvez por um resquício de consciência, de vez em quando fazem uma citação quase que envergonhada de algo que o professor disse; e há outros, ainda, que simplesmente repetem aquilo que primeiramente foi dito por Olavo de Carvalho, omitindo completamente a fonte. O caso da ligação do PT com as FARC tem sido assim: articulistas, como o Reinaldo Azevedo, por exemplo, falam do Foro de São Paulo se referindo a ele como algo de notório conhecimento público, omitindo que, por muito tempo, Olavo de Carvalho fora uma voz quase isolada de denúncia daquele grupo.

Por essas e outras que achei devido colocar em meu próprio blog a indicação de que, tendo consciência de que o que tenho aprendido com Olavo de Carvalho é algo que durará por toda a minha vida, minha dívida filósofica com ele é perpétua. Perpétua porque após a morte não sei o que carregaremos daqui e o que nos será acrescentado. No entanto, nesta vida, minha dívida permanece.

Talvez alguns estejam enxergando nesse meu depoimento algum tipo de idolatria. Erram completamente os que entenderem assim. Minha admiração por Olavo não é pessoal, é intelectual – até porque não o conheço pessoalmente. Minha dívida é a gratidão por saber que sem a sua orientação ainda estaria repetindo os mesmos chavões dos senhores da academia. Se existe alguma coisa que falta neste mundo novo é isto: a gratidão. Não quero cair neste erro.

‘A Morte da Razão’, de Francis Schaeffer

O desespero do indivíduo moderno não é fruto de seu materialismo, mas de uma espiritualidade vazia de sentido, que valoriza o místico por ele mesmo, não havendo com quem manter comunhão.Tendo substituído a visão do homem integral pela dissociação da graça e da natureza, acreditou ter encontrado a liberdade, mas se deparou unicamente com a angústia. Vivendo uma autonomia sem fundamentos, tornou-se escravo de sua própria liberdade, restando apenas a desesperança de qualquer redenção razoavelmente racional.

Tendo substituído a visão do homem integral pela dissociação da graça e da natureza, acreditou ter encontrado a liberdade, mas se deparou unicamente com a angústia. Vivendo uma autonomia sem fundamentos, tornou-se escravo de sua própria liberdade, restando apenas a desesperança de qualquer redenção razoavelmente racional.

Francis Schaeffer, em seu livreto “A Morte da Razão”, compreendeu que essa maneira de enxergar a vida, lançando para o andar superior um misticismo irracional, é a marca dos nossos tempos, quando o espiritual se encontra numa dimensão superior, à parte, sendo alcançado somente por meio de um salto místico, como propunha Kierkegaard.

De qualquer forma, isso não ocorreu por uma escolha direta, mas por ser a única alternativa possível para quem perdeu todas as referências. Se antes o céu e a terra se encontravam numa relação medida por símbolos racionais que, a despeito da sublimidade das coisas celestiais, estavam presentes no cotidiano, a partir do Renascimento o paraíso desceu, se confundiu com o pó e perdeu o caminho de volta.

Acontece que o anseio espiritual não se perdeu, mas passou a ver-se preso a uma máquina determinista que o sufoca. Acorrentado a um mecanismo asfixiante, restou-lhe apenas o salto, um vôo irracional que tenta encontrar o alívio em um mistério inacessível à razão.

Diferente do homem anterior que, na racionalidade submetida a Deus, exercia seu pensamento livremente, o moderno se aprisionou nos cárceres de sua liberdade. Ao trazer o céu à terra, estraçalhou os símbolos que sustentavam sua existência, encerrando-os na mesma cova em que ele se encontrava. A partir disso, as formas clássicas de pensamento não puderam mais responder aos anseios íntimos de cada um e aqueles símbolos que se quebraram precisaram ser substituídos.

A irracionalidade, então, toma o trono celestial e, agora, sendo a senhora dos céus, reina absoluta sobre um mundo que a adora.

O homem, que era integral, que se relacionava com o céu com todo o seu ser, abdicou daquilo que o torna mais semelhante a Deus, encerrando a razão apenas ao cotidiano mecânico e utilitário. Para ela foram fechadas todas as portas da realidade superior, permitindo que neste plano ingressassem apenas a vontade e os sentidos.

Não é de se estranhar, portanto, que os filósofos modernos concluam que o homem nada seja e que o próprio Deus torne-se suspeito. Se o andar superior é o reino do irracional, que importa quem esteja lá? Dessa forma, são alçados para o céu qualquer fé, qualquer deus, qualquer espiritualidade. Se o místico é apenas um escape, não importa se há um objetivo, basta o salto.

A conseqüência final disso é a dúvida inclusive quanto à própria realidade. Ora, se o céu é o que eu coloco lá, como acreditar que haja um princípio inteligente? Deus, então, assume a forma segundo a vontade de cada um e se desfigura no desespero da humanidade.

O homem de agora está destituído de motivos, morto, perdido. Tornou-se um nada, um acaso. Se desfez em pedaços e talvez não se junte jamais!

Cada Coisa no Seu Tempo

Há tempo para tudo nesta vida. Viver é uma arte, e cabe a cada um saber tirar dela o que ela tem de melhor para ofere­cer. Salomão, provável escritor do livro de Eclesiastes, inspirado pelo Espírito Santo, fez uma meditação sobre a vida que nos faz refletir sobre como usufruímos o que temos. A vida é feita de momentos, e são estes momentos, acumulados pelo tempo, que fazem a história de cada ser humano.


Há tempo de plantar e tempo de colher, tempo de chorar e tempo de sorrir. Mais do que saber que tudo tem o seu tempo, o sábio nos ensina que não adianta tentar­mos enxergar nossa existência de uma maneira simplista. É frustrante imaginar que a vida vai ser alegre em todos os momentos, que não vão haver lutas e dificuldades. A vida é complexa, e sua beleza reside exatamente aí.

Para o cristão, a arte de viver torna-se ainda mais especial. Cercado de valores, o crente precisa enxergar a beleza da vida, ainda que sob a ótica de uma religião. O grande erro, provavelmente, está naqueles que espiritualizam a vida religiosa, sepa­rando-a como um momento sagrado, em contraste com os outros momentos seculares. Essa forma dualista de enxergar a vida acaba por impelir-nos à hipocrisia, pois quem assim a vê, tende a esperar os momentos sagrados para praticar a espiritua­lidade. Como ficam então os outros momentos? Se existem momentos espirituais, logi­camente os outros não o são. Esta é uma dedução lógica que nos leva a pensar como es­tamos errados quando fazemos tal distinção. Em nosso cotidiano, praticamos tantas atividades, que fica, às vezes, difícil diferenciar o que é trabalho, o que é estudo, o que é religião. Eu posso estar em meu trabalho e ali evangelizar alguém, ou posso estar na igreja conversando sobre futebol, por exemplo. Quem pode me dizer o que é e o que não é espiritual? Será que quando estamos comen­tando sobre o jogo de domingo, neste momento o Espírito Santo se apaga dentro de nós, aguardando o nosso próximo momento de espiritualidade? Será que Deus fecha seus olhos quando sentamos em uma roda de amigos e conversamos despreocupadamente?

Separar a vida em departamentos pode ser o maior perigo para um cristão. Nor­malmente, isso o conduz a manifestações hipócritas de santidade, a julgamentos alheios e a uma visão absolutamente estreita da vida. Quem pensa dessa maneira tem dois ca­minhos a seguir, ambos prejudiciais: tentar ser absolutamente ‘espiritual’ o tempo todo (e aí partir para a inconveniência) ou viver duas vidas completamente distintas. É muito mais maduro entender que a vida que temos é uma só. Ela é espiritual em to­dos os sentidos, pois o Espírito Santo habita em mim – e não dorme jamais. Se estou na reunião de oração, no culto de adoração ou no estudo bíblico, são todos esses momentos de espiritualidade. Mas se estou com os meus amigos, jogando conversa fora, isso tam­bém é espiritual ou o nome que se queira dar a esse momento.

Na verdade, o que estou tentando dizer, é que não devemos tentar detectar quais sãos os nossos momentos de espiritualidade, por ser isso um perigoso caminho para a compre­ensão da vida. Eu sou espiritual, e isso basta. O que faz a diferença entre o homem espiritual e o mundano são seus conceitos, precei­tos e valores. Quando nossos valores estão voltados para os bens celestiais, as virtudes, a piedade e o amor, tudo o que fazemos agrada a Deus.

Volto para Eclesiastes: há tempo para tudo. Há o tempo de orar, e o tempo de brincar; há o tempo de contrição, e o tempo do largo sorriso; há o tempo do choro, e o tempo da risada alegre; há o tempo da reflexão, e o tempo da banalidade sadia; há o tempo do velório, e o tempo das festas; há o tempo da carestia, e o tempo da abundância responsável; há o tempo da privação, e o tempo dos prazeres; há o tempo do amor ágape, e o tempo do amor eros; há o tempo de viver, e o tempo de morrer. Há vezes que melhor que uma oração (entendam o que digo) é a presença física num instante difícil. Quando alguém está sofrendo, às vezes, melhor do fazer uma oração pelo telefone, seja melhor uma visita pessoal e uma bate-papo agradável. Uma coisa não precisa excluir a outra, necessariamente. Este é o evangelho integral

O que precisamos é ter sabedoria para fazer as coisas no tempo certo, aproveitar cada momento, com responsabilidade e viver intensamente a dádiva divina que nos foi conce­dida: a própria vida.

A Complexidade da Vida

Em minhas aulas de Teologia, as pessoas sempre perguntam sobre as­suntos relacionados às suas vidas práticas, esperando, de alguma forma, ver seus problemas solucionados, através de um resposta pronta e decisiva. Normal­mente, minha resposta a essas perguntas é “Depende…”. A reação, contudo, é, invariavelmente, a mesma: um semblante que mistura dúvida e decepção.


Esperamos, ao fazer parte de uma comunidade religiosa, e de praticar­mos a fé, que todas as respostas para a nossa vida estejam disponíveis e prontas. Pensamos que se antes andávamos sem direção, agora tudo deve ser absoluta­mente claro, lógico. Ora, se Jesus entrou em nossa vida para nos tirar da perdi­ção, não faz sentido que tenhamos alguma dúvida, ainda. Esta é a idéia que nos envolve e, portanto, não responder a qualquer questão existencial é o mesmo que não conhecer a verdade.

Esse pensamento surge, principalmente, de uma visão muito pragmática da vida religiosa. A idéia de que todas as coisas têm uma causa eficiente e uma conseqüência lógica – a conhecida teoria da causa e efeito. Acreditam que todas as coisas, para acontecerem, de alguma maneira, têm uma causa que, ao ser acio­nada, redundará naquele efeito pretendido. Como se houvessem fórmulas pron­tas para todas as áreas de nossas vidas. Como se fosse possível dizer, com certe­za, que ao fazermos algo, o resultado será exatamente outro algo.

O grande perigo que reside nesse pensamento é o fato de que, ao perceberem que nem sempre a causa acionada resulta na conseqüência prevista, a fé enfraqueça, o medo apareça e a esperança morra. Homens e mulheres que acreditam que existem respostas prontas para todas as questões estarão sempre sujeitos à decepção.

Deus, ao enviar Jesus Cristo para morrer por nós, resolveu a questão crucial de nossa existência: quem somos e para onde vamos. Ficou claro o seu amor por nós, a ligação estreita que existe entre o homem e Ele e, de forma decisiva, mostrou que Ele nos quer ao seu lado, por toda a eternidade. Existencialmente, ao conhecer essa verdade, o homem se resolve consigo mesmo. Seu caminhar não é mais um vagar, mas passos firmes numa direção definida. Sabe quem é, de onde veio, para onde vai.

Acontece que, neste ínterim, há toda uma vida de experiências emocionais, físicas e espirituais. Tirando a certeza do principal, surgem as dúvidas acessórias que a acompanham. Mesmo sabendo sua origem e destino, mesmo conhecendo a razão de sua existência, há uma teia de dificuldades pontuais que, dia-a-dia, precisa ser tecida.

A natureza tem sua lógica. Biologicamente, todos os seres são, apesar de complexos, guiados por um caminho natural que se repete. A Física nos ensina leis invariáveis de causa e efeito. Até a História costuma repetir seus fatos, ainda que com variáveis marginais. Tudo isso, nos leva a crer numa lógica geral, num caminho óbvio, ao qual possamos nos apegar e nos sentirmos seguros.

Porém, a experiência nos mostra que a vida é muito mais complexa do que isso. Em seu desenvolvimento, nem sempre atos iguais resultam em fatos idênticos. Certezas transformam-se em dúvidas, quando não em decepções. Ao esperarmos que algo aconteça, simplesmente porque outras vezes daquela forma ocorreu, e, ao final, o que acontece é completamente diferente de nossa expectativa, aparece a desilusão.

Somos seres criados à imagem e semelhança de Deus. Isso significa que possuímos atributos semelhantes ao de Deus. Independente de nossas limitações, como Ele, pensamos, refletimos, imaginamos, decidimos. Esses atributos nos tornam, além de superiores ao restante da criação, também dominadores dela. Não quer dizer que possuímos todo o controle sobre os seus resultados, mas, sim, que, podemos influenciá-la de forma decisiva, posto nossa capacidade mental.

Com o conhecimento adquirido, o ser humano hoje é capaz de modificar, melhorar, experimentar de tal forma a natureza que dá a impressão de que todas as coisas estão sujeitas a ele. Mais ainda, que, conforme a experiência e o conhecimento adquiridos, todas as respostas são encontradas e que, chegará o dia, que nada mais será mistério, tudo se resolverá, e que o homem saberá como fazer todas as coisas. A ciência espera manipular tudo, este é o seu objetivo final.

Acontece que, ao adentrarmos no universo pessoal, no magnífico mundo individual que é cada ser humano, muitas certezas se esvaem, a lógica cambaleia, o inesperado surge constantemente e a complexidade da vida mostra toda a sua força. O homem manipulador que subjuga a natureza de forma tão eficiente, não encontra campo tão fértil na primícia da criação. Homens nascem e morrem, e o ciclo se repete, mas cada ser humano continua a ser único, cada vida uma história singular, cada alma um universo sem igual.

Somos semelhantes ao nosso criador – ser pessoal e inteligente. Ao possuirmos a capacidade de reflexão, muitas certezas acabam por cair por terra, pois o exercício livre do pensamento conduz o homem a viagens infinitas e incarceráveis, mesmo sabendo que tão pouco aproveitamos dessa liberdade.

Como esperar obviedades? Como saber as conseqüências, se estamos lidando com algo que é quase infinito? Será possível querer conhecer todas as respostas quando estamos lidando com um colossal universo de pensamentos, experiências, emoções e conhecimento? Talvez, melhor aprendermos a caminhar mais sentindo o cheiro das flores do caminho, do que sermos conduzidos de olhos fechados por uma trilha reta e sem graça. Conhecemos o final, o principal, isso basta. Ah, e a beleza reside nisto mesmo! Que chatice saber todas as coisas! Que enfado ter certeza de todos os resultados! Se é para sermos máquinas, porque pensar, porque sentir? Certamente, o que Deus nos deu é bem mais valioso, mais belo e, podemos dizer, perfeito. Talvez o nosso anseio religioso clame por certezas, porém, a nossa essência humana apenas se realiza nas vicissitudes da vida, na fé, na esperança e na surpresa. É sim, na surpresa! Esta que, apesar de fazer-nos temê-la, nos estimula a viver cada vez mais, sabendo que cada dia é um presente, e presentes são muito mais gostosos quando nos surpreendem.

Esperemos menos respostas, menos soluções. Vivamos na certeza de quem somos, de onde viemos, para onde vamos e na alegria de todo um mundo cheio de alternativas, que nos conduz a sermos criativos, vivos. O que precisamos resolver, o fazemos lidando com as conseqüências que se apresentarem, costurando caminhos inteligentes e saudáveis, sabendo que cada situação é única, ainda que possa ser parecida com outra. Sem esquecer a sabedoria divina, que é derramada por meio do Espírito Santo, que, mesmo não garantindo que os resultados serão exatamente o que esperamos, nos ensinará a dançar a música da existência de uma maneira muito mais graciosa.

Não faz sentido esperar respostas prontas às questões relativas ao homem e suas circunstâncias. Menos ainda esperar que Deus faça exatamente tudo igual, sempre. Não esqueçamos que semelhante a nós, Deus é um ser inteligente e pessoal. Se alguém quiser pensar nele como um ser mecânico, óbvio e previsível que assim o faça. Eu continuarei a vê-lo como o meu Pai – infinito e perfeito, minha origem, meu modelo, o exemplo do que seríamos se não tivéssemos as limitações que carregamos.

O Abismo

Há um abismo entre nós e Deus. Aqueles que se sentem íntimos do Criador, como se tivessem acesso VIP à sala do trono, podem até discordar, mas tenho certeza que a distância que existe entre nós e Deus é algo imensurável.

Vejo, de nossa parte, uma total incompreensão dos caminhos de Deus, uma presunção de sabedoria que desmorona aos primeiros sinais de decepção, uma idéia de fortaleza que rui diante das primeiras míseras dores. Há tantas doutrinas, tantas idéias, tantas certezas que torna-se impossível dizer quem tem verdadeiramente razão. Minha conclusão: nenhum de nós tem razão. O que temos é uma fagulha da verdade que mantém viva a chama da esperança e da fé; mas é apenas uma fagulha. Construímos castelos de convicções que podem ser postos no chão com argumentos tão simples que têm a capacidade de fazer desaparecer a nossa fé, ainda que nos vejamos como homens de grande espiritualidade.

Há um abismo entre nós e Deus, e o que vejo é uma tentativa imbecil de tentar entender os pormenores do Rei do Universo. Não vejo, diante de tudo isso, nenhuma solução palpável para se achar Deus, para entender Deus ou para viver a vontade de Deus.

Ele fugiu do homem, então? Evidente que não. Nós, com nossa estupidez, nossa corrupção e nosso orgulho é que caminhamos cada vez para mais longe de Deus. E não se engane, não estou falando daqueles que vivem longe dos preceitos religiosos (esses estão ainda mais afastados), mas falo de nós, os espirituais, os religiosos, os cumpridores da vontade do Pai, os filhos, a geração eleita. Nossos passos de religiosidade nos guiam não em direção a Deus, mas por uma linha paralela a Ele. Não nos faz chegar mais perto, a não ser em alguns pequeníssimos passos. Ainda assim, apenas nos momentos que sentimos ter maior intimidade com Ele. Mas são passos tão minúsculos que os dias, às vezes as horas, nos trazem ao status quo ante da mediocridade. Se nossas experiências, estudos e reuniões nos levassem para tão perto de Deus, não recuaríamos tão facilmente nos momentos posteriores. Essa volta à normalidade, às vezes para mais atrás ainda, só mostra que nossa aproximação da divindade foi ridícula. Não creio, porém, que este seja um sacramento eterno, ao qual estamos todos condenados. Alguns homens, ainda que poucos, parecem ter encontrado esse liame que conduz ao Senhor e trazem a nós uma luz de esperança de que é possível, ao menos, encurtar de forma mais significativa o espaço que existe entre nós e Deus. O que vemos neles é, antes de tudo, a total falta de presunção de conhecimento. Absolutamente abertos para receber de Deus a verdade, não discutiam com Ele, não acrescentavam nada a Ele; apenas reproduziam sua vontade. De um esvaziamento completo, surgia o preenchimento pelo poder do céu, sem dividir a glória eterna com a honra corrupta da terra.

Muitos já pregaram sobre isso, mas duvido que a maioria tenha entendido o significado desse esvaziamento. Talvez por ser um conceito tão simples traga tantas dúvidas para o homem. Esvaziar-se não é tornar-se um ser autômato, sem vontade e decisão, mas, sim, compreender a si mesmo como alguém absolutamente limitado, corrupto e ignorante. Já ouvi muitos falarem sobre fazer a vontade do Pai, esvaziar-se a si mesmo, não ser mais nós a viver, mas Cristo. Tudo isso é lindo, e correto. Porém, na prática, vemos a feitura da vontade de Deus conforme a nossa idéia do que seja a sua vontade. Praticamos um esvaziamento de atos, mas não de idéias, pois insistimos em encaixotar Deus em nossas doutrinas humanas. Achamos que não vivermos mais nós mesmos se relacione com vontade, quando, na verdade, tem mais a ver com submissão e obediência. Deus fala que para encontrá-lo o homem deve buscá-lo com toda a força e todo o coração. Acontece que essa busca não pode se dar numa corrida desenfreada por práticas de lisonjeio ou guarda de preceitos presumivelmente agradáveis a Deus. Buscar a Deus, normalmente, tem mais a ver com não fazer, não pensar, não construir, mas deixar Ele trabalhar em nós. Se achamos que podemos encontrar a Deus por meio de nossos atos, talvez estejamos caindo no mesmo erro dos homens que construíram a Torre de Babel. Seu final foi apenas confusão.

Somos incapazes, aceite. Acredito que apenas Deus pode nos conduzir para mais perto de si, desde que em nós não haja barreiras que impeçam o seu agir.

O abismo

Existe um abismo entre nós e Deus. Um abismo, em princípio, intransponível. É um abismo existencial, mas também um abismo cognitivo. Não temos naturalmente acesso direto a Ele, como não temos acesso aos seus pensamentos.

O abismo é tão profundo que os caminhos divinos nos constrangem. Eles destróem nossa presunção de sabedoria; abalam nossa confiança em nós mesmos.

Ainda assim, inconscientes dessa distância e cegos pela soberba, os homens espalham doutrinas, idéias, certezas e teorias, confiantes que, assim, saberão como se aproximar de Deus. Porém, com tantas razões disseminadas por aí, me pergunto: com quem está a verdadeira razão?

Minha conclusão: nenhum de nós tem a razão. O que temos é uma fagulha da verdade que mantém viva a chama da esperança e da fé; mas é apenas um pedaço dela. Somos, como disse Clemente de Alexandria, como os bacantes, disputando o corpo de Penteu e, cada qual, em sua ânsia de possui-lo por inteiro, ficando apenas com uma parte sua.

Essa parte que cada um de nós possui, porém, brilha mais que tudo e, inebriados por seu fugor, construímos castelos de convicções, só para vê-los postos no chão pela força das ações divinas incompreensíveis. Levantamos fortalezas de certezas, só para vê-las destruídas pela sabedoria inabarcável de Deus.

Tudo isso só me levar a fortalecer minha convicção de que há mesmo um abismo entre nós e Deus e o que passa disso é apenas o esforço inútil de quem tenta rastrear os pormenores de suas razões.

Estaríamos, então, destinados ao afastamento definitivo de Deus? Estaríamos condenados a não compreendê-lo inexoravelmente? Seria mesmo Ele apenas um Deus misterioso e inacessível?

Antes de tudo, é preciso dizer que, se esse abismo existe, somos nós, com nossa estupidez, nossa corrupção e, principalmente, nosso orgulho, os responsáveis por ele. Somos nós, com nossa pretensão de religião, que pretende explicar tudo, saber tudo, tornar tudo óbvio, que nos coloca a uma distância segura daquele a quem pretendemos cultuar. É nossa teologia que, prometendo levar-nos aos átrios divinos, tem nos feito mais andar em círculos no deserto.

Há, porém, alguns homens que, contrariando aquilo que parece irremediável, parecem ter, de alguma maneira, transposto esse abismo. Parecem ter encontrado um fio que conduz ao divino e, com isso, trazem para nós uma luz de esperança de que é possível, ao menos, aproximar-se desse Deus Absconditus.

No entanto, o que há em comum nesses homens não é algum conhecimento específico, nem a posse de um segredo esotérico qualquer. Sua exaltação não é fruto da razão, nem do mérito. Pelo contrário, o que se vê neles é uma total falta de presunção de tudo isso. Absolutamente desapegados do reconhecimento humano, ficam abertos para receber a verdade. Em vez de discutir com as razões divinas, resignam-se em aceitá-la, não tentando acrescentar nada a ela. Assim, com um esvaziamento completo, tornam-se cheios do conhecimento celeste, sem dividir a glória eterna com a honra corrupta da terra.

Esvaziam-se, porém, não tornando-se autômatos, sem vontade nem decisão. Eles, na verdade, abandonam as pretensões sobre si mesmo, reconhecendo aa própria ignorância e falibilidade. Seu esvaziamento é, diferente do que possa parecer, uma tomada de consciência, mas consciência da própria pequenez.

Assim, o homem esvaziado torna-se um receptáculo disponível à sabedoria eterna, que o preenche com suas dádivas infinitas. Esse homem, na verdade, deixa de buscar a Deus e passa a abrir-se para Ele. Deixa de confiar nas práticas, nos raciocínios e nos preceitos que prometem entregar-lhe a via certa para a divindade e permite ser conduzido pela força irrastreável do Espírito. No fundo, sua busca acaba constituindo-se mais em um não fazer, um não pensar, um não construir, deixando que Deus faça, pense e construa por ele e por intermédio dele.

A partir daí que nascem os verdadeiros sábios. Disso saem os verdadeiros homens espirituais.