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Nem direita, nem esquerda

Os militares não são de direita. Nunca foram.

Eu digo isso meio envergonhado, porque a informação que corrobora essa afirmação estava tão acessível que não tê-la visto antes foi um erro sério.

Quando eu ouvi o professor Olavo de Carvalho falando que o presidente Castelo Branco, em seu discurso de posse, em 1964, havia dito que seu governo lutaria contra a existência de uma direita reacionária, eu tomei um susto. Afinal, em nosso imaginário, o governo militar sempre fora retratado como a representação perfeita da direita brasileira mais truculenta que poderia existir.

No entanto, bastou uma busca muito rápida no site da presidência para constatar que o discurso do ex-presidente havia sido realmente aquele. Literalmente, ele disse: “Caminharemos para a frente com a segurança de que o remédio para os malefícios da extrema-esquerda não será o nascimento de uma direita reacionária, mas o das reformas que se fizerem necessárias”.

Vejam como a percepção que estamos tendo hoje, de que os militares brasileiros da atualidade não passam de burocratas, não anticomunistas, como imaginávamos, meros positivistas, não direitistas, como pensávamos, está certa.

Desde aquela época, os militares agem de maneira a escapar de qualquer filiação ideológica, fazendo da caserna um grupo capaz de aliar-se a qualquer um ou combater qualquer um, desde que isso colabore com sua visão desenvolvimentista tecnocrata.

De fato, não é apenas que a história se repita; às vezes, ela simplesmente não muda.

Escravidão solicitada

Praticamente todas as ditaduras foram implantadas no mundo com base em muito sangue e terror. Foi preciso matar muita gente e escravizar o restante, a fim de tornar possível o governo totalitário. Rússia, China e Cuba são exemplos de quantos cadáveres foram necessários para que o sonho socialista fosse implantado.

A dificuldade que as ditaduras sempre enfrentaram é que elas foram impostas contra o senso comum da população. Isso porque os ideais revolucionários geralmente vão de encontro à visão de mundo das pessoas normais. O que o revolucionário pensa é algo totalmente estranho ao que pensa o trabalhador comum, o lavrador, o pescador, o comerciante e a dona-de-casa.

Por isso, toda ditadura sofre muitos percalços. Geralmente, a sociedade sob ela é como uma panela de pressão, pronta a explodir. A União Soviética explodiu, o Leste Europeu explodiu. A China vive sob tensão. Cuba e Coreia do Norte só não explodem porque seus governos não têm escrúpulos em sufocar qualquer tentativa de insurreição.

Diante dessa experiência, os novos aspirantes a ditadores aprenderam que agir contra o senso comum representa uma luta inglória. Isso porque pessoas simples não agem movidas por idéias (idéias são coisas de intelectuais e ideólogos); pessoas simples vivem de maneira espontânea, guiadas pelo senso comum. Por isso, agir contra o senso comum é um erro tático de qualquer pretenso déspota.

Os novos ditadores aprenderam que melhor do que desafiar o senso comum é modificá-lo. Entenderam que é uma atitude muito mais inteligente alterar a forma como as pessoas percebem a realidade. Viram que fazer com que uma nova normalidade seja formatada na mentalidade do povo é a melhor maneira de aplainar o caminho para sua tirania.

Com a descoberta das métodos de manipulação psicológica e a possibilidade de sua aplicação por meio da tecnologia desenvolvida, o que era um sonho para antigos ditadores tornou-se perfeitamente possível para os novos. Formatar o senso comum, ideal de todo revolucionário, deixou de ser uma utopia.

Assim, há décadas, os poderes deste mundo têm investido em alterar a percepção que as pessoas têm da realidade. Com a aplicação de técnicas de manipulação em massa, muito daquilo que sempre foi tido como certo, já começa a ser visto pelas pessoas comuns como errado; o que era inconcebível, agora é desejado; a mentira virou verdade. É por isso que hoje vemos gente aparentemente normal louvando saqueadores, elogiando criminosos, apoiando assassinatos e desprezando os valores tradicionais.

Com o senso comum modificado, essas pessoas que, em condições normais, rejeitariam a tentativa de implantação de uma ditadura e lutariam contra ela começam, de maneira contrária, a clamar por ela. Então, vemos pais e mães, jovens bem formados, profissionais respeitados e até gente religiosa pedindo para que as garras ditatoriais sejam impostas contra todos; clamando que os governos ajam com dureza; pedindo que suas próprias liberdades sejam suprimidas.

A ditadura, então, ao invés de opositores, ganha apoiadores; no lugar de insurgentes, passa a contar com verdadeiros militantes, dispostos a sustentar a causa. São estes os cidadãos prontos a denunciar todos aqueles que pensam, falam e agem em desacordo com a nova mentalidade. São os que denunciam os vizinhos, acusam os dissidentes e até desejam a morte dos insurgentes. Para eles, toda pessoa que não segue seu modelo de vida é digno de punição.

Uma ditadura quando se depara com mentalidades assim formatadas já não precisa mais ser imposta. Na verdade, ela passa a ser uma concessão; uma entrega daquilo que as próprias pessoas anseiam. E uma ditadura assim é longeva, porque tem os próprios servos para sustentá-la alegremente. Afinal, uma escravidão perfeita não é aquela imposta à força, mas uma que seja apoiada pelos próprios escravos.

Utopistas e a necessidade de controle

Há quem se assuste com governantes exercendo seu poder de maneira autoritária. Confundida pela ilusão democrática, muita gente pensa que essas demonstrações de tirania são uma excrescência, quando, na verdade, fazem parte de uma tendência quase natural dos detentores de poder.

O sonho de quase todo governante é poder controlar nossa vida, mesmo nos aspectos mais comezinhos. Este é um sonho antigo. Não se contentam em regulamentar o que faz parte da vida comum, mas querem determinar o que fazer inclusive naquilo que se refere ao nosso trabalho, nosso lazer e, até, nossos relacionamentos.

Portanto, quando eles determinam que você não pode trabalhar ou tem de trabalhar sob suas rígidas regulamentações, proibindo suas caminhadas na praia ou no parque e regulamentando até com quem você deve se encontrar pode parecer estranho para quem vive na ilusão temporária da democracia, mas não espanta quem conhece um pouco de história.

Não faz tanto tempo assim que passamos por experiências sociais totalitárias. Comunismo, nazismo e fascismo são três demonstrações de governança autoritária que dominaram todo o século XX e, sobrevivem, às sombras, espreitando uma chance de retomar seus dias gloriosos. Sem contar os filhotes remanescentes, como Cuba, Coreia do Norte e seu mais ilustre rebento: a China.

No entanto, bem antes disso, já havia um tipo de literatura que, por cinco séculos, forjou a mentalidade de governantes do mundo todo. Uma literatura utópica que imaginava poder moldar a sociedade, segundo as concepções de seu idealizador, por meio do controle total.

Na verdade, Platão já havia pensado em uma utopia desse tipo, mas foi Thomas More quem inaugurou esse estilo literário na modernidade. Em seu livro ‘Utopia’ já encontramos aspectos de imaginação totalitária, como distribuição de riquezas e divisão forçada de trabalho. Depois dele, na ‘Cidade do Sol’, de Tommaso Campanella, encontra-se uma comunidade de mulheres, controle alimentar, trabalho obrigatório e uma religião única, formando uma teocracia. Até Rousseau, em seus primeiros escritos, flertou com a utopia, sendo, por causa disso, e por sua forte influência posterior, considerado o pai do comunismo moderno. Após isso, encontraremos outros exemplos, como a utopia do padre Gabriel Mably, onde há uma busca por um ideal comunitário por meio da restrição do direito da propredade. Restif de La Bretonne, que sonha com um comunismo agrário e retrógrado. Morelly que quer dividir tudo, inclusive as mulheres, além de pensar um sistema geral de assistência. Houve, ainda, Saint-Simon, que concebe uma sociedade industrial, sem grandes proprietários, que será a condutora a uma sociedade sem classes. Seus discípulos, os saint-simonistas, que já começam a vislumbrar a constituição de uma sociedade comunista, alcançada por regras específicas, propõem a supressão da herança. Destaque especial deve ser dado a Robert Owen, que após uma experiência utópica de sucesso na Usina de New Lanark, teve a oportunidade de vê-la replicada na própria sociedade inglesa onde vivia, em um projeto que se configurava uma verdadeira proposta de planificação comunista, o que, contrastando com sua experiência no universo fechado de New Lanark, resultou em retumbante fracasso. A partir daí, vários autores utópicos surgiram, como Charles Fourier, Etienne Cabet e uma série de outros pensadores que acabaram formando uma verdadeira tradição nesse estilo literário e moldaram a mentalidade de muitos governantes durante todo esse tempo.

O mais importante é notar que o que havia de mais comum em todos essas concepções sociais era o fato de seus idealizadores acreditarem que a sociedade ideal imaginada por eles jamais seria alcançada espontaneamente e que era preciso haver regras, muitas vezes rígidas e bastante restritivas, para que a utopia fosse definitivamente alcançada.

Até mesmo o marxismo, que se enfronhou no mundo das disputas políticas, revoluções e guerras bastante reais traz isso em sua gênese: a crença de que um mundo perfeito alcançado depois de passada a fase do planejamento e controle absolutos.

Portanto, não se assuste quando você se depara com governantes e autoridades que tentam regulamentar a sua vida até nos mínimos detalhes. Isso é uma tendência há séculos e bem anterior das experiências ditatoriais absolutistas dos séculos XIX e XX. No fundo, nenhum deles acredita em liberdade individual coisa nenhuma. Sua fé está sempre no controle absoluto como a única maneira de dirigir a sociedade com eficácia.

Há, porém, algo a se ressaltar: os antigos utopistas nunca tiveram, a seu dispor, os instrumentos tecnológicos e os conhecimentos manipulatórios que os novos aspirantes a ditadores possuem e isso pode fazer toda a diferença.

Poder sem limites

O poder não tem limites. Seu gosto é tão enebriante que quem o experimenta quer sempre mais. O poder revela as profundezas do ser humano. Remexe os desejos mais recônditos. Desejos de controle; desejos de domínio. O poder é como um feitiço, que toma conta do homem e, hipnotizando-o, faz dele quase um autômato, a responder seus comandos.

A verdade é que não há limites para o exercício do poder. Quem está tomado por seus encantos quer cada vez mais.

Só há dois limitadores para a imposição do poder: a impossibilidade física ou uma força intimidadora contrária. Os grandes déspotas da história apenas não cometeram mais atrocidades e não expandiram mais seus domínios porque estavam impossibilitados materialmente para isso. Imagine um Genghis Khan se tivesse, ao seu dispor, aviões bombardeiros ou se Napoleão pudesse lançar bombas nucleares! Imagine um Hitler se não se deparasse com a resistência dos Aliados!

Agora, preste atenção ao que os novos ditadores têm a sua disposição. Pense como todo a tecnologia e os novos aparatos podem servir para que seu poder seja imposto sobre as pessoas. E, atualmente, não são apenas instrumentos de impacto visível, como exércitos, bombas e explosivos, mas algo que lhes permite exercer um domínio muito mais profundo: armas de manipulação mental.

Todo o conhecimento e tecnologia disponíveis para os dominadores de nosso tempo lhes permite algo muito mais eficiente do que ferir ou matar. Permite cooptar seus alvos. Em vez de mortos, faz escravos. E o melhor ainda (para eles) é que podem tudo isso em uma guerra limpa, quase sem rastros.

Não pensem, portanto, que um ditador, grande ou pequeno, vai ser contido por algum escrúpulo ou que possa haver algum limite para seus atos. Se ele não faz mais é porque os instrumentos que estão a seu dispor não lhe permitem ou, então, porque se deparou com forças que o intimidaram, que despertaram nele o medo.

Por isso, nossa esperança, quando estamos diante de um aspirante a ditador, é descobrir que forças podem ser essas.