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O Pior dos Elitismos

Na história de todas as civilizações, em todas as épocas, sempre manifestou-se um elitismo, pelo qual um grupo de pessoas especiais e com responsabilidades superiores destacaram-se como os diretores do povo. Não há nada de errado com isso. Pelo contrário, é natural e faz parte da própria estrutura da sociedade determinados poderes serem exercidos por uma minoria.

Há, porém, um outro tipo de elitismo, este sim pernicioso, que é velado e, a despeito de apresentar-se como o defensor daqueles que considera inferiores, trata-os, na verdade, quase como incapazes, senão como imbecis. Como, por exemplo, quando um político afirma que em um eventual mandato seu o povo vai poder voltar a comer carne e tomar sua cervejinha no final de semana. O que ele está querendo dizer com isso? Os mais apressados dirão que ele está preocupado com os pobres, mas não é preciso ser muito perspicaz para perceber que, nesta afirmação, há uma inferiorização das pessoas, ao tratá-las como meros seres que sobrevivem satisfazendo suas necessidades mais básicas, seres que não podem e nem querem nada mais do que aquilo que permite sua baixa posição social.

O que me impressiona é ver como esse tipo de discurso foi normalizado, impedindo de se perceber nele um elitismo da pior espécie, a saber, um elitismo que acredita que somente alguns poucos privilegiados têm direito de viver uma vida superior, enquanto todo o restante da população seria incapaz dela e nem mesmo a deseja, contentando-se apenas com pão e circo. Ter como ponto alto de uma campanha eleitoral a promessa de que a satisfação de necessidades tão básicas será motivo de orgulho é reduzir o povo a uma condição apenas um pouco superior a de animais.

Quando eu escrevi sobre o POPULISMO ELITISTA, quis deixar claro que o pobre não é pobre por opção, nem sua vida é uma idealização de qualquer coisa. Apenas os ricos a glamourizam, porque não são obrigados a viver nela. Para o pobre, a pobreza é prosaica. No entanto, se ele puder escapar dela, jamais negará tal oportunidade. Para o elitista da pior espécie, porém, a pobreza é um estado definido e quem nela vive não deveria sequer ter o direito de fugir dela, mas, no máximo, transformá-la em algo um pouco mais agradável, talvez regada a churrasco e bebida.

Obviamente, mesmo um bom governante nem sempre consegue colocar em prática atos que ajudem o pobre a superar sua condição. Os elementos envolvidos são muito complexos para qualquer pessoa achar que esse é um problema solucionável facilmente. Porém, todo governante tem a obrigação de não atrapalhar essa busca. E não há pior maneira de ser um entrave para que o pobre deixe de ser pobre do que tratar seu estado de pobreza como uma condição inescapável e, pior, como a forma de vida realmente desejada por ele.

O pior elitismo é aquele que promove uma forma de vida inferior como aquela desejada pelos inferiores, da qual eles nem sequer vislumbrariam superar. O pior elitista de todos é aquele que decreta que o que as pessoas desejam é a carne e a cerveja do final de semana, enquanto ele mesmo não se contenta com nada menos do que as posições sociais mais altas, inclusive o posto mais alto de poder de uma nação.

Populismo Elitista

Eu sou um cosmopolita. Estou inteiramente inserido na sociedade moderna, com seus confortos e tecnologias. Almoço em restaurantes por quilo, peço pizza em casa e ultimamente sequer estou indo ao supermercado. Dificilmente ando a pé. Se o lugar para onde preciso me deslocar estiver a mais de duas quadras de distância, não titubeio em pegar meu carro.

Inclusive, há muito tempo não ia à feira. Nem havia razão para isso. No entanto, era domingo e a Leticia ia ficar o dia todo ocupada com um curso. Decidi, então, gastar um pouquinho do meu tempo nessa instituição milenar. Coloquei meus fones de ouvidos (daqueles grandes mesmo, que as pessoas já nem ousam iniciar uma conversa ou lhe fazer uma pergunta), liguei um Heavy Metal (este é o meu defeito, aliás. Inclusive, dizem que a música que você ouve na adolescência torna-se seu estilo preferido a vida toda. Foi assim que destruí minha capacidade de apreciar qualquer música que não pareça uma bigorna batendo no meu cérebro), fui direto ao carrinho de pastel e logo pedi um de queijo e uma coca-cola.

– Pra comer ou pra levar, senhor?

– Pra levar comendo, respondi.

– Melhor escolha, senhor.

Rimos.

Pastel numa mão, coca na outra e Threshold nos tímpanos – comecei meu passeio. De fato, eu não tinha o que fazer naquela feira, senão sentir o prazer de caminhar no meio da multidão (algo que eu não experimentava há algum tempo).

As feiras existem desde sempre. Foram elas que sustentaram os países da Europa Continental na Era das Trevas. Nelas, reúne-se verdadeiramente o povo. Não há nada mais democrático. Por isso, encontramos de tudo.

Enquanto eu andava, apreciava aquela sensação de realidade. O contraste com minha vida elitista e reclusa é evidente. Não há ali aquela ordem artificial criada por quem pretende manter tudo absolutamente seguro, nem a polidez de indivíduos carentes que se preocupam em demasia com a própria imagem. Na feira, há uma organização espontânea. De alguma maneira, cada um respeita o espaço do outro e tudo funciona perfeitamente bem. Existe também uma expansividade exagerada, que se torna histriônica. Os feirantes gritam muito e isso contagia o ambiente. Logo, não apenas eles, mas outros elementos ajudam a fazer daquele circo um lugar mais vivo e mais louco.

Durante minha travessia voluntária vi de tudo: discussões acaloradas, disputas por quem gritava mais alto o preço da fruta, velhinhos que pareciam perdidos em meio à balbúrdia, crentes evangelizando e até fazendo rodas de oração em volta de mendigos completamente confusos. Era dia de final de futebol e teve até guerra de gritos de torcidas. Já quase no fim, ainda me deparei com um “Sheik árabe” (vestido a caráter, obviamente), encenando uma luta de boxe (com luvas e tudo), com um sparring completamente machucado (mas não se preocupe, era só um assistente maquiado).

A sensação desse passeio foi deliciosa. Senti-me dentro do mundo, parte da sociedade na qual vivo e feliz por ter contato com aquilo que chamamos de povo. No entanto, pensando bem, todo esse sentimento só me ocorreu porque eu não precisava frequentar a feira todos os dias, nem acordar às três horas da manhã para preparar a barraca de frutas, nem voltar para casa esgotado depois de doze horas intensas entre gritos e esforços. A glamourização da feira só me é possível porque ela, para mim, não passa de um ambiente exótico, sobre o qual eu posso romantizar e pintar quadros divertidos. Se eu precisasse viver nela cotidianamente, me enjoaria do pastel, perderia a paciência com os mendigos, acharia os crentes inconvenientes e ficaria louco para pular em cima e calar a boca do primeiro feirante que gritasse perto do meu ouvido. A balbúrdia da feira, para quem a visita de vez em quando, pode parecer lúdica, mas para quem a frequenta diariamente é prosaica.

Tudo isso, me fez pensar sobre a pobreza. Ela também, com sua escassez, precariedade, falta de perspectiva, feiúra e insegurança não incomodam o pobre, mas também não o empolgam. É tudo apenas parte de sua realidade. Para o elitista, porém, que não a experimenta, senão pelas incursões semelhantes à minha, mas que pretende esbanjar populismo, a pobreza permite ser glamourizada, como se fosse algo até desejável em determinadas circunstâncias.

Tudo o que eu ouço da elite, quando ela se apresenta como defensora dos pobres, não passa de hipocrisia. Ela não suporta a vida simples, odeia suas limitações, não aguenta suas dificuldades e tem ojeriza do seu odor. A elite populista tem os ambientes pobres apenas como lugares exóticos, que ela resolve visitar, de vez em quando, quase como uma aventura no Safari ou como minha visita à feira.

Quando essa elite é política é ainda pior, porque a pobreza lhe serve como instrumento para fornecer-lhe a aparência de virtude que ela tanto precisa para manter sua retórica hipócrita. Sempre quando alguém se apresenta como o defensor dos pobres, já sei que se trata de um pilantra. Afinal, um defensor dos pobres, principalmente que vive desse discurso, depende que os pobres existam para que sua identidade não se perca.

A verdade é que os pobres não precisam ser defendidos. Eles só querem (como todo mundo) não ser impedidos de buscar sua própria felicidade. Os pobres não querem ser louvados. Eles só não querem (como todo mundo) ser tratados como massa de manobra nas mãos de especuladores ideológicos. Os pobres, no fim das contas, só querem ter o direito de tentar deixar de ser pobres.

Desprezo pelo povo

Autodeterminação dos povos, democracia, governo pelos cidadãos – todas expressões muito repetidas por todo tipo de políticos, mas que para a maioria deles não passa de ideias abstratas, que nada têm a ver com a realidade.

Isso fica claro em figuras como o governador de São Paulo, que indignado com as pessoas frequentando a praia, em um domingo de sol, esquece-se completamente que cumpre um mandato eletivo e se refere a elas como se estivesse falando de subalternos de suas empresas, achando que a obrigação delas é obedecê-lo indiscutivelmente.

Quando um governante refere-se aos próprios governados como gente irresponsável, insensível, quase sociopata, só porque decidiu passar um domingo de sol, com a família, na praia; quando ele afirma que, enquanto não ver toda a população, como gado, imunizada, vai manter seus direitos suspensos – que é exatamente o que acontece em uma quarentena, que impede as pessoas de trabalhar plenamente e exercer sua cidadania em sua integridade –– esse governante apenas demonstra o desprezo que sente pelo povo.

Para esse tipo de político, a população é incapaz de decidir o que é melhor para si mesma. Homens assim não conseguem olhar para a gente comum e ver pessoas que sabem analisar a realidade e definir o que vale e o que não vale a pena fazer. Políticos como ele acham que o povo é formado por gente estúpida, que precisa ser guiada, que não serve para mais nada além de arrecadar dinheiro para o Estado e cumprir as determinações das autoridades.

E que não me venha dizer que isso é justificável pelo zelo pela vida alheia. Este é o típico argumento despótico, sempre usado para impor as maiores restrições, inclusive para impetrar perseguições.

Não concordar com a decisão das pessoas de não mais se submeterem aos delírios de um governo e seguirem suas vidas, mesmo sem o completo solucionamento do problema sanitário, é até compreensível, mas achar que elas devem ser punidas por isso, é demonstração clara de uma personalidade autoritária.