Como pode um Deus perfeito fazer-se homem, como propõe o cristianismo? Como pode uma natureza infinita e incorruptível misturar-se a outra inferior e corrompida?
Na verdade, o homem possui duas naturezas. Uma, inferior, constituída pelo seu corpo, sua carne, seu sangue, de onde partem seus impulsos e suas reações. Nela encontra-se sua animalidade. Outra, superior, onde reside tudo o que é consciente. Nesta encontra-se sua mente e seu espírito.
Deus, por seu lado, possui apenas uma natureza. Ele não tem corpo, nem carne; nele não há impulso, nem instinto; tudo nele é consciente, tudo é razão. Deus é razão pura.
Obviamente, um Deus puramente espiritual não pode se misturar à animalidade, mas deve pairar, impassível, para além do mundo dos instintos. Consequentemente, um Deus que não se mistura à carne, que não reage, que não sente, só pode ser um Deus frio e distante. Não por acaso, chamaram-no de o ‘Deus absconditus’.
Por isso, o que o cristianismo fez foi uma subversão. Ele humanizou Deus. Fez dele carne, sangue, suor e lágrimas. Rebaixou-o, de alguma maneira.
Mas como o Deus-espírito pôde assumir uma natureza inferior que é a negação de sua própria natureza?
Pensemos: o homem é obra de Deus e toda obra existe, antes, no espírito do seu criador. Logo, o homem, antes de existir, tem de ter sido pensado por Deus e, por isso, gerado do interior do ser divino. Conclui-se que a carne não pode ser estranha a Deus porque nela esteve (ainda que em ideia) antes de ser. Portanto, não somos a negação de Deus, afinal, o que somos veio de Deus.
A verdade é que Deus permanece em nós mesmo quando passamos a ser mais do que uma ideia dele. Sendo uma expressão sua, carregamos em nós sua essência. Sendo sua imagem, refletimos seu ser em nós.
E ainda que nossas imperfeições nos afastem de sua pureza, é certo que não podem extinguir a fagulha de Deus em nosso ser. Podemos não reter toda sua infinitude, mas mantemos resquícios dos seus atributos, os quais permanecem em nós, ainda que de forma atenuada, parcial e dependente.
Podemos dizer, de fato, que somos como pequenos deuses, ou seja, cópias imperfeitas daquele que nos gerou.
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