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Uma teoria do conhecimento, de José Nedel

Brasileiros que somos, acostumados a vermo-nos como um país culturalmente inferior, onde a intelectualidade é semeada em solo pedregoso, acabamos por ter nossos olhos fechados para preciosidades que possam existir em meio a essa aridez. Costumamos reclamar de nossa pobreza intelectual, mas, talvez, se olhássemos com mais atenção e procurássemos com mais afinco, encontraríamos homens que se dedicam à inteligência com profundidade e erudição, bem aqui, nestas terras tropicais.

Há pessoas laborando na surdina, mais preocupados com o aprofundamento de seus próprios estudos do que com anunciar ao mundo sobre o que fazem. Há quem já tenha, inclusive, uma obra consistente e, se fôssemos um pouco mais atentos, reconheceríamos-na, dando a ela os devidos méritos.

José Nedel é um desses autores e ter acesso a sua obra acende, em mim, uma pequena chama de esperança. Homens como ele – brasileiros como ele – despertam-me para o reconhecimento de que deve haver muitos conterrâneos desenvolvendo trabalhos sérios e importantes, mas que não são vistos, nem por aqueles que promovem a cultura do país, nem mesmo por nós, que caminhamos à margem, e que, às vezes, cometemos o erro de fecharmo-nos em outros círculos marginais.

Símbolo desse esforço silencioso, o livro “Uma teoria do conhecimento” reflete toda a erudição de seu autor. Dentro de uma visão crítica e realista, franqueado na tradição gnoseológica ocidental e alinhado com um neoescolasticismo renovado, Nedel esbanja conhecimento – sem ser um mero coletor de informações – sobre o desenvolvimento da epistemologia entre os maiores pensadores de todos os tempos. Ele ainda presentea-nos com suas próprias opiniões e, com evidente profundidade analítica, oferece-nos mais que um panorama da evolução do pensamento, mas também seu significado e contingências.

Ler “Uma teoria do conhecimento” é fazer uma viagem crítica através das maiores mentes que este mundo conheceu, entendendo como elas compreendiam a relação do ser humano com a realidade, o conhecimento e a verdade. Ter acesso a esse livro, além de tudo, é voltar a ter a convicção de que grandes obras nem sempre são aquelas que todos reconhecem e divulgam, mas podem sobreviver quietas, porém, como uma planta que floresce em terras áridas, servir de inspiração para os sortudos que, como eu, tiveram a graça de deparar-se com ela.

O orador e o compartilhamento de si mesmo

Erra quem, ao fazer uma apresentação, se dirige à plateia acreditando que ela está ali apenas absorvendo suas palavras e ideias. Quem pensa que as coisas acontecem assim, geralmente crê que as palavras e as ideias possuem uma força autônoma e que o orador não passa de um mensageiro, um portador isento de um conteúdo que sobrevive por si mesmo.

Porém, as palavras possuem uma função muito específica no discurso, que é a de fazer referência a uma realidade que existe antes e além delas. Palavras são apenas intermediárias, são símbolos que apontam para essa realidade. Porém, elas mesmas, sem a realidade para a qual apontam, não são nada.

Por isso, quem se dirige a uma audiência transmite para ela muito mais do que palavras. Ao falar com o público, o orador transmite – ou tenta transmitir – realidades. E essas realidades residem no mundo, independentemente das palavras e até mesmo das pessoas.

No entanto, essas realidades, apesar de existirem independentemente das pessoas, só podem ser reconhecidas conscientemente pelas pessoas. E nesse processo de reconhecimento, elas não absorvem as realidades mesmas, mas criam, dentro de si, versões dessas realidades.

Quem, por exemplo, se depara, pela primeira vez, com um animal que nunca tinha visto, ao deixar sua presença, leva consigo não o animal mesmo, mas uma imagem dele. Aliás, uma imagem incompleta e, invariavelmente, imperfeita. Daí, quando ele se propõe a comunicar, para outras pessoas, essa imagem do animal que ele carrega consigo, o que ele vai comunicar não é a realidade mesma, mas sua versão dela, a interpretação que ele faz daquilo conheceu.

Ao fazer isso, porém, inescapavelmente, ele acaba por dar um tom pessoal a essa realidade processada dentro dele. Ademais, como essa realidade, que está dentro dele, é uma interpretação pessoal, então ela também acaba sendo única. Assim, o que ele comunica acaba sendo a sua própria realidade.

O fato é que, quando essa realidade é transmitida, ela sai da boca do orador já não mais como uma verdade absoluta e independente, mas, sim, como uma versão da realidade feita pelo próprio orador. E sendo uma versão do orador, o que ele acaba transmitindo diz, geralmente, mais dele mesmo do que da realidade a qual ele se refere.

É por isso que eu afirmo que, no fim das contas, comunicação é mais do que compartilhar suas ideias e conhecimento. Comunicação é compartilhar a si mesmo.

Subjetividade e lembrança

Ninguém pode mudar o passado. Isto é fato! Porém, não significa que os fatos lembrados são todos obviamente claros e igualmente reconhecíveis por todas as pessoas. Na verdade, cada indivíduo acaba aplicando seus próprios filtros sobre o que aconteceu, interpretando-o conforme as capacidades e instrumentos cognitivos que possui.

Isso, de alguma maneira, confunde algumas pessoas, que acabam acreditando que, porque as memórias divergem, os fatos também divergem e porque o passado é lembrado de maneiras diferentes, então o que aconteceu, da mesma forma, deve ser mutável.

Tal confusão, porém, só é possível porque vivemos tempos quando a subjetividade adquiriu valor tão importante, se não maior, do que a própria realidade. De Berkeley a Kant, dos impressionistas aos surrealistas, a percepção subjetiva foi adquirindo status de verdade, assumindo importância tal que os dados brutos da realidade chegam até a ser desprezados.

Não que achem que o passado está mesmo sendo alterado, mas realmente não se importam com isso. O que importa mesmo é como lembram-se dele e como interpretam-no. O mundo dentro de suas cabeças é o único legítimo e ai de quem ousa contestá-los.

São os tempos das “minhas verdades”, quando nada é mais importante do que a forma como cada um enxerga o que vê ou o que pensa que vê.

Em um mundo assim, não há mais espaço para o debate, para o desenvolvimento das ideias, nem para qualquer tipo de exortação. Se a interpretação pessoal é o mesmo que realidade, tudo o que uma pessoa pensa está validado, ainda que para o senso comum possa parecer absurdo.