Tag: Abstração

O monopólio do uso da força legítima pelo Estado e o pensamento por palavras

Jules Payot, criticando um vício que os alunos de filosofia costumam ter, dizia que eles erravam porque pensavam por palavras. Hoje em dia, este é um equívoco comum. Mesmo as pessoas mais simples cometem essa falha.

O problema de pensar por palavras é que a realidade é deixada de lado. A pessoa fica tão atraída pelos termos em si mesmos, que o que eles realmente representam é esquecido. 

Isso acaba conduzindo toda a lógica da idéia para algo completamente diverso do que ela é, de fato. Fala-se de outra coisa qualquer. E as conclusões, obviamente, nada têm a ver com a verdade.

Foi isso que aconteceu com a procuradora Débora Duprat, ao analisar a PEC 100/2019, que busca inserir, na constituição Federal, a autodefesa como um direito.

Confundida pela expressão “uso da força legítima é monopólio do Estado”, a procuradora a interpreta como se o Estado fosse o único habilitado a usar a força, em qualquer situação. Ou seja, Duprat deixou-se seduzir pela palavra monopólio e errou a partir daí.

Se a procuradora, porém, em vez de reter-se na expressão, procurasse entender o que ela significa, na prática, entenderia que o uso da força legítima pelo Estado significa, simplesmente, que o Estado é o único que tem a autorização para usar da força como instrumento de coerção, para que suas regras sejam cumpridas e para que o próprio Estado seja protegido.

Isso significa que ninguém, individual ou coletivamente, pode usar da força para impor sua vontade, nem mesmo para exigir que seus direitos sejam cumpridos. 

No entanto, há uma exceção óbvia: o uso da força para defender a vida e a propriedade quando elas estão sendo atacadas de maneira direta e evidente. Neste caso, a pessoa não tem a obrigação de manter-se inerte. Pelo contrário, tem o direito de agir para impedir que haja tal violação. Não fosse esse direito, ao ser abordado por um bandido, qualquer reação seria considerada ilegítima, o que é um absurdo. Assim, o direito a autodefesa não afeta em nada o instituto do monopólio do uso da força legítima pelo Estado. 

Portanto, as razões lógicas da procuradora são lógicas, no máximo, apenas formalmente, mas não têm nenhuma lógica na realidade.

Abstratismo epidêmico

Parece até um contrassenso, mas quanto mais as pessoas possuem deficiências cognitivas mais elas tendem a se abrigar sob as asas do pensamento abstrato.

Quase sempre, quando eu peço para meus novos alunos exporem alguma ideia, logo eles veem como uma miscelânea de frases prontas, slogans e expressões de efeito que, na primeira análise um pouco mais acurada, percebe-se que não querem dizer coisa alguma.

Chego a considerar que o abstratismo já é uma grande epidemia cognitiva, que afeta a maior parte das pessoas. E isso porque ele é como que um refúgio, onde elas se escondem para não ter de pensar as coisas como realmente as coisas são.

Afinal, é muito mais fácil falar sobre ideias que pairam nas nuvens e não podem ser colocadas à prova, do que se comprometer expondo algum pensamento que possa ser visualizado materialmente e, por isso, sujeito a todo tipo de análise e crítica.

É bem mais tranquilo lançar expressões como, por exemplo, “liberdade acima de tudo”, “alcance seu sucesso”, “todos são iguais” e “o importante é ser feliz” do que demonstrar, com argumentos e exemplos, como essas coisas se dão de fato.

Quando eu insisto e peço para materializarem o que dizem, invariavelmente percebem que nenhuma dessas expressões, nem qualquer outra ideia abstrata, é tão absoluta quanto parecia quando foram ditas dessa maneira desapegada da realidade concreta.

Por isso, se você quer ficar mais inteligente, force-se a sempre visualizar a concretude daquilo que está saindo da sua boca. Pergunte-se sempre como aquilo acontece na vida real e como se materializa. Questione-se se o que você está pensando é aplicável na realidade e se funciona de verdade. Desça do céu abstrato e coloque à prova suas ideias, deixando-as surgirem como corpos reais, sujeitos, por serem visíveis, a todo tipo de ataque.

Depois disso, fique apenas com aquelas que permanecerem intactas, deixando para trás as que se mostrarem fragilizadas e enfraquecidas. Pois, se você insistir em carregá-las, serão um peso morto insuportável, que servirá apenas para transformar sua caminhada em uma verdadeira ‘via crucis’ intelectual.