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Preservação da Nossa História

Aqueles que vibram com estátuas sendo derrubadas, fatos históricos rasgados dos registros, heróis renegados e incomodam-se com a livre circulação das idéias torcem pelo fim da própria sociedade onde vivem, pois o desprezo pelas experiências e pelo conhecimento acumulado é o prenúncio do declínio de uma civilização.

Assim faz o pensamento revolucionário, propondo sempre um recomeço, a inauguração de uma nova era, a reconstrução de uma sociedade livre das amarras do passado. Desde a Renascença, pelo menos, essa forma de pensar influenciou os homens mais inteligentes. Francis Bacon e Descartes, por exemplo, inauguraram um tipo de Filosofia que pretendia praticamente ignorar tudo o que já se havia conquistado para iniciar o exercício filosófico a partir apenas de si mesmos. Essa mentalidade filosófica impregnou-se na cultura intelectual e dominou o pensamento de boa parte daqueles que pensavam os questões sociais e também dos responsáveis por dirigir a sociedade.

Todos os movimentos com características revolucionárias, da Revolução Francesa, passando pela Revolução Bolchevique e a Revolução Cultural, na China, tiveram como primeira preocupação destruir todos os vínculos sociais com o passado. Seja a monarquia, a aristocracia, o cristianismo ou a mera cultura existente – tudo deveria ser posto abaixo para a implantação de algo completamente novo.

A idéia subjacente a isso é a de que se algo for tirado da vista cotidiana sairá da memória e do imaginário das pessoas e, assim, acabará esquecido, podendo ser substituído. Foi assim, quando Stalin recortou Trotski da foto que havia tirado o seu lado, imaginando que, dessa forma, estaria reescrevendo a história. No livro “1984” , George Orwell conta sobre uma fornalha, onde as matérias jornalísticas e os registros substituídos eram lançados, sendo condenados ao esquecimento perpétuo, na verdade, como se nunca houvessem existido.

Esse tipo de mentalidade impregnou-se na forma de pensar dos ativistas contemporâneos. Tanto que suas ações visam menos a propositura de algo que a destruição de um passado que, para eles, é indesejável. Quando os testemunhamos derrubando estátuas, reivindicando que nomes sejam retirados dos livros didáticos, suprimindo fatos históricos dos registros, condenando personalidades ao esquecimento estamos vendo a mentalidade revolucionária em plena ação. O que mais esses militantes querem é que toda nossa herança cultural seja esquecida e que, assim, eles possam construir uma sociedade, segundo a imagem e semelhança deles, a partir do zero.

Propostas como a de um “Great Reset” ou de um “Build Back Better” são manifestações mais poderosas desse mesmo tipo de mentalidade, pressupondo que é desejável e possível que as conquistas civilizacionais possam ser abandonadas em favor de um mundo completamente novo.

O problema, para os revolucionários, é que sua tentativa de apagamento do passado é absolutamente artificial. Eles até podem querer riscar da memória da sociedade personagens, fotos e idéias que lhes desagradam, no entanto, precisam conviver com o fato de que, por mais que se esforcem, o passado continuará existindo na mente e na alma das pessoas.

Uma geração não é formada apenas por ela mesma, com seus contemporâneos, mas tem dentro de si todas as gerações que a precederam. Suas idéias, formas de pensar, maneiras de raciocínio não são exatamente criadas por ela, mas praticamente recebidas prontas das gerações anteriores. Sua cultura não é uma criação sua, mas o resultado do acúmulo de tudo o que as gerações anteriores criaram. Se criam algo hoje, isso pressupõe não um partir do nada, mas daquilo que recebeu de herança e que lhe permite não ter que repensar diversas coisas que já foram pensadas. Isso, inclusive, a coloca em uma posição de vantagem em relação às gerações passadas, afinal, tem o privilégio de iniciar o seu pensamento já tendo os pensamentos das gerações anteriores dentro dela.

Pode-se dizer que o legado deixado pelos antepassados é o cimento que pavimenta a sua estrada. Por isso, preservar o passado é essencial. Isso não quer dizer que seja preciso concordar com tudo o que já foi dito e feito. Pelo contrário, é sempre saudável manter um olhar crítico sobre tudo aquilo que se recebeu. Não apenas seus acertos servem de direção, mas, talvez principalmente, seus erros sirvam de lição.

Inclusive, eu defendo que se preserve a memória de tudo o que nos aconteceu, como de todos os personagens (heróis, vilões, admiráveis ou execráveis) que passaram pela nossa história. Obviamente, essa preservação de memória pode vir acompanhada de ressalvas críticos e até de condenações. O que não se pode achar é ser possível apagar o passado.

A preservação da verdadeira história é essencial para a sanidade e estabilidade de qualquer sociedade. Por isso, defender sua memória daqueles que a querem destruir é um dever de todo cidadão. A existência futura da civilização depende disso.

Os motivos de Stalin para o pacto Ribbentrop-Molotov

O pacto Ribbentrop-Molotov deixou os comunistas perplexos. Após mais de uma década de luta anti-fascista, de repente, seu líder máximo, Stalin, firmara um acordo com Hitler, no sentido de ambos países absterem-se de atacarem-se mutuamente.

O acordo, chamado de não-agressão, na verdade, representava um acerto de agressão conjunta à Europa. Além de dividirem a Polônia (país que fica entre as duas potências) ao meio, a Alemanha ficava livre para atacar a parte ocidental e a Rússia os países da parte oriental. Significou, portanto, uma combinação entre duas ditaduras que, inclusive, passaram, a partir dali, a bajular-se mutuamente.

Diante da notícia do pacto, comunistas do mundo inteiro, em um primeiro momento, ficaram perdidos. Eles não sabiam como conciliar tudo aquilo que pregavam com essa nova demonstração de amizade entre dois ferrenhos inimigos. No entanto, logo as explicações começaram a surgir. Delas, nasceram algumas teorias que tentavam explicar quais foram os motivos para uma aliança tão inusitada.

A primeira delas é a mais romântica. Por ela, Stalin, refletindo os ideais comunistas, teria agido em favor da paz. Como os comunistas sempre tiveram um discurso contra as guerras, inclusive tendo abandonado a primeira Guerra Mundial, seu líder, ao firmar um pacto de não-agressão com a Alemanha, estaria apenas colocando em prática aquilo que sua ideologia pregava. No entanto, isso seria crível, não fosse o pacto secreto de divisão da Europa que fora feito junto ao acordo principal, além dos expurgos e toda a violência praticada por Stalin, inclusive contra os próprios membros de seu partido e de seu exército. Um homem com a índole de Stalin jamais trabalharia pela paz, a não ser que a paz lhe trouxesse algum benefício.

Uma segunda versão é mais realista. Por ela, o objetivo de Stalin era manter Hitler ocupado em uma guerra com as democracias ocidentais. Ele sabia que, ao invadir a Polônia, Inglaterra e França viriam em defesa do país do presidente Ignacy Mościcki e isso deflagraria uma guerra entre eles. No entanto, não é certo que Stálin tivesse tanta convicção disso, afinal, Inglaterra e França já haviam falhado na defesa da Áustria e da Espanha e, praticamente, entregaram a Tchecoslováquia para a Alemanha. O próprio Hitler estava convicto de que britânicos, conduzidos por Chamberlain, e franceses, liderados por Daladier – ambos que já haviam dado sinais claros de fraqueza – vacilariam mais uma vez. Stalin não poderia apostar tão alto em algo tão incerto.

De qualquer forma, se aceitarmos que Stalin queria colocar as potências ocidentais em conflito, devemos nos perguntar por qual motivo ele faria isso. Uns dizem que seria para atacá-las depois, outros falam que seu objetivo era esperar que a guerra criasse uma convulsão social nesses países, o que possibilitaria a promoção neles de processos revolucionários em favor do comunismo. Ambas possibilidades são aceitáveis, afinal, o primeiro caso cabia bem à personalidade de Stalin, o segundo aos objetivos declarados do movimento comunista.

Pode ser que a versão mais corrente, que é aquela que atribui o pacto ao gênio político de Stálin, afirmando que ele sabia que a URSS não estava pronta para uma guerra que era inevitável e, portanto, teria firmado o acordo, a fim de adiá-la por algum tempo tenha algum sentido. O único porém é que, quando da Operação Barbarossa, pela qual a Alemanha invadiu o território russo, tudo leva a crer que Stalin fora pego de surpresa. Portanto, as duas versões não se conciliam. Se ele fez o pacto para ganhar tempo, não poderia ser pego de surpresa. Se ele fora pego de surpresa, então o pacto representaria uma verdadeira confiança nas intenções de Hitler, o que denotaria uma grande inocência de sua parte, o que é, apesar de tudo, bastante difícil de acreditar.

Ainda assim, é possível especular sobre os motivos de Stalin não parecer preparado. A confiança na amizade de Hitler não faz sentido. O que pode ter, na verdade, acontecido, é que Stalin apenas tenha calculado mal o tempo. Historiadores afirmam que a URSS, na verdade, estava se preparando para empreender um ataque à Alemanha, porém, esperava fazer isso apenas em 1942. Stálin não acreditava, na verdade, que Hitler o atacaria antes de derrotar a Grã-Bretanha e, por isso, não teria se preparado corretamente para a invasão alemã ocorrida em 1941.

Isso leva-nos a uma outra versão, que aquela trazida por Suvorov, em seu livro, “O grande culpado”. Nela, o autor afirma que realmente Stalin fez o pacto para adiar o confronto com os nazistas, porém, seu intuito seria surpreender Hitler em um ataque à Alemanha em território polonês. Isso só não teria acontecido porque Hitler, informado por seu serviço secreto, fora mais rápido e acabara atacando primeiro. No entanto, segundo Suvorov, há fartos documentos que mostram que a URSS já estava pronta para o seu próprio ataque. Isso deixaria claro que o acordo entre as potências seria uma forma, na verdade, de Stalin enganar Hitler, o que faria dele o grande responsável pela Segunda Guerra Mundial, o que os comunistas e simpatizantes, os grandes divulgadores da história, jamais aceitariam.

O fato é que, com exceção da primeira, todas essas versões possuem algum sentido. Se perguntarem para mim, o que eu acho, diria que não acredito na inocência de Stalin. Acredito, sim, que ele queria colocar os países do Ocidente em guerra, seja para depois atacá-los quando já em frangalhos, seja para promover neles suas revoluções. Também não descarto a possibilidade de Stálin ter feito o acordo para surpreender todos com um ataque surpresa soviético. A única versão que descarto totalmente é a que diz que Stalin trabalhava pela paz. Isso já é demais!

Destruição do passado

Revoltosos conclamam a destruição de símbolos públicos como forma de romper com o passado, o qual consideram um erro a ser esquecido. Hoje, derrubam estátuas, mas já vínham arrancando cruzes. No fim, querem simplesmente apagar a história a marretadas, para que sobrevivam, nas mentalidades atuais, apenas suas ideias revolucionárias.

A iconoclastia não é novidade na história. Sempre existiram grupos, principalmente de cunho religioso e ideológico, que a praticaram. Um dos exemplos mais icônicos e atuais foi a Revolução Cultural chinesa que não apenas destruiu os símbolos do passado, mas decidiu mandar para o além os próprios representantes humanos desses símbolos.

No entanto, o orgulho daqueles que se propõem a apagar o passado denota uma falta de visão histórica, típica de quem vive se aproveitando das benesses da contemporaneidade como se elas fossem uma dádiva divina concedida magicamente às mentes da presente geração.

Iconoclastas não entendem que todas as conquistas do presente trazem embutidas dentro de si todos os erros e acertos do passado, sem os quais não existiriam. Esses erros e acertos são como células que compõem o corpo atualmente existente; como genes dos quais não é possível se livrar. Cada passo dado anteriormente é como um degrau em uma escada e a retirada de qualquer um desses degraus faz ruir tudo o que estiver acima deles.

A sociedade, como os indivíduos, é o resultado de suas próprias experiências. Sem estas, não seríamos o que somos. Se há alguma justiça, alguma consciência, alguma compreensão da realidade, isso deve-se a tudo o que já se experimentou, de bom e de ruim, de certo e de errado.

Nas sociedades, como nos indivíduos, quando os erros do passado são reprimidos, cria-se uma neurose. E uma das características mais marcantes do neurótico é tentar esconder violentamente o passado, ocultando-o desesperadamente de seu campo de consciência.

Preservar o passado não significa reconhecer que tudo o que ocorreu é digno de louvor, mas é fato que o passado não pode ser apagado. Pelo contrário, ele deve estar lá para lembrarmos do caminho que trilhamos até chegarmos onde estamos.

A sociedade normal entende a importância de compreender o passado naturalmente. Tanto que Hitler é provavelmente o personagem moderno mais estudado entre todos. No entanto, revolucionários não costumam ser normais e acreditam que podem, sem custo algum, jogar a história na fornalha de Orwell.

Do trivial ao escândalo

Era o horário de meu almoço e eu estava no restaurante, na fila para pegar minha comida, quando, no televisor acima de minha cabeça, passava o jornal de notícias da Rede Globo, bem no momento em que eles mostravam o General Hamilton Mourão, candidato à vice-presidência de Jair Bolsonaro, citando um lugar-comum conhecido da mentalidade brasileira: de que somos herdeiros dos defeitos ibéricos, indígenas e africanos, ao mesmo tempo.

Neste momento, uma senhora, que devia estar na faixa dos sessenta anos de idade, sentada a uma das mesas, já comendo sua refeição, olhou-me, com um olhar aterrorizado, como buscando em mim um cúmplice de sua revolta. Eu, obviamente, quando percebi seu intento, desviei meu olhar, para que a conversa – que sei bem onde iria parar – nem começasse. Ainda assim, pude ouvi-la dizendo, com uma voz indignada, a palavra “absurdo”.

Interessante tal reação – a qual, de maneira semelhante, pôde ser percebida em diversos setores da sociedade – pois, ainda que não se concorde com o que o general disse, seu discurso não se encaixa exatamente naqueles que podem ser considerados, imediatamente, como absurdos. Ainda que seja uma tese bem contestável, não é tão estranha a ideia de que os problemas de nosso povo se devem, em grande parte, ao tríade legado deixado pelas culturas que lhe serviram de formação.

O que mais me surpreendeu, ainda, foi ver que mesmo intelectuais de direita têm se manifestado pela absurdidade da declaração, transformando algo que é, no máximo, contestável, em imediatamente condenável. No melhor estilo dos tempos atuais, escandalizam-se com o que nem é para tanto.

Tal reação, com efeito, evidencia dois problemas: primeiro, mostra o quanto a mídia é capaz de forjar o imaginário da população. Como neste caso, transformando uma declaração – que, até algum tempo atrás, era considerada trivial – em algo quase criminoso. O segundo problema acontece na própria ciência (principalmente, nas ciências humanas, mas contaminando também outras áreas): que é a proibição expressa de discutir-se determinados temas, apenas por serem considerados inconvenientes ou sensíveis a certos grupos. Assim, cada vez mais assuntos vão sendo jogados para debaixo do tapete, cristalizando suas conclusões, não com base naquilo que a própria ciência alcançou, mas apenas pelos ditames do politicamente correto.

Sinceramente, eu não saberia dizer, com certeza, se as declarações do general estão completamente equivocadas. Tenho a convicção de que nossa sociedade possui qualidades e defeitos desenvolvidos dentro de nossa própria trajetória peculiar, mas que também alguns deles são fruto de nossas heranças culturais. É bem provável que a afirmação do senhor Mourão seja uma síntese simplista de toda a questão. Porém, tratar isso como algo indubitavelmente indecoroso é uma resposta exagerada, senão histérica.