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Gradatividade do Conhecimento

Desde os filósofos da Antiguidade, passando especialmente pelos escolásticos, o conhecimento foi entendido como uma adequação do pensamento à realidade. A realidade era a referência, o ponto de apoio em relação ao qual o pensamento deveria adequar-se.

Nessa perspectiva objetivista, a coisa a ser apreciada, ou seja, o objeto do conhecimento, tendia a ser vista como algo fixo e acabado. Havia um pendor por encarar os elementos da realidade como eixos sobre os quais o pensamento deveria se debruçar.

O saber, nessa perspectiva, era entendido como uma absorção sequencial desses elementos, os quais seriam ingeridos devida e integralmente, uns após os outros, empilhando-se na alma da pessoa, formando assim o seu cabedal de conhecimento.

No entanto, é preciso reconhecer que nenhum elemento da realidade, por mais simples que seja, é absorvido, de uma vez, em sua integralidade. Quando tomamos conhecimento de um dado qualquer, ele não entra em nós em sua inteireza, mas parcialmente, passando por um filtro ativado por diversos fatores circunstanciais. Entre esses fatores encontram-se a cultura que formou o imaginário da pessoa, sua noção da própria ignorância, seu nível de instrução, sua capacidade física e muitos outros que podem influenciar a forma como ela assimila o conhecimento.

Fica claro, então, que aquilo que conhecemos, de acordo com as circunstâncias do momento do conhecimento, não é a coisa em si mesma, mas uma parte dela, um aspecto dela. Quando as circunstâncias mudam (e elas mudam ininterruptamente), absorvemos a mesma coisa de uma maneira diferente, fazendo com que ela não seja, de fato, a mesma coisa.

Em razão disso, cada vez que nos deparamos com um elemento da realidade qualquer, e de novo e de novo, é como se ele, cada vez, se abrisse um pouco mais, se desvelasse um pouco mais, permitindo que descubramos algo a mais sobre ele, nos aproximando um pouco mais de sua essência final. Por isso, dizemos que o conhecimento é um processo gradativo, ou seja, uma abertura progressiva para a realidade.

Isso não significa, porém, que a absorção parcial de uma coisa torna o conhecimento sobre ela inverídico. Pelo contrário, cada ato de conhecimento representa uma insinuação da verdade, um degrau na direção da essência da coisa, um passo em rumo à sua substância. Cada vez que conhecemos algo, ainda que em parte, desvelamo-no. Por isso, Tomás de Aquino dizia que a verdade é antecipada por muitos véus.

E ainda que o conhecimento seja parcial, isso não significa que desanimamos diante dele; menos ainda tornamo-nos céticos. Pelo contrário, a parcialidade do conhecimento nos instiga a ir mais fundo, a querer saber mais, a esforçar-se para fazer com que a verdade se apresente cada vez mais iluminada.

Portanto, ter a noção da parcialidade do que sabemos está longe de ser um motivo para estacionarmos, mas serve de forte inspiração para sempre quererermos conhecer mais.

Pensar por Palavras

Uma pessoa fala uma coisa, a outra aparentemente fala a mesma coisa e, no final, percebemos que elas estão falando coisas bastante diferentes. Este é o resumo das discussões que testemunhamos por aí. Os conversadores usam os mesmos símbolos, mas a realidade a que se referem, geralmente, são bem discordantes.

Isso acontece porque não sabemos o significado de boa parte das palavras que usamos. Aprendemos seus símbolos, mas não sabemos qual é a realidade que de fato se encontra por detrás delas. Com a educação formal que recebemos na escola, esse problema amplia-se formidavelmente. Somos inundados com termos e expressões sobre os quais, no máximo, possuímos uma ideia muito vaga e, só depois, e mesmo assim apenas em alguns casos, somos apresentados às coisas indicadas por eles. Nos acostumamos, então, a falar sem saber sobre o que estamos falando.

Durante toda a nossa vida há uma infinidade de palavras que só conhecemos pelos seus símbolos, seus sons e como uma referência distante a algo sobre o qual sabemos muito pouco. Ainda assim, é-nos exigido que manipulemos essas palavras no dia-a-dia, usando-as largamente como se delas fôssemos íntimos. O que mais existe são pessoas de inteligência normal falando coisas com uma compreensão muito limitada do que dizem. Verbalizam ideias, expressam pensamentos, raciocinam com base em sensações, mas são incapazes de identificar onde tudo isso se encontra na realidade. Possuem uma referência muito vaga daquilo que dizem, pois estacionaram nos signos. É como se falassem da doçura de uma fruta sem nunca tê-la provado. Se bem que, neste caso, ainda haveria a consciência de estar se referindo a algo que sabem que existe em algum lugar, enquanto em diversas outras situações, principalmente naquelas que tratam de coisas mais abstratas, pelo simples fato de conhecerem a palavra, acreditam que também conhecem aquilo que ela representa, o que é um engano profundo.

Vivemos sob uma cultura essencialmente linguística, imersa em abstrações que sequer são pensáveis diretamente. Ainda assim, acreditamos que sabemos exatamente a que elas se referem. Termos como “liberdade”, “amor”, “democracia”, “ética”, “virtudes”, “coragem”, “pecado” e uma infinidade de outros, sobre os quais se tem alguma ideia sobre o que significam, são usados abundantemente, mas acompanhados de uma incapacidade extrema de identificá-los na realidade. Assim, cada pessoa acaba fazendo sua própria interpretação daquilo que diz. Quando discute com alguém, nada pode garantir que esteja falando sobre a mesma coisa que a outra pessoa. É bem provável que não. Isso porque, apesar de usarem as mesmas expressões, é quase certo que cada uma tenha em sua cabeça algo bastante diferente do que há na outra. E se a discussão sobrevive é só porque faz uma referência, ainda que diáfana, à realidade – o que preserva a sensação de compreensão.

A verdade é que pensar por palavras é a grande enfermidade espiritual de juristas, teólogos, filósofos e eruditos em geral. E esta é uma doença contagiosa, que se espalha por toda a cultura, impregnando a mente de todo mundo. Hoje em dia, já não se pode confiar no que qualquer pessoa diz, pois é quase certo que o que ela diz não tenha muito a ver com o que aquela palavra realmente significa. Não é por acaso que as discussões dificilmente chegam a algum consenso. Com essa incapacidade de conectar as palavras com a realidade, o único resultado que se pode esperar é a mais absoluta confusão.

O Preço do Conhecimento

Há dois motivos para não sermos compreendidos: o primeiro, quando falhamos, por ignorância ou imperícia linguística, na transmissão de nossas idéias; o segundo, quando o nosso interlocutor é incapaz de apreender o sentido do que estamos lhe dizendo. Ambos os motivos têm consequências, mas enquanto o primeiro gera, no máximo, a impaciência no ouvinte, o segundo pode provocar nele pavor.

Sócrates explica isso em sua Alegoria da Caverna, ao contar sobre a pessoa que, após deparar-se, pela primeira vez, com a luz, tomada de compaixão pelos antigos companheiros que permaneciam nas sombras, retorna até a cova escura, onde eles estão, para contar-lhes a novidade. No entanto, nesse trajeto de retorno, já não mais adaptada à escuridão, impossibilitada de enxergar qualquer coisa com distinção, age de maneira desajeitada e esquisita, provocando, nos moradores da caverna, estranheza e medo.

Na vida real ocorre o mesmo. Quem se depara com um conhecimento que não está imediatamente disponível às pessoas comuns não consegue mais fazer uso das categorias e fórmulas usadas em seus tempos de ignorância. Assim, quando tenta se comunicar com os ignorantes, aos olhos destes acaba parecendo um excêntrico. Os ignorantes, então, concluem que o conhecimento transmitido pode ser perigoso e, por mais que não o entendam, acham melhor afastar seu portador.

Diversos alunos e leitores meus relatam algo semelhante: que, ao contar para seus amigos e familiares sobre o conhecimento que adquiriram, são tratados como estranhos, loucos e até perigosos. No entanto, o principal motivo não costuma ser a discordância dos ouvintes, mas o medo provocado neles por algo tão fora do seu universo de consciência.

Este é o preço que o conhecimento cobra. Sendo assim, para quem o adquire, resta esforçar-se por traduzir, em uma linguagem compreensível aos ignorantes, a nova realidade ou, simplesmente, conformar-se com a reprovação social. Se bem que o exemplo de Cristo, que fez bem aquilo, mostra que esta geralmente é inescapável.

Platão: Prisioneiros da Caverna

Entre o que vemos e a realidade, em todos seus matizes e profundidade, há uma distância maior do que o senso comum costuma imaginar. A maioria das pessoas sequer se dá conta de que as coisas se dão da maneira como se dão. São como os prisioneiros da caverna de Platão.

Nessa alegoria, Sócrates sugere que Glauco imagine uma caverna, onde há homens acorrentados desde a infância, com grilhões nos pescoços e nas pernas, impossibilitados, por isso, de se mover para os lados e para trás, capazes apenas de olhar para a parede do fundo dessa caverna, onde vêem as sombras dos homens e objetos que se movimentam do lado de fora, acreditando consequentemente que as vozes que escutam pertencem a essas sombras.

E não é assim com a maioria das pessoas? Olham as coisas sem ter noção de que são apenas reflexos da verdade. Vêem somente a ponta mais visível da realidade e acreditam que se trata da realidade mesma. Deparam-se com algo, aprendem algo e logo concluem que não existe nada além daquilo.

O mundo está tomado de convicções, fé e certezas baseadas em aparências. Mesmo gente com poder se encontra nessa situação. Imagine então quanto das decisões que afetam a vida de quase todo mundo estão fundamentadas nessa visão parcial e pequena da realidade.

E pense o quanto, para aqueles que entendem a verdade em seus graus mais profundos, e que possuem más intenções, é fácil enganar os pobres coitados que só conseguem enxergar, quando muito, aquilo que está diante dos seus olhos.

Entenda que a realidade tem muitos graus de verdade. O que se sabe pode ser verdadeiro, mas dificilmente é imediatamente abarcado em sua totalidade. Por isso, é preciso aprender a olhar para além do visível. Lembrar-se que o que vemos costuma ser um mero sinal de uma verdade mais profunda e mais complexa, que só pode ser alcançada em um processo de conhecimento gradativo e paciente.

Lembre-se sempre que aquilo que você vê não é toda a verdade sobre aquilo que você vê. Dê tempo ao tempo e esforce-se por buscar compreender as nuances e profundidade daquilo que é captado por sua percepção mais imediata.

Sempre que se deparar com algo, pare e se pergunte: o que há além? O que existe a mais do que isso que estou vendo? Quais são as características que ainda não consigo enxergar?

Apenas fazendo isso é possível começar a dar os primeiros passos para fora da caverna e deixar de ser um prisioneiro.

Taleb: A antibiblioteca do Umberto Eco

Os livros de uma biblioteca particular não estão ali exclusivamente para serem lidos, mas para oferecerem a possibilidade de lê-los. São, assim, uma potência do conhecimento de seu dono.

Quando o pensador Nassim Taleb, em sua obra “A lógica do Cisne Negro”, escreve uma pequena introdução referindo-se a gigantesca biblioteca do escritor Umberto Eco, sua intenção é mostrar como as pessoas dão mais atenção ao que sabem e costumam desprezar o que não sabem – o que aliás é a tese central desse trabalho.

Umberto Eco, citado por Taleb, tinha uma biblioteca com mais de trinta mil volumes. Como todo intelectual com estantes cheias de livros, testemunhou, diversas vezes, a mesma reação daqueles que o visitavam: o espanto seguido da pergunta: “o senhor já leu todos esses livros?”. Isso porque as pessoas pensam que só tem sentido os livros estarem ali se for para serem lidos ou se já foram lidos.

“Livros lidos são muito menos importantes que os não lidos” – afirma Taleb, em uma sentença surpreendente. A razão disso é que os livros de uma biblioteca particular não estão ali exclusivamente para serem lidos, mas como objetos de pesquisa.

E não é que o Taleb tem razão? Pensando bem, um livro lido já se encontra dentro do leitor e, como objeto físico, tem um valor menor que antes de ter sido lido. O livro não lido, pelo contrário, é valiosíssimo, pois ainda espera ser tomado, explorado, absorvido; possui joias a serem descobertas.

A outra afirmação do Taleb é ainda mais incrível, ao dizer que, quanto mais se sabe, maiores serão as pilhas de livros não lidos. Isso se dá porque pessoas bem instruídas, que lêem mais, que sabem mais, possuem uma noção mais clara e ampla do que ainda precisam conhecer, conseguindo mapear melhor sua própria ignorância. O resultado óbvio disso é querer ler mais e, portanto, ter mais livros à sua espera.

É comum darmos muita atenção ao que sabemos e tentarmos esconder o que não sabemos. Valorizamos os nossos conhecimentos, enquanto, na verdade, um único conhecimento é essencial: o conhecimento em relação aquilo que nos falta conhecer. Para entendermos o que nos falta, porém, é preciso saber bem o que se sabe, pois, quando se sabe isso, conseguimos saber o que ainda precisamos saber.

Por isso, é muito mais importante os livros que ainda não lemos do que aqueles que efetivamente lemos. Os livros que lemos indicam quem nós somos, mas os que não lemos apontam para quem ainda podemos ser.

O paradoxo da era da informação

Se alimento algum saudosismo em relação aos antigos jornais impressos, que, até um tempo atrás, eram as nossas únicas fontes de informação, é pelo fato de que, sua leitura, em algum momento, terminava. Você comprava o jornal numa banca, ou recebia-o em casa, e, após folheá-lo o suficiente, tinha a sensação de estar a par de tudo, ainda que soubesse que aquelas notícias se referiam ao dia anterior. Dobrava-o e seguia sua jornada. Quanto ao que está acontecendo agora… Bom, no dia seguinte, a gente pensava nisso.

Agora, tudo mudou. A notícia vem à nossa vista um pouco depois que o fato acontece, quando não ao mesmo tempo. E fatos acontecem o dia inteiro. Com isso, aquela sensação de dever cumprido, de fechar o jornal, satisfeito por ter se colocado a par do que é importante no mundo não existe mais. Há, hoje em dia, um ininterrupto sentimento de que existe algo importante acontecendo e que precisa ser sabido. A notícia em tempo real é a lebre da corrida de cães. Nós, obviamente, somos os cães.

No entanto, como toda estupidez só permanece estupidez porque não é percebida como tal, cuidamos de tirar dessa caça infindável uma razão nobre. Assim, tratamos com orgulho esta nossa época, que chamamos de ‘a era da informação’. Se com a invenção da imprensa, o homem civilizado sentiu-se em uma posição mais vantajosa do que aqueles que viviam apenas dos livros e dos sermões, o cidadão pós-moderno considera-se ainda melhor, pois acha um atraso sobreviver apenas do periódico impresso e das notícias de ontem, envaidecido por passar o dia inteiro atento ao que está acontecendo no mundo.

Por isso, ao tirar o jornal de cima da mesa, onde permanecia pela manhã, e colocá-lo no bolso, o leitor moderno sente-se superior. Afinal, as pessoas têm a convicção de que o conhecimento é o resultado quase espontâneo do acúmulo de dados. Pensam que, quanto mais souberem, mais compreenderão. Não é por acaso que os cientistas e os historiadores são mais admirados que os filósofos. Enquanto estes tentam dar explicações e, por isso, são vistos com desconfiança, aqueles aproveitam seu prestígio ao desfilarem sua memória e seus fichários. Um pesquisador citando, de cabeça, dezenas de fatos históricos parece mais inteligente que um pensador sofrendo para dar forma compreensível a uma única ideia específica.

No entanto, essa é uma perspectiva equivocada. O acúmulo de informações não gera automaticamente conhecimento. Com exceção das verdades auto-evidentes, todas as outras dependem de que o indivíduo que pensa sobre elas, para compreendê-las, faça as devidas conexões, perceba suas relações, desenvolva suas sínteses.

Não adianta, portanto, meramente amontoar informações dentro de si, como se a pessoa fosse um gaveteiro. Conhecer é mais do que saber o que aconteceu ou como as coisas se dão, mas saber por que as coisas se deram de determinada maneira e qual a relação desse fato com o que o envolve e com o todo.

Fica evidente,  portanto, que se chega a um ponto em que o acúmulo de informações começa a se tornar prejudicial para a pretensão de entender as coisas – e este é o paradoxo da era da informação.

No processo de conhecimento, será preciso estabelecer diversas conexões entre os fatos e fenômenos, a fim de entender a verdade dessas relações. O conhecimento surge pela síntese. A cada fato que aparece, a pessoa interpreta-o, relacionando-o com os fatos anteriores, extraindo então uma conclusão, a qual será confrontada com um novo fato, que fará gerar outra conclusão, e assim indefinidamente.

Porém, esse trabalho dialético, que pode ser simples em alguns casos, noutros pode se mostrar bastante complexo e trabalhoso. Há fatos que são imediatamente compreensíveis, enquanto outros, para serem bem entendidos, dependem de conhecimentos diversos e reflexão.

Assim, se os fatos se acumulam, já não é mais possível refletir sobre eles, fazendo com que suas sínteses já não sejam mais seguras. Além disso, cada novo dado que se apresenta exige um novo exercício dialético, o que aumenta as chances de erro de interpretação. A matemática é simples: se, para entender algo, a pessoa tem acesso a quantidade x de informações, ela terá que fazer o exercício de interpretação por x vezes, o que fará com que ela tenha x chances de cometer erros; se ela tem acesso a 10x informações,  as chances de erro multiplicam-se por dez. Portanto, quanto mais informações, mais possibilidades de equívocos a contaminar a compreensão do todo.

Assim, a era da informação, ao contrário do que possa parecer, ao despejar notícias ininterruptamente sobre as pessoas, prejudica a compreensão das coisas, seja por impedi-las do reflexo cuidadoso dos fenômenos, seja por multiplicar as chances de interpretações equivocadas.

O conhecimento é a visão do todo. Por isso  para entender melhor coisas, é preciso afastar-se um pouco delas. Como disse Nietzsche, somente quando deixamos a cidade, vemos a que altura as torres das casas se encontram.

Portanto, o excesso de informação acaba sendo uma ilusão. Em vez de esclarecer, ele atrapalha o entendimento dos fatos. E, talvez, por não perceber isso, é que a geração atual se acha tão esperta e não vê que está se tornando mais ignorante exatamente por aquilo que acredita tornar-lhe mais inteligente.

Uma teoria do conhecimento, de José Nedel

Brasileiros que somos, acostumados a vermo-nos como um país culturalmente inferior, onde a intelectualidade é semeada em solo pedregoso, acabamos por ter nossos olhos fechados para preciosidades que possam existir em meio a essa aridez. Costumamos reclamar de nossa pobreza intelectual, mas, talvez, se olhássemos com mais atenção e procurássemos com mais afinco, encontraríamos homens que se dedicam à inteligência com profundidade e erudição, bem aqui, nestas terras tropicais.

Há pessoas laborando na surdina, mais preocupados com o aprofundamento de seus próprios estudos do que com anunciar ao mundo sobre o que fazem. Há quem já tenha, inclusive, uma obra consistente e, se fôssemos um pouco mais atentos, reconheceríamos-na, dando a ela os devidos méritos.

José Nedel é um desses autores e ter acesso a sua obra acende, em mim, uma pequena chama de esperança. Homens como ele – brasileiros como ele – despertam-me para o reconhecimento de que deve haver muitos conterrâneos desenvolvendo trabalhos sérios e importantes, mas que não são vistos, nem por aqueles que promovem a cultura do país, nem mesmo por nós, que caminhamos à margem, e que, às vezes, cometemos o erro de fecharmo-nos em outros círculos marginais.

Símbolo desse esforço silencioso, o livro “Uma teoria do conhecimento” reflete toda a erudição de seu autor. Dentro de uma visão crítica e realista, franqueado na tradição gnoseológica ocidental e alinhado com um neoescolasticismo renovado, Nedel esbanja conhecimento – sem ser um mero coletor de informações – sobre o desenvolvimento da epistemologia entre os maiores pensadores de todos os tempos. Ele ainda presentea-nos com suas próprias opiniões e, com evidente profundidade analítica, oferece-nos mais que um panorama da evolução do pensamento, mas também seu significado e contingências.

Ler “Uma teoria do conhecimento” é fazer uma viagem crítica através das maiores mentes que este mundo conheceu, entendendo como elas compreendiam a relação do ser humano com a realidade, o conhecimento e a verdade. Ter acesso a esse livro, além de tudo, é voltar a ter a convicção de que grandes obras nem sempre são aquelas que todos reconhecem e divulgam, mas podem sobreviver quietas, porém, como uma planta que floresce em terras áridas, servir de inspiração para os sortudos que, como eu, tiveram a graça de deparar-se com ela.

A alegria por saber

Quando eu vejo a ânsia com que os jovens, nas discussões que acompanho nas redes sociais, disputam por quem é o mais inteligente, o maior conhecedor das coisas, sempre tão sisudos e levando-se tão a sério, eu penso o quanto eles estão perdendo, daquilo que estimam, o principal.

É que essa insolência intelectual arranca deles o melhor da vida de estudos: o prazer de ser como criança, puros e ingênuos, deixando com que a verdade lhes ensine, curiosos e empolgados, permitindo que o conhecimento lhes desperte a alegria do saber.

Quando o estudante começa a acreditar que é o sabichão, a felicidade de aprender se esvai. Quando o esforço por conhecer é motivado pelo desejo de mostrar-se mais inteligente que os outros, o que era para ser estimulante torna-se um peso irritante.

Estudar é apaixonante, mas para que seja assim é preciso manter-se humilde. Apenas a humildade permite com que o regozijo em aprender continue existindo. Só os humildes desfrutam do deslumbramento que as descobertas proporcionam.

Nem tudo é política

Segundo Aristóteles, o homem é um animal político. Disso, a conclusão que um bocado de gente tira é que tudo é política. Concebem o ‘politikon’ do filósofo corrompendo, da maneira mais rasa, seu sentido original, interpretando-o apenas como jogo de poder e, no pior dos casos, até como disputa partidária. Assim, para eles, se o homem é um animal político, isso significa que tudo o que ele faz tem um interesse político por trás e todos fatos estariam, portanto, contaminados por esses interesses.

Agora, imagine o quanto isso corrói a inteligência da pessoa. Ela já não consegue entender nada, porque não analisa nada segundo o que a coisa é, mas conforme as intenções políticas que acredita existirem por detrás dela. Nenhum fato, nem ato, nem idéias acabam tendo importância em si mesmos, mas são todos julgados conforme as contingências e supostas intenções políticas envolvidas.

A ciência, como método de observação das coisas pelo que elas são, deixa de existir. Tudo passa a ser visto, analisado e julgado conforme as intenções e implicações políticas que acreditam estarem envolvidos. A política acorrenta a ciência, encarcera-a e ainda manda-a calar a boca.

É por isso que Ortega y Gasset dizia que uma característica do homem-massa (o medíocre) é esse politicismo integral. Imbecil como é, não entende nada porque vê tudo pelo viés da política. Esse ser idiotizado não consegue enxergar nada fora da arena das disputas de poder e todo seu pensamento é moldado por isso.

Além disso, esta é uma atitude intelectualmente auto-castradora! Quem vê política em tudo, na verdade, acaba não entendendo nada; nem mesmo a própria política. Até porque há realidades que transcendem a política, outras que a absorvem e outras, ainda, que simplesmente a desprezam. Tentar entender a política, tendo a política como seu único universo de avaliação, é como tentar observar o movimento dos planetas usando um microscópio.

Isso não quer dizer que política não é importante. Pelo contrário, nossa vida é cercada por ela e quase tudo o que experimentamos coletivamente é determinada por suas disputas. No entanto, a questão aqui é a nossa capacidade de compreensão das coisas e o quanto ela fica comprometida por essa interpolação absoluta da política.

Por isso, quem quer entender alguma coisa, precisa antes tentar entender a essência das coisas. Independentemente das intenções políticas que possam haver ou das consequências políticas que se pode acarretar, não existe conhecimento verdadeiro se não houver a compreensão das coisas nelas mesmas. As essências são aquilo que se encontra além dos fatos imediatos e muito além das intenções. Ou seja, elas transcendem, em muito, a política.

Entenda uma coisa: nem tudo é política – nem a política é só política. Se você quiser ficar inteligente e realmente entender a realidade, vai precisar olhar além dela. Vai precisar sair do pequeno mundo que ela representa e olhar adiante, onde estão as realidades.

O orador e o compartilhamento de si mesmo

Erra quem, ao fazer uma apresentação, se dirige à plateia acreditando que ela está ali apenas absorvendo suas palavras e ideias. Quem pensa que as coisas acontecem assim, geralmente crê que as palavras e as ideias possuem uma força autônoma e que o orador não passa de um mensageiro, um portador isento de um conteúdo que sobrevive por si mesmo.

Porém, as palavras possuem uma função muito específica no discurso, que é a de fazer referência a uma realidade que existe antes e além delas. Palavras são apenas intermediárias, são símbolos que apontam para essa realidade. Porém, elas mesmas, sem a realidade para a qual apontam, não são nada.

Por isso, quem se dirige a uma audiência transmite para ela muito mais do que palavras. Ao falar com o público, o orador transmite – ou tenta transmitir – realidades. E essas realidades residem no mundo, independentemente das palavras e até mesmo das pessoas.

No entanto, essas realidades, apesar de existirem independentemente das pessoas, só podem ser reconhecidas conscientemente pelas pessoas. E nesse processo de reconhecimento, elas não absorvem as realidades mesmas, mas criam, dentro de si, versões dessas realidades.

Quem, por exemplo, se depara, pela primeira vez, com um animal que nunca tinha visto, ao deixar sua presença, leva consigo não o animal mesmo, mas uma imagem dele. Aliás, uma imagem incompleta e, invariavelmente, imperfeita. Daí, quando ele se propõe a comunicar, para outras pessoas, essa imagem do animal que ele carrega consigo, o que ele vai comunicar não é a realidade mesma, mas sua versão dela, a interpretação que ele faz daquilo conheceu.

Ao fazer isso, porém, inescapavelmente, ele acaba por dar um tom pessoal a essa realidade processada dentro dele. Ademais, como essa realidade, que está dentro dele, é uma interpretação pessoal, então ela também acaba sendo única. Assim, o que ele comunica acaba sendo a sua própria realidade.

O fato é que, quando essa realidade é transmitida, ela sai da boca do orador já não mais como uma verdade absoluta e independente, mas, sim, como uma versão da realidade feita pelo próprio orador. E sendo uma versão do orador, o que ele acaba transmitindo diz, geralmente, mais dele mesmo do que da realidade a qual ele se refere.

É por isso que eu afirmo que, no fim das contas, comunicação é mais do que compartilhar suas ideias e conhecimento. Comunicação é compartilhar a si mesmo.