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Douto Desconhecimento

Em meus cursos, já me deparei com todos os tipos de alunos: dos interessados aos perdidos, dos atentos aos dispersos, dos participativos aos desdenhosos. Porém, há um tipo especial, aquele que é possuidor de um douto desconhecimento.

O possuidor de um douto desconhecimento possui algum conhecimento, mas sempre limitado e defeituoso. Porém, quando se expressa, faz isso com ar professoral. Geralmente, o que sabe é baseado em frases feitas e em lugares-comuns que pouco ou nada acrescentam à matéria, mas quando sai de sua boca parece tratar-se da última grande descoberta da humanidade.

Por causa do seu imaginário limitado, o possuidor de um douto desconhecimento não percebe o quanto lhe falta de conhecimento. Por consequência, acredita que o que sabe esgota a matéria. Por isso, se acha muito inteligente. Assim, não tendo consciência do que lhe falta, sente-se na obrigação de se expressar como uma autoridade no assunto.

Se o possuidor de um douto desconhecimento pensa que o que sabe alcança tudo, é evidente que acredita que o que diz tem importância vital. Por isso, quando fala exige ser ouvido, disparando seu arsenal de informações como se fossem a última verdade das matérias tratadas. Quando pede um aparte, dificilmente faz uma pergunta, mas quase sempre um comentário, que tem por objetivo expor o seu ponto de vista, que ele considera de suma importância para todos que o escutam.

Obviamente, um possuidor de um douto desconhecimento terá sérias dificuldades de absorver qualquer coisa que lhe seja ensinada. Afinal, quem terá o que ele ainda não possui? Mesmo o professor não passará de mais um ouvinte de suas intervenções sapienciais. Seu pedantismo lhe faz desperdiçar oportunidades de conhecimento e lhe enclausura na própria ignorância. Isso porque quem não se dispõe a aprender com os outros está condenado a viver, perpetuamente, em seu mundo pequeno e hermético.

Falta, na verdade, para o possuidor de um douto desconhecimento o espírito do espectador de uma peça teatral, que assiste uma encenação sem discutir com os personagens, nem criticar o roteiro, mas se deixa usufruir do enredo, sentindo a emoção da narrativa, desvendando o sentido de história, entendendo a proposta do autor.

Da mesma maneira, quando lemos um livro ou assistimos uma aula devemos também permitir-nos ser guiados. O pensamento crítico deve ser suspenso; as objeções, guardadas. Há o tempo certo para eles, mas não antes de nos esforçarmos por entender o ponto de vista de quem ensina — o que só é possível aceitando pensar como ele, sob as categorias dele.

Uma amiga me perguntou, certa vez, como ela deveria ler um livro. Eu expliquei que ela deveria tomar o autor como se fosse seu professor, independentemente de quem ele fosse. Então, ela, assustada, me perguntou: mas se eu não concordar com ele? O que eu retruquei, de pronto: e como você pode discordar de alguém que desconhece? Como criticar quem você sequer deu a oportunidade de se expressar?

Por isso, meu conselho para os estudantes é que se deixem conduzir e não assumam uma posição crítica muito cedo; que ouçam, reflitam e permitam que as ideias que lhes forem apresentadas sejam absorvidas sem muitos filtros, sem muitos preconceitos, sem muitas ressalvas. Aprendam a ser alunos e não permitam que o entendimento das coisas seja impedido por sua petulância, pelo seu douto desconhecimento.

O Homem é o Lobo do Homem

Propus um desafio para meus alunos e, agora, vou revelar os verdadeiros motivos.

Transcrevi e célebre frase “o homem é o lobo do homem” e pedi para eles me dizerem de quem é esta frase, onde ela está escrita e qual o seu significado.

Não impus qualquer restrição e, assim, os alunos poderiam pesquisar em qualquer fonte.

As respostas não me surpreenderam.

Quase todos disseram que a frase era de Thomas Hobbes, escrita em seu livro Leviatã, e significava que o homem, por natureza, faz mal ao próprio homem.

Quem fizer uma rápida pesquisa na internet vai encontrar, em diversos sites, essas mesmas explicações ou algo parecido.

E aqui está exatamente o que eu quero mostrar: a importância, do estudioso sério, de buscar as fontes primárias, em vez de basear-se, exclusivamente, em informações de segunda mão.

A quantidade de imprecisões históricas é gigantesca; o número de interpretações equivocadas é imenso. Por isso, ler diretamente o autor, quando possível, é sempre recomendável.

Vamos ao caso de Hobbes!

Primeiro, a frase não é dele, mas de Platus, dramaturgo romano que viveu cerca de dois séculos antes de Cristo. A transcrição da frase original seria “Lupus est homō hominī, nōn homō, quom quālis sit nōn nōvit”, a qual pode ser traduzida por “O homem não é homem, mas um lobo, para um estranho”.

A informação da autoria aparece em diversos sites. Também, praticamente, todas as fontes indicam que a frase foi popularizada pelo pensador inglês, no século XVII. No entanto, geralmente, não é a frase completa a apresentada, mas a versão simplificada “o homem é o lobo do homem”.

Agora, começa o problema maior. A maioria dessas fontes pesquisadas indica que a citação fora feita em sua obra mais célebre, ”O Leviatã”. No entanto, isso está errado porque a citação fora feita em seu livro anterior, chamado “Do Cidadão”.

A citação feita, porém, não é literal. Hobbes, na verdade, faz quase uma paráfrase. Assim, ele escreve: “Ambos os ditos estão certos: que o homem é um deus para o homem, e que o homem é lobo do homem. O primeiro é verdade se compararmos os cidadãos entre si. E o segundo, se cotejamos as cidades”. O que o autor quis dizer aqui, considerando todo o contexto no Capítulo I do livro, onde se encontra essa citação, é que a violência que os homens condenam na atitude de seus governantes e concidadãos, praticam-na com os povos estrangeiros; que enquanto buscam paz na própria cidade, fazem guerra com as outras.

Percebe-se, portanto, que a citação de Hobbes envolve uma idéia muito mais ampla do que, simplesmente, a de que o homem é, por natureza e de maneira imutável, um inimigo dos outros homens. O pensamento é bem mais complexo e até ambíguo.

No entanto, transmitiu-se, por gerações, um pensamento bem mais simplificado, quase contradizendo o sentido da frase.

O que mais me interessa, aqui, porém, é mostrar como mesmo uma citação célebre e replicada por séculos pode conter imprecisões consideráveis de sentido e erros de localização, quando não em relação a própria autoria.

Isso mostra a importância, para o estudioso sério, de sempre procurar as fontes originais das idéias, para não ser apenas mais um mero repetidor de equívocos seculares.

Livros, minha vida

Estou orgulhoso do ritmo de leituras que tenho conseguido impor em minha rotina nos últimos tempos. Os livros passaram, decididamente, não apenas a fazer parte da minha vida, mas a ser minha vida. Com isso, posso dizer que hoje leio como um erudito (pelo menos, considerando o número de páginas). Por exemplo, finalizei a História da Filosofia, do Julián Marias, com mais de quinhentas páginas, em quatro dias. Considerando que a maioria dos livros que leio possui a metade desse tamanho, esse ritmo me proporcionaria, aproximadamente, cem livros por ano – nada mal!

Muita gente pode achar a implementação dessa quantidade de leituras algo um tanto excêntrico e até desnecessário. Não me cabe, porém, no parco espaço deste texto, discutir essa questão. O que posso dizer é que não as julgo por pensarem assim, de qualquer maneira. Nem todo mundo é vocacionado para a vida intelectual e, por isso, essas pessoas não são obrigadas a entender o que leva alguém a viver com o nariz enterrado nos livros.

Por outro lado, eu também conheço várias pessoas que gostariam de ler mais, de ter um ritmo de estudos mais consistente, mas sentem uma dificuldade terrível de colocar essa vontade em prática. É gente que sente a necessidade de obter mais conhecimentos, mas percebe que a vida cotidiana apresenta obstáculos que parecem insuperáveis.

Intuitivamente, o que essas pessoas pensam em fazer para conseguir colocar em prática suas ambições de estudos é traçar um plano. Então, elas organizam-se de maneira a separar momentos específicos para praticar suas leituras e fazer seus estudos. Isso é muito bom, mas tem um inconveniente: geralmente, esses planejamentos são idealizados e não consideram as circunstâncias. O resultado é que, apesar do planejamento, dificilmente conseguem colocá-lo em prática.

Acabam, assim, tornando-se céticas quanto a possibilidade de se ler tanto. Elas chegam à conclusão de que, para isso, precisariam abdicar completamente de suas vidas sociais e até profissionais. No fim, desistem, resignando-se com suas leituras esparsas e esporádicas.

O problema nisso tudo, porém, encontra-se menos no planejamento que tentaram colocar em prática do que em algo mais profundo: na própria escolha do estilo de vida que se decide ter. No meu caso, se consegui alcançar uma produtividade satisfatória em meus estudos, isso deveu-se menos ao planejamento – que, na verdade, nem faço – do que à decisão de que os livros passariam a ser mais do que parte da minha vida: eles passariam a ser a minha vida.

O que eu quero dizer é que, se você quer ler a quantidade de livros que acredita satisfatória para o desenvolvimento da sua intelectualidade, não adianta separar momentos para isso. Quem decide dedicar-se à vida intelectual, não planeja quando vai ler; planeja, no máximo, o que vai fazer quando não estiver lendo.

Eu não disse que as leituras hoje são a minha vida? Então… sendo assim, eu não preciso planejar-me para fazer aquilo que envolve a minha vida. Não há momentos específicos para isso. Ler é algo que faço todos os dias, todas as horas, sempre que algo mais urgente não reclame minha atenção. E mesmo nestas horas, ainda dá para encaixar alguma leitura nas pausas que me são oferecidas.

Na verdade, eu não penso sobre quando vou ler. Se há algo que preciso pensar por antecipação é exatamente sobre o que eu vou fazer naqueles poucos momentos quando não estou com um livro aberto diante dos meus olhos.

O Flaubert da minha juventude

Não somos os mesmos de quando éramos jovens. Tudo muda: a forma de ver o mundo, a personalidade trabalhada pelas experiências, a capacidade de perceber o que antes parecia impossível e, especialmente, a forma de ler os livros.

Muitas das minhas leituras de juventude foram feitas sem a capacidade, que tenho hoje, de interpretação e de captação das sutilezas. Por isso, foram leituras defeituosas, muitas delas feitas com um esforço muito maior do que o recomendável para uma boa absorção do conteúdo.

As leituras juvenis são excelentes, pois, apesar de suas falhas, preparam-nos para a vida intelectual da maturidade. Contudo, elas podem acarretar um problema, no qual eu me vi implicado.

Enquanto eu conversava com um amigo, Leonardo Quintanilha, sobre grandes autores, em algum momento ele citou-me Flaubert. Imediatamente, reconheci a superioridade linguística do romancista francês, mas, ao mesmo tempo, fiz um comentário desabonador, dizendo que esse escritor me parecia um tanto enfadonho. Imediatamente, notei a estranheza de meu amigo e eu mesmo fiquei intrigado com minha própria afirmação. Logo, então, corri para minha biblioteca e tomei o Madame Bovary para relê-lo. Que surpresa! Eu estava completamente equivocado.

Flaubert é ótimo! Além de possuir uma fineza de estilo em sua escrita, há, na sua narrativa, uma ironia sutil, qualidades que apenas são vistas nos grandes escritores. E escrevo isso não com a autoridade de um crítico literário, mas com a vergonha de quem não percebeu o que todo o mundo já havia percebido antes de mim.

Meu engano deveu-se por algo muito simples: ter baseado minha crítica em uma leitura feita na minha mocidade. O erro foi ter assumido a impressão juvenil como definitiva. Deslize imperdoável, diga-se de passagem!

Quando li Madame Bovary, o fiz no afã de um iniciado no universo das letras. Li-o estimulado pela moda, à época, de estudar a personagem de Flaubert em seus aspectos psicopatológicos. Na verdade, como todo mundo lia, eu achava que deveria lê-lo também. Deveras, não fiz nada de errado ao tomar um clássico moderno no início de minha jornada intelectual. O deslize foi ter formado uma ideia crítica definitiva a partir disso.

A vida intelectual não é um caminho linear, trilhada com um mero acúmulo de leituras e estudos, mas uma ascensão em espiral, pela qual, constantemente, é preciso retomar obras e autores que vimos tempos atrás, a fim de analisá-los sobre um novo olhar, mais amadurecido e mais sensível, forjado pelo tempo, pela experiência e pelo suor.

Considerar um livro lido na juventude como elemento definitivo do cabedal intelectual pode ser – como se demonstrou no meu caso – origem de equívocos censuráveis. E espero não cometer essa falha novamente.

O problema da concentração nos estudos

Muito do problema da inteligência se encontra na concentração. Às vezes, mais do que ter a capacidade de guardar os dados, é preciso ter a capacidade de absorvê-los adequadamente, e isso significa não permitir que elementos externos criem ruídos durante esse processo. Continue Reading

O intelectual e o mundo

Se a vida intelectual não proporcionar algum tipo de isolamento é sinal que não é tão intelectual assim, afinal, alguém que se preocupe com temas que a maioria das pessoas sequer têm ideia que existem não pode pretender gozar de uma vida social plena. É impossível evitar que o esforço para compreender assuntos que, aos olhos comuns, aparentam ser absolutamente inúteis e gastar tempo com conhecimentos que não produzem nada palpável, seja visto como algo prosaico e seu sujeito tratado como normal.

Carregar livros, em uma sociedade que aprendeu que o valor de cada coisa mede-se por sua utilidade tangível, pode até merecer algum destaque, até mesmo um elogio não efusivo, mas não impede que o vejam como um excêntrico que joga fora o melhor desta vida por algumas letras em papel. E se o intelectual tem a ousadia de compartilhar aquilo que aprendeu com seus mestres mortos, começa a abusar do direito à excentricidade permitida pelos comuns. Uma coisa é gostar de enfadar-se com as besteiras publicadas, outra é achar que tem o direito de incomodar os mortais com isso.

É impossível, portanto, impedir que haja um certo afastamento do intelectual em relação ao restante da sociedade. Se as pessoas que o cercam não demonstram nem um pouco de interesse por aquilo que lhe apraz e lhe dá sentido, esperar que haja perfeita harmonia entre ambos é de uma inocência incrível.

E apesar da inevitável tensão que existe entre o intelectual e o mundo que o cerca, cabe a ele, assumindo a posição que seu status lhe oferece, fazer algo que o aproxime da humanidade, ainda que ela não esteja tão excitada por tê-lo por perto. Afinal, se é ele quem tem acesso às grandes idéias, à sabedoria que os grandes homens compartilharam e se é ele que se dispõe a compreender a realidade, então cabe também a ele agir de maneira superior ao homem comum. E por mais que a reação das pessoas ante ao seu interesse pelas coisas da inteligência seja, por vezes, até hostil, é obrigação de quem se dispôs a viver além do trivial mostrar que suas leituras não são em vão.

Não que o intelectual deva ceder às superficialidades, nem abandonar seus interesses em favor de um mundanismo vazio, que apenas agrada quem dele se alimenta. No entanto, se seu esforço pela compreensão da vida não lhe propiciar uma capacidade de aproximação mesmo junto aqueles que não entendem seu papel, então tanto estudo não serve para muita coisa.

O esforço necessário ao exercício intelectual

Uma vida de esforço intelectual não é glamourosa

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Em uma cultura como a brasileira, tão avessa às questões mais elevadas, o empreendimento intelectual costuma ser visto como uma forma fácil de se viver, que não exige esforço, que não resulta em suor. As pessoas tendem a valorizar o esforço físico, vendo este como verdadeiro trabalho, enquanto quem passa o dia atrás de uma mesa, ainda que seja escrevendo uma enciclopédia, não tarda a ser chamado de sedentário.

O que muita gente não entende é que o esforço físico é muito menos exigente do que o esforço intelectual. Para aquele, basta o hábito, o movimento e logo todo o corpo tende à obediência. O esforço físico demanda, apenas, o impulso inicial. Normalmente, todo o resto pode ser feito com automatismo. Existe a fadiga, é verdade, mas elas chega apenas após a repetição do ato. O corpo humano, animal, é feito para a ação. Assim, com um pouco de vontade, ele não demora a obedecer e a trabalhar.

O cérebro, porém, não é tão obediente, assim. Ele reclama por muito mais; ele exige atenção. A mente não é tão submissa, como é o corpo. É que o esforço intelectual parece ir de encontro à natureza, mesmo a humana. Pensar, raciocinar, refletir pertencem a um nível superior de existência, que não se coaduna, de maneira tão espontânea, à esta tão bestial. Assim, o esforço intelectual torna-se excessivamente trabalhoso. Como ele exige atenção constante, diferente do exercício físico, que pede apenas um impulso, seguido por atos instintivos, se torna muito mais difícil mantê-lo por um tempo prolongado. Basta ver que para a grande maioria das pessoas é muito mais cansativo escrever uma carta, com dez linhas, do que pintar uma parede. As academias sempre estiveram mais cheias que as bibliotecas, e isso não é por acaso.

Se alguém, portanto, pretende empreender uma atividade que lhe demande esforço intelectual constante, deve ter consciência que se defrontará com uma batalha muito difícil. Deve saber que não bastará boa vontade, mas precisará aprender como superar, ainda que temporariamente, a fragmentação para a qual todos estão sendo conduzidos. E se quiser vencer esse embate, será preciso conhecer a natureza humana, com suas tendências e estrutura, além de compreender como o cérebro trabalha, seus caminhos, seus truques e suas reações.

Diferente do que muita gente pensa, uma vida de esforço intelectual não é glamourosa, que pode ser exercida nas pausas, nos momentos de recreação. Pelo contrário, ela exige entrega e, se for desenvolvida com seriedade, dificilmente sobrará muita energia para qualquer outra coisa.

Artigo publicado originalmente no blog Vida Independente