Tag: Chesterton

A Vontade que Sustenta o Mundo

A partir do momento que os pensadores desapegaram-se da Revelação para investigar a natureza por conta própria, tornaram-se obsessivos por descobrir a lei subjacente que a sustenta. O objetivo era desvelar o processo que está por trás de tudo, que faz o mundo ser o que é e que demonstraria que Deus realmente não seria necessário.

Para isso, porém, era preciso que sua filosofia concebesse o cosmos como uma máquina, permitindo assim decifrar seu funcionamento, tornando tudo previsível, sem a preocupação de saber se há alguma inteligência por trás com o risco de tomar decisões inesperadas. Até porque o que mais incomoda a inteligência moderna, ansiosa por autonomia, é aceitar que possa haver porções da existência que sejam inexplicáveis, imprevisíveis, misteriosas. Aceitar que talvez ela dependa, no fim das contas, de uma mente que age como e quando quer lhe é aterrorizante.

Chesterton então toma essa busca por segurança dos cientistas e lança na cara deles que seus esforços são vãos, afinal, nada garante que exista uma lei que sustente toda a realidade. Ele observa que apenas testemunhamos uma mera repetição de fenômenos, e isso, seguindo o próprio rigor científico, não caracteriza uma lei, pois lhe falta um elemento crucial, que é a existência de uma inteligência que lhe determine. Leis são atos de vontade e chamar a mera repetição de acontecimentos de lei não passa de um eufemismo.

A repetição, em vez de indicar que o mundo possua um padrão impessoal e autônomo, insinua que é mais provável que haja uma inteligência determinando que as coisas ajam sempre da mesma maneira. Até porque a recorrência contínua costuma ser uma prova de que há vida envolvida no processo e não uma mera sucessão mecânica. Por exemplo, para acordar todos os dias, no mesmo horário, pela manhã, é preciso que diariamente se tome uma decisão nesse sentido. A repetição exige vontade.

Chesterton insiste que a reiteração dos fenômenos na natureza parece muito mais fruto do querer e do agir de alguém do que de um processo sem vida. Isso não significa que ele estivesse querendo impor uma nova filosofia, nem destruir a ciência. Seu objetivo era apenas ressaltar que aquilo que os cientistas chamam de lei da natureza não precisava ser, necessariamente, uma negação da vontade sustentadora de Deus. Pelo contrário, poderia ser exatamente a prova dela.

A Loucura do Pensamento Moderno

Os pensadores modernos, otimistas com a capacidade humana de decifrar o mundo, decidiram, por si mesmos, apoiando-se em suas percepções, raciocínios e observações, apresentar, cada um, sua própria versão da realidade.

Para isso, negaram os princípios tradicionais da cultura onde estavam inseridos, e Chesterton, em seu livro ‘Ortodoxia’, identifica aí uma característica insana. Afinal, “quem pensa sem os apropriados primeiros princípios fica louco“. 

Mas, segundo Chesterton, a insanidade moderna não se caracteriza – como seria de se esperar – de raciocínios sem sentido. Pelo contrário, como nos loucos, que são “em geral, grandes argumentadores”, há sentido até demais nos argumentos modernos. Há, neles, um excesso de coerência, mas uma coerência interna, que parte dos seus próprios pressupostos, e segue justificando-os, movendo-se sempre em sentido circular.

Chesterton lembra-nos que “o louco costuma ter um raciocínio expansivo e exaustivo com reduzido bom senso“, ou seja, um raciocínio coerente consigo mesmo, ainda que apartado da realidade; é um raciocínio “tão completo como a do sensato, [apesar de não] tão abrangente“.

A partir dessa insanidade do pensamento moderno, Chesterton identificará sua limitação, que “esclarece muita coisa, mas deixa muita coisa de fora”; seu simplismo, que lhe dá uma aparência de perfeição, porém como uma “bala [que] é exatamente tão redonda como o mundo, mas não é o mundo“; e sua obsessão “no sentido de que toma uma explicação superficial e a leva muito longe“.

Por fim, Chesterton ressaltará aquilo que mais aproximará as filosofias modernas da loucura: sua autoconfiança, já que elas costumam apresentar-se como a resposta definitiva às questões a que se propõem e não costumam aceitar oposição. No entanto, só “os loucos nunca têm dúvidas“ e, não por acaso, “os homens que realmente acreditam em si mesmos estão todos em asilos de lunáticos“.

Para Chesterton, a enfermidade da filosofia moderna se encontra exatamente naquilo do que ela mais se orgulha: sua racionalidade. Até porque, o louco “não é alguém que perdeu a razão, mas alguém que perdeu tudo, exceto a razão“.

A Revelação da Verdade

O livro Ortodoxia, de Chesterton, é uma contraposição ao espírito filosófico da modernidade; uma resposta à sua artificialidade e à sua insanidade. O próprio autor confessa que, em sua juventude, foi contaminado por essa maneira de pensar. Explica que tentou desenvolver sua própria compreensão da realidade; buscou desenvolver suas próprias teorias; e acreditou que poderia explicar, por si mesmo, a realidade.

Na verdade, muito do pensamento moderno nasceu da vontade de superar um filosofia alicerçada na Revelação; de mostrar que as ideias anteriores estavam tomadas de superstição; de que o homem não precisa de Deus para compreender a realidade; de buscar uma explicação para a realidade que fosse original.

O próprio Chesterton, usando a si mesmo como exemplo do espírito moderno, conta-nos que, no fervor de sua mocidade, também tentou ser original, desbravando realidades supostamente não abarcadas por ninguém. Como ele diz, criando sua própria heresia, da mesma maneira como fizeram todas as ideologias modernas, como também aquelas filosofias que tentaram explicar o funcionamento do mundo por meio de um princípio qualquer.

No fim das contas, Chesterton descobriu que suas descobertas não eram descobertas, mas verdades que já haviam sido reveladas. Quando ele pensou que havia encontrado novas explicações, percebeu que elas já haviam sido dadas pela revelação.

"Forcei minha voz com penoso exagero juvenil ao proferir minhas verdades. E fui punido da maneira mais adequada e engraçada, pois mantive as verdades: mas descobri, não que não eram verdades, mas simplesmente que não eram minhas".

Justino dizia que tudo o que já havia sido falado de verdadeiro, em todas as épocas, por todas as pessoas, pertence ao cristianismo. Chesterton está querendo transmitir a mesma ideia. Seu objetivo não é se opor à filosofia moderna, mas pontuar que ela não é original, pois seus acertos já se encontram todos naquilo que a “religião civilizada” ensinou.

O cristianismo, diferente das filosofias e ideologias modernas, não é uma versão da realidade, mas sua própria apresentação. Ele lança sobre nós o peso de existência inteira, do experimentável ao transcendente, o visível e o invisível, o imediatamente compreensível e aquilo que está além do que pode ser entendido atualmente.

Por isso, sentimos, neste mundo, uma dupla sensação, de familiaridade e perplexidade. Diante da infinitude que o cristianismo nos apresenta, ao mesmo tempo que convivemos com tudo aquilo que foi criado considerando nossa vida, tornando as coisas próximas de nós, temos de aceitar o incompreensível, o milagroso, o misterioso também como parte da existência.

"Como podemos imaginar ficarmos ao mesmo tempo assombrados com o mundo e, mesmo assim, nele nos sentirmos em casa?"

Diferente de boa parte do pensamento moderno que, partindo de princípios muito bem delineados, encontra explicação para tudo, fechando-se numa perspectiva lógica e hermética, o cristianismo abarca o conhecido e o desconhecido, fala daquilo que faz parte da vida comum, do homem simples, mas também dos milagres, dos grandes destinos. Isso porque não se trata de uma ideia, mas da realidade mesma, com sua amplitude e complexidade.” Ouvir” O cristianismo não é ter resposta para tudo, mas aceitar tudo como parte dessa existência bela e espantosa, às vezes com pleno sentido, outras completamente misteriosa.

Por isso que aquele que busca compreender a verdade não pode fechar-se em sua própria percepção do real, nem alimentar a arrogância de acreditar que pode, por si mesmo, entender tudo. Se for intelectualmente honesto vai perceber que muito daquilo para onde suas especulações conduziram já havia sido dado pela Revelação.

"Tentei fundar uma heresia só minha; e quando lhe dei o último acabamento descobri que era a ortodoxia"

"Alimentei a fantasia de escrever um romance sobre um navegador inglês que cometeu um pequeno erro ao calcular sua rota e descobriu a Inglaterra".

Chesterton, simplesmente, quer deixar claro que quem procura a verdade, com sinceridade, vai acabar se deparando com o que ele chama de Ortodoxia, que nada mais é do que a Revelação cristã. Afinal, toda explicação correta nela encontra abrigo.

Chesterton e Olavo de Carvalho

As razões mais óbvias servem para as pessoas mais óbvias. Porém, quem movimenta o mundo de verdade são aqueles que desafiam o óbvio e fazem aquilo para o que foram destinados. Se fizessem o óbvio, provavelmente cairiam na vala comum da mediocridade. Se seguissem os conselhos óbvios das pessoas óbvias seriam exatamente como elas: óbvias.

Há dois homens, de épocas diferentes, de personalidades diferentes, com estilos de vida diferentes, mas que se tornaram incrivelmente parecidos exatamente por fugirem da obviedade. Chesterton e Olavo de Carvalho possuem características que os diferenciam: um era obcecado pelos paradoxos da vida, o outro pela verdade nua e crua; um escrevia como se tivesse contando uma história, o outro dando uma aula; um considerava-se quase um poeta, o outro um filósofo; um não teve filhos, o outro os fez às pencas; um era inglês, em um época em que a Inglaterra era o grande poder global; o outro brasileiro, testemunhando um país sempre à margem do protagonismo mundial; um estava cercado de intelectuais de altíssimo nível, contra quem travara grandes debates, o outro viveu quase toda sua vida cercado de anões intelectuais, incapazes de discutir com ele e de sequer entender o que ele escrevia.

Tudo isso pode parecer decisivo para manter esses dois personagens afastados e aparentemente sem qualquer similaridade. No entanto, o que os torna semelhantes é muito mais decisivo do que suas diferenças. Ambos jornalistas, tornaram-se conhecidos por seus artigos nos periódicos de seu tempo. A principal atividade de ambos, porém, fora a crítica ao círculo intelectual de suas respectivas épocas. Ambos fizeram carreira destruindo intelectualmente aqueles a quem criticavam. Ambos acabaram envolvendo-se com as questões políticas talvez mais do que imaginassem ou desejassem. Escreveram diversos livros, porém nenhum dos dois desenvolveu uma doutrina dogmatizada, mas construíram uma filosofia que, compreendida em seu sentido amplo, deixa para a posteridade um material abundante para ser discutido e desenvolvido. Tanto o escritor inglês como o brasileiro possuem um pensamento original e, frasistas naturais, oferecem centenas de citações que se tornaram marcantes para seus leitores. Por fim, firmaram-se na fé católica na maturidade, mostrando um semelhante progresso espiritual nessa direção.

Ainda assim, não são essas grandes similitudes que tornam Chesterton e Olavo de Carvalho gigantes-irmãos. O que os torna realmente semelhantes é algo bem mais trivial: o fato de não aceitarem fazer o óbvio. No caso, o óbvio seria, como intelectuais e pensadores influentes, afastar-se um tanto dos afazeres considerados dispersivos, como os debates públicos e as disputas políticas e intelectuais de seu tempo; o óbvio seria ver tudo isso como perda de tempo para quem tem a contribuir com questões superiores. Mentes normais ficam incomodadas vendo potências intelectuais se distraindo com questiúnculas. Por isso, ver o Olavo escrevendo diariamente nas redes sociais pode parecer uma grande perda de tempo, da mesma maneira que parecia pra os contemporâneos de Chesterton quando o viam atolado em disputas que pareciam dispersões em meio à grande obra que ele poderia produzir – inclusive, ele ouviu constantes repreensões por isso.

No entanto, foi a própria esposa do escritor inglês, Frances (aliás, outro semelhança ente os dois escritores: como a mulher de Chesterton, Roxane Carvalho é uma guerreira ao lado de Olavo), quem explicou exatamente como as coisas se davam. Segundo ela, seu marido não mudaria, porque estava “empenhado em ser um alegre jornalista, em fazer a maior farra… Tudo o que ele quer é fazer a maior barulheira possível”.

Chesterton queria bagunçar o mundo intelectual de sua época. E como não comparar isso com a afirmação do próprio Olavo de Carvalho, que disse: “Eu vim foder com tudo!”?

O fato é que se tratam de dois homens que fizeram história. Os dois remexeram como seus respectivos mundos intelectuais. Os dois fizeram tudo aquilo que não se esperava deles. E assim colocaram tudo de cabeça para baixo. Com isso, enquanto um, tendo feito carreira há um século, deixou um legado de pensamento profundo, que até hoje é discutido por seus admiradores, o outro, que já é o responsável pela maior revolução cultural ocorrida em terras brasileiras, segue construindo seu patrimônio que ficará de herança para uma enormidade de pessoas que se interessam pelos mais diversos assuntos – de política à filosofia, de psicologia à espiritualidade.

Chesterton e Olavo têm muito mais em comum do que pode parecer, à primeira vista. No entanto, nada os une mais do que o fato de terem vindo ao mundo para chutar os alicerces do pensamento corrente.

Apresentação do Ortodoxia, de Chesterton

Não se engane pelo nome! O Ortodoxia não é uma defesa da fé baseada em doutrinas expostas em letras frias. Nem uma apologética teológica e dogmática, combatendo heresias com citações bíblicas. Na verdade, essa obra é uma celebração da descoberta de que o sentido da vida não precisa ser buscado em divagações exóticas, nem em idéias mirabolantes, mas esteve sempre disponível, bem diante de nós.

Chesterton, com sua tinta ácida e estilo que beira o jocoso, ao mesmo tempo que destrói a pretensão intelectual daqueles que supõem pensar de maneira desapegada dos princípios, conduz o leitor para a compreensão de que, na verdade, esses princípios nunca deixaram de estar ali, mesmo para quem não os aceita ou enxerga.

Para quem acredita que a pessoa inteligente é aquela que pensa por si mesma, o polemista expõe suas falácias e equívocos de uma maneira tão avassaladora, que no final não sobra nada com que tenham de que se orgulhar.

Por outro lado, para os cristãos vacilantes, que se sentem constrangidos diante de um pensamento mundano que lhes oprime, acusando-os de retrógrados e inferiores, o Ortodoxia lhes dá uma definitiva lição: de que o que possuem é muito maior do que qualquer filosofia avulsa que exista por aí.

Ler esse livro é descobrir, a cada página, que não estamos perdidos. É verdade que, muitas vezes, sentimos que o mundo é complexo demais para ser compreendido e a vida difícil demais para ser vivida. Porém, basta olhar para trás, para aquilo que sempre esteve ali, disponível para qualquer um, e vamos ver que não é que a existência é complicada, mas nós que nos afastamos, por orgulho e rebeldia, da verdade.

Essa obra de Chesterton é a desmoralização do pensamento independente, que toma suas percepções desapegadas de princípios como fonte legítima de filosofias. O que ela mostra é que há uma sabedoria subjacente a tudo e, sem ela, toda perscrutação é vã.

Digo, mais uma vez: não se enganem, porém, pelo nome! Ortodoxia está longe de ser uma defesa doutrinária. Pelo contrário! O pensador inglês faz até um convicto louvor ao que ele chama de misticismo, que, segundo sua concepção, significa nada menos que a aceitação do mistério, como parte da sanidade da inteligência.

Ler esse livro é, enfim, uma experiência única! Para aqueles que confiam demasiadamente em seus próprios livre-pensamentos, pode ser como a exortação de um profeta, alertando-os para o perigo de sua maneira de agir; já para aqueles que, como o filho pródigo, esqueceram, por um tempo, suas raízes, despendendo suas energias na dispersão mundana, o Ortodoxia pode soar como o pai chamando, com os braços abertos, de volta para casa.

Ortodoxia-168x250