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Escrita Habitual

Todo escritor passa por fases desérticas, quando seu gênio parece adormecer e seus textos se apresentam burocráticos, sem vida, protocolares. Para ele, não há momentos piores do que esses nos quais parece que seu espírito se apaga e sua energia criativa se dissipa.

Muito do sofrimento do escritor é causado por sua dependência da inspiração. Sofre porque espera que ela surja de repente, como uma entidade, e insufle em sua mente as palavras e ideias que serão jorradas no texto, quase como uma possessão mediúnica. Não vou negar que, algumas vezes, isso acontece, fazendo com que as letras pareçam ser vomitadas, como em um reflexo fisiológico. Em momentos assim, parece que o escritor não pensa, mas apenas permite com que o fluxo das ideias se transponha de sua cabeça até o texto.

No entanto, não é sempre assim. Talvez, na maioria das vezes, seja necessário que o escritor tenha de debruçar-se sobre o texto com muita atenção e cuidado; será preciso concentração e esforço para fazer com que suas ideias apareçam e ganhem vida; exija-se disposição para que a redação tome forma. Por isso, alguém que tenha a escrita como uma atividade regular não pode depender da inspiração. Quando ela surgir, obviamente, será bem vinda e enriquecerá seu ofício, mas é preciso saber o que fazer quando Momo, a divindade dos escritores e poetas, decide se afastar.

Portanto, o escritor, se quiser se tornar independente da inspiração, precisa fazer da sua escrita habitual, ou seja, forçar-se a escrever mesmo naqueles dias quando parece que nada de bom e útil irá sair de sua redação. Isso porque a escrita habitual concentra o espírito nas letras, na disposição das palavras, na associação das imagens. Como uma máquina lubrificada, faz com que a mente se mantenha iluminada para manipular os argumentos, permitindo com que as ideias manem com muito mais facilidade e fluidez.

A inspiração – aí, sim – qao encontrar o hábito, torna tudo ainda mais produtivo, pois parte de algo que já está funcionando bem, elevando-o à excelência.

A Força da Escrita

Nem todos sabem, mas eu mantenho um blog desde 2005 e mesmo hoje, quando meios de comunicação mais dinâmicos e de alcance maior e mais imediato dominam as formas como as pessoas compartilham suas ideias, eu ainda tenho os textos que publico por lá como meu principal meio de expressão. Sou retrógrado? Sou teimoso? Não! Apenas acredito na força de influência permanente da escrita.

Eu tenho consciência do impacto da linguagem verbal. Inclusive, sou professor de oratória. Sei que a linguagem falada é rica em possibilidades, permitindo mais interpretações, possibilitando mais nuances e ênfases. A transmissão da emoção, pelo orador, é imediata, porque é direta. No entanto, apesar de tudo isso, falta-lhe algo que apenas o texto escrito possui: a permanência.

Palavras faladas são como o vento: movimentam as coisas, causam alvoroço, fazem revoluções, promovem destruição, porém, sempre passam e, depois que passam, já não se sente mais tanto a sua força. A palavra escrita, por outro lado, tende a ser mais serena, menos barulhenta, mas é profunda, penetrante, pois permanece, ininterruptamente, diante dos olhos, impregnando a alma. Por isso, sua influência, no tempo, é maior.

Perceba como, dos autores, pouco lembramos daquilo que deles ouvimos, mas há textos que se tornam imortais. Já ouvi centenas de aulas do professor Olavo de Carvalho, por exemplo, mas o que eu sempre guardo na memória são seus artigos, apostilas e até postagens nas redes sociais que ficaram imortalizadas. ‘Bandidos e Letrados’ é um desses; ‘As 12 camadas da personalidade’, uma das apostilas memoráveis’; aqueles post sobre a loucura que o mundo atingiria ressoa na minha cabeça até hoje.

O texto, diferente da fala, fica ali, na nossa frente, insinuando-se ininterruptamente, pedindo para ser mastigado, deglutido, ruminado. Talvez, esse seja o motivo porque ele, diferente da palavra falada, que é ingerida de uma vez só, tenha tanto poder. Além do que, a linguagem verbal sempre é a manifestação do outro, o som que o outro emite e passivamente absorvemos. No caso da escrita, o leitor é forçado a ouvir o texto com sua própria voz dentro de sua cabeça, tornando-o íntimo seu, fazendo dele algo quase pessoal.

O mundo tecnológico pode privilegiar os sons e as imagens, os vídeos e as falas; ainda assim, continuo acreditando que a verdadeira força reside no texto. Por isso escrevo. Disso vem minha convicção de que se algo meu ficar para a posteridade será em virtude da minha escrita.

Uma boa faxina

Quando nos deparamos com uma informação que nos incomoda, pensamentos ficam pululando dentro de nós, clamando por serem expulsos. Enquanto não fazemos isso, parece que eles vão nos corroendo, o que nos dá apenas duas opções: livrarmo-nos deles, jorrando-os em palavras, ou arremessarmo-los para o submundo do nosso inconsciente. Nos dois casos, sentimos um certo alívio.

O problema é que sufocar, com frequência, o pensamento não é saudável. Quem faz isso costuma apresentar certos tipos de neuroses.

Por isso, há quase que um impulso por manifestar o que se pensa. É que se livrar dos pensamentos se parece com um expurgo. Esse é o motivo de falar o que se pensa ser tão libertador. Não é por acaso que as pessoas se arriscam a dar conselhos, a emitir suas opiniões, ainda que não ganhem nada com isso, a não ser esse refrigério que a expulsão daquilo que incomoda pode dar.

Você entende agora porque as redes sociais fazem tanto sucesso? Elas permitem colocar para fora o que molesta. E quanto mais a audiência aumenta, mas viciante isso se torna.

Esse também é vício do escritor. Ele tem dentro de si pensamentos que se debatem, exigindo serem libertados da prisão que é o seu mundo interior, a fim de encontrar o universo infinito do lado de fora.

É por esse motivo que escrever se torna uma necessidade. O escritor precisa enxotar suas ideias, por causa do alvoroço que elas fazem em sua cabeça.

No fim das contas, a escrita, para o escritor, não passa de uma boa faxina.

O limite da beleza na escrita

Na escrita – que me desculpem aqueles que não sabem escrever – mas beleza é fundamental. Não apenas porque um texto bonito é bonito – e a beleza não precisa de justificativas – mas porque um texto esteticamente bem apresentado adquire um poder de convencimento maior.

No entanto, há uma linha muito tênue que separa uma escrita bonita de uma afetada e nem todo escritor tem sensibilidade para identificá-la. É uma fronteira que se ultrapassa sem perceber e, quando se dá conta, o que se configurava belo se transforma em algo pedante, exagerado, forçado.

A beleza em um texto é, de qualquer forma, um adorno e, como tudo o que é bonito, possui uma medida. São como seios: aparentemente, quanto mais evidentes, mais belos, até que se descobre que, a partir de determinado tamanho, o que era bonito fica esquisito.

É que a beleza tem uma característica essencial: a proporção. Quando esta é ignorada, o escritor perde a mão do seu texto; é quando suas palavras perdem a naturalidade; quando a estética se sobrepõe ao conteúdo.

É na identificação do limite entre beleza e o exagero que reside a arte da escrita e saber caminhar sobre essa linha a principal qualidade do escritor.

Naturalidade conquistada

Quem quer ser ouvido precisa expressar-se com naturalidade. É ela que toca os corações, que mexe com a alma. Espíritos humanos são despertados por manifestações de espíritos humanos. Portanto, só a expressão natural alcança o outro.

As pessoas parecem que possuem um filtro contra a artificialidade. Elas percebem quando alguém está apenas sendo uma mera imitação. Em geral, não se abrem quando percebem que a expressão é só uma cópia.

Há, em todos nós, uma sede por sinceridade. Ninguém quer ser enganado e todos querem ter certeza que o que estão ouvindo é a expressão sincera da alma de quem está falando.

No entanto, é mais fácil fingir, imitar, emular. A cópia exige apenas repetir os movimentos exteriores, os mecanismos superficiais. O exercício mimético não pede nenhum aprofundamento, nenhuma compreensão da essência.

A naturalidade, por seu lado, requer um mergulho interior profundo. Só quem entende bem quem é e o que realmente quer pode expressar-se naturalmente. Ser natural exige espontaneidade e esta só é verdadeira quando acompanhada de autoconhecimento.

Por isso, tantos expressam-se com afetação, com falsidade. Entre o esforço, muitas vezes dolorido, de autocompreensão e a mera prática mecânica da imitação, escolhem esta sem hesitação. E, por isso, não tocam os corações, não falam com as almas. No máximo, alcançam aquelas mesmas pessoas que, como eles, são superficiais. Quanto aos que têm um mínimo de sensibilidade: a estes não convencem.

A verdade é que a naturalidade se alcança, sendo o resultado de um esforço de compreensão de si mesmo e do conhecimento das técnicas necessárias para que ela se manifeste. Ser natural é a capacidade de espelhar a própria alma, e isso não surge naturalmente, se conquista.

Escrever, um ato de coragem

As idéias, quando na cabeça, são fluidas. Por causa do dinamismo de nossos processos mentais, costumam ser movediças, incertas, cheias de oscilações. O que mantemos no pensamento é, por isso, móvel, sempre passível de atenuações e acréscimos.

Apesar da instabilidade consequente do processo dinâmico de nossa mente, é exatamente isso que nos permite pensar muitas coisas, possibilitando a abordagem de conjunturas complexas e variáveis. Se não fosse assim, o que poderíamos conhecer seria muito pouco.

Mesmo que a riqueza da mente dependa da dinâmica de seu processo, as idéias anseiam estabelecer-se, encontrar seu lugar no mundo. Enquanto vagam na fluidez dos pensamentos, parecem adquirir um mero quase-ser, uma potência que promete assumir uma existência, mas que ainda não é.

Apenas quando exteriorizados, quando postos para fora do universo cerebral, é que os pensamentos começam a tomar uma forma mais estável. Enquanto na mente, parecem possuir apenas um querer-ser. Quando verbalizados é que assumem um compromisso com a realidade.

A verbalização estabiliza o pensamento, contudo, carrega um ônus: o comprometimento do emissor. Ninguém é criticado pelo que pensa, mas pelo pensamento que expõe. Verbalizar é também assumir uma responsabilidade com o que se diz. Palavras emitidas ganham identidade. Não são mais idéias livres, descompromissadas, como quando estão apenas na mente. Agora, são as idéias de alguém; idéias que identificam a pessoa.

De qualquer forma, a verbalização, quando é meramente oral, ainda retém algum privilégio de provisoriedade, pois o que é falado pode ser posto na conta do momento, da má escolha, da emoção. A linguagem falada nunca é definitiva. É sempre uma intenção, um direcionamento, um desejo.

Apenas a palavra escrita assume a condição de verdadeira estabilidade. O escrito pressupõe a devida reflexão, a possibilidade de revisão antes de sua exposição, a certeza do que se quer dizer. Quem escreve teve tempo de pensar e sabe que está assumindo um compromisso com que está disponibilizando para ser lido. O escritor sabe que a desculpa do instante, da paixão, da pressa e da leviandade não lhe cabem.

Escrever é, no fim das contas, expor-se definitivamente; é um caminho sem volta. A escrita é a materialização do pensamento e a solidificação das idéias. Quem escreve se abre, se oferece para a crítica, se desnuda para o mundo. Por isso, escrever é um ato de coragem – quando não, de pura imprudência.

A FUNÇÃO A BELEZA NA ESCRITA

A escrita elegante parece estar fora de moda. Preocupar-se com a estética, na construção de um texto, dá a impressão de preciosismo dispensável, quando não afetação. A regra da redação contemporânea é: seja simples e direto, sempre!

Escrever bonito tem seus receios justificados: soar pedante, parecer datado, ser visto como artificial. Temor justificado, ressalte-se, pois sair do lugar-comum é sempre um risco. A complexidade facilmente confunde-se com arrogância e a elegância com pomposidade.

O escritor dos nossos dias esquiva-se das exigências de estilo. Evita o rebuscamento, desvia das palavras inusuais, a ponto de tornar-se óbvio – quando não tedioso – e preferir assim.

No entanto, o embelezamento de um texto não serve apenas para torná-lo apreciável; sua função não é unicamente estética. Escrever um texto que soe bem aos ouvidos, que agrade os olhos, que possa ser chamado de belo é também uma maneira de conquistar o leitor.

Um texto construído com elegância transmite musicalidade, soa agradável, cativa pela sonoridade. Frases bem construídas são absorvidas com mais facilidade. Além disso, quem escreve bem é tido por autoridade no assunto, o que é crucial na conquista para o convencimento.

Obviamente, o tratamento estilístico de um texto deve ser feito com bom senso e moderação. Escrever como um Padre Vieira ou Rui Barbosa, atualmente, pode parecer bastante afetado e ter um efeito desagradável. Em vez de admirado, é bem provável que pareça excêntrico.

Por isso, o escritor deve encontrar o ponto certo entre a leveza da comunicação direta e a riqueza de um construção bonita. Achar o equilíbrio entre o fácil aprazível e o belo exuberante é o desafio da arte da escrita.

A feiúra dos textos jurídicos

Os textos jurídicos brasileiros são feios. Não apenas esteticamente desagradáveis, mas confusos, prolixos e difusos. Uma pessoa sem sensibilidade de escrita, ao se deparar com o pedantismo e a aparência de grandiloquência dos escritos dos advogados e juízes, pode até acreditar que se trata de uma boa redação, mas quem entende da arte de escrever sabe que os textos jurídicos brasileiros são, em geral, muito mal escritos.

Os juristas não sabem escrever porque, em primeiro lugar, sofrem com a má formação básica. O nível médio da escrita do brasileiro é sofrível. No entanto, essa deficiência não é sequer aliviada nas faculdades de Direito. Por mais que escrever seja o instrumento fundamental do advogado e do juiz, durante todo o período de sua formação, ele receberá apenas algumas dicas esparsas, dadas por algum professor especialmente preocupado com essa questão. Em geral, porém, esse aluno vai ter de desenvolver sozinho sua maneira de escrever, sem nenhuma orientação.

A escrita que os alunos de Direito desenvolvem dentro da faculdade se dá por mera imitação dos textos de seus antecessores – que já não são um primor de estilo e concisão. Porém, é uma imitação por quem não tem a mínima ideia do que está fazendo. O resultado acaba sendo uma caricatura daquilo que já não é uma referência de beleza. Os textos jurídicos são feios porque são uma má imitação de outros textos que também são feios.

A ausência do ensino da técnica de escrita nas faculdades de Direito é uma falha imperdoável. O ofício do jurista não é apenas a interpretação das leis, mas a expressão dessa interpretação. Seu trabalho só se completa quando ele exterioriza, de maneira clara e coerente, o entendimento que teve da lei. Se ele não souber exteriorizar essa interpretação ela não servirá para nada. Uma interpretação, por mais correta que seja, se está apenas na cabeça do jurista não tem função alguma.

As faculdades de Direito priorizam a interpretação das leis. Aliás, praticamente só ensinam isso. Como não dão qualquer orientação sobre a expressão e a escrita, o resultado acaba sendo essa multidão de peças jurídicas confusas e mal redigidas. E o maior exemplo se encontra no mais alto escalão do poder judiciário, o Supremo Tribunal Federal. O que se ouve em suas sessões é um festival de pedantismo e prolixidade.

Antes de ensinar sobre leis, as faculdades de Direito deveriam dar essa mensagem para seus alunos: “Vocês não são escritores. Portanto, expressem-se da maneira mais simples, mais objetiva, mais clara possível. E, acima de tudo, sejam humildes. Não tentem escrever acima das suas capacidades. Entendam que nada ofende mais a boa expressão do que tentar dizer o natural de maneira pomposa”.

A aventura da escrita

Uma das coisas mais estimulantes ao se estudar escrita é que você nunca pára de tentar aprimorar sua técnica.

Isso porque um texto nunca é uma obra finalizada. Sempre que o escritor se dispõe a mexer nele, ele estará disponível para ser melhorado. Até por isso dizem que o escritor nunca termina um texto, mas abandona-o.

É que os textos não são apenas palavras ordenadas e obedientes às regras gramaticais. Textos são, antes de tudo, exposições de expressões humanas que estão sujeitas a todo tipo de nuances e sutilezas.

Na comunicação humana, especialmente no uso da linguagem, pequenos detalhes, ínfimas alterações, mudanças enfáticas e disposições diversas podem dar sentidos completamente diferentes ao que se está querendo dizer. Perceber essas sutilezas e ter sensibilidade para trabalhar com elas é o grande desafio do escritor – e o que o torna grande.

Não há um texto em relação ao qual eu me disponha a trabalhá-lo e, por mais simples que ele seja, não me ofereça um grande desafio. Tudo isso torna o estudo da arte da escrita uma aventura.

Por isso, escrever é minha paixão e o desafio de tentar tornar essa paixão uma obra de arte é o meu estímulo de todo dia.

Escrita organizadora

A escrita, para alguém que costuma refletir com alguma profundidade sobre a vida, tem uma função muito bem definida.

É que as ideias, enquanto estão ainda em forma de pensamentos, residem na mente de maneira confusa.

O conhecimento, quando na mente, não costuma estar ordenado. Ainda que saibamos algo, esses dados estão soltos dentro de nós. Sabemos que sabemos, temos consciência que conhecemos, mas apenas quando precisamos comunicar o assunto é que percebemos que esse conhecimento não tem ordem, mas trata-se de um emaranhado de ideias que, de alguma maneira, interconectam-se.

Geralmente, apenas quando precisam ser expostas, é que as ideias recebem alguma ordenação. Só quando um pensador escreve o que pensa é obrigado a se preocupar com a ordem e a coerência de seus pensamentos.

Assim, escrever, passa a ser, antes de uma necessidade de compartilhamento, uma necessidade de ordenação. O escritor escreve para, antes de tudo, arrumar a bagunça que existe em sua própria cabeça.

Essa, pode-se dizer, acaba sendo a primeira função da escrita: organizar o que até ali era apenas confusão.