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Ideologia e Natureza

Qual o problema com as ideologias?

Ideologia é uma ideia sobre o que deve ser feito para tornar a sociedade melhor.

O problema é que, geralmente, essa ideia é o reflexo da perspectiva de uma pessoa, com suas idiossincrasias e parcialidades.

Por isso, as ideologias costumam ter mais relação com aquele que a professa do que com a própria sociedade a qual ela se refere.

Dificilmente, uma ideologia trata de uma adaptação às condições sociais reais e às limitações impostas por elas, mas de uma imposição, uma forma de subjugar a sociedade à determinada maneira de entender como a vida nela seria melhor.

Nesse sentido, ideologia é um tipo de tecnologia, ou seja, uma artificialidade inventada para ser aplicada sobre a sociedade, visando melhorá-la.

Por isso, uma ideologia, quase que por definição, como toda tecnologia, é uma luta contra a natureza. Especialmente, uma luta contra a natureza humana.

Não é por acaso que é na manifestação da natureza humana, em seus aspectos mais naturais, que a ideologia vai encontrar maior resistência.

Resistência da Natureza à Ideologia

Estamos submersos num mar ideológico. Desde o século XIX, parece que tudo o que envolve a sociedade e a política só pode ser considerado sob a perspectiva de doutrinas determinadas, de visões de mundo exatamente estabelecidas, fora das quais resta a indefinição e a desorientação. Aceitamos as ideologias como necessárias e hoje já não se consegue pensar o mundo sem elas. Parece que se as ideologias, por uma obra dos deuses, sumisse das cabeças dos homens, não saberíamos mais o que fazer e sucumbiríamos.

O resultado da aceitação incondicional da ideologia é que ela nos tem sufocado. Cada vez menos há espaço para a espontaneidade, para a liberdade, para a auto-determinação. Viver neste mundo ideologizado exige que nos acoplemos a princípios que não são de nenhuma maneira nossos, mas estão nos sendo impostos desde mentes que nada têm a ver conosco.

Asfixiados pela pressão das ideologias que não nos agradam, decidimos então que precisamos escapar delas, mas escolhemos combatê-las de frente. Como aceitamos que elas são necessárias, decidimos confrontá-las com nossas próprias ideologias. Por isso, a sociedade contemporânea, principalmente no século XX, transformou-se num palco de pelejas ideológicas. Cada nação, cada região, cada grupo pareciam possuir seu próprio corpo doutrinário e os conceitos muito bem definidos de como os povos deveriam ser conduzidos.

Independentemente da cor ideológica que, em cada momento histórico, saiu vencedora, quem sofreu todas as vezes foi a humanidade. A imposição de uma ideologia sempre torna-se um fardo para as pessoas, pois impõe sobre elas convicções que não são as de todas. Uma ideologia transformada em ação governamental transforma-se em opressão, invariavelmente.

Isso porque toda ideologia, por definição, é artificial. Sendo uma visão de mundo desenvolvida por uma mente finita, com perspectivas particulares e pontos de vista peculiares, possuindo uma ideia de como a sociedade deveria ser ou o que pode ser feito para melhorá-la, assume a condição de tecnologia, o que a caracteriza como uma artificialidade.

Do lado oposto da artificialidade ideológica encontra-se a natureza, com sua espontaneidade e força de resistência. Por isso, toda vez que a ideologia tenta se impor encontra dificuldade. É próprio da natureza se debater quando se sente sufocada. Faz parte de seu instinto de sobrevivência. Por isso, movimentos atuais, como o Brexit, a campanha de Trump e mesmo de Jair Bolsonaro, mais do que ideologias concorrentes àquelas que vinham sendo impostas, são as comunidades se estrebuchando, como que em um último movimento desesperado da natureza para libertar-se daquilo que lhe vinha estrangulando. E, com efeito, foi o único movimento de resistência que obteve algum sucesso nesse sentido.

De fato, o melhor adversário da ideologia é a natureza. Em especial, a natureza humana, com sua espontaneidade e instinto, é a única força capaz de se levantar contra as injunções das doutrinas políticas transformadas em plataformas governamentais. Não que seja um problema em si mesmo possuir ideias políticas e mesmo convicções de como a sociedade poderia ser dirigida. O problema é quando essas ideias são enfiadas a seco na vida de todo mundo. Neste caso, mesmo uma boa ideia pode se tornar uma violência.

Por isso, eu jamais escrevo em defesa de uma ideologia qualquer. Tudo o que eu digo, em termos políticos, é em defesa da natureza humana, das pessoas mesmo, em suas individualidades, costumes, hábitos e, consequentemente, diversidade. Não defendo uma ideia, mas um sujeito: o homem.

A Quarta Teoria Política

Desde o século XVIII, utopias e ideologias revolucionárias sucederam-se, constituindo-se invariavelmente de elementos antiliberais e anti-individualistas. Todas elas se levantaram contra as forças do mercado, a autonomia dos indivíduos, a livre competição e a liberdade, de maneira geral. Mostraram-se, invariavelmente, coletivistas e apostaram num sistema social planificado, executado por meio de um poder centralizado, formado por uma elite iluminada.

O professor Alexander Dugin as tem como modelos a serem seguidos, propondo que se dê, de alguma maneira, continuidade ao que elas começaram. No entanto, ele identifica nesses movimentos características modernas, as quais rechaça, propondo que sejam abandonadas. Assim, o Eurasianismo acaba se apresentando como uma espécie de evolução das ideologias predecessoras, porém sem os elementos modernos que as caracterizaram.

O Eurasianismo denomina a si mesmo de Quarta Teoria Política porque, segundo sua interpretação, houve três movimentos políticos anteriores e que, agora, chegou a hora da manifestação do quarto movimento. O primeiro desses movimentos teria sido o liberalismo, que é o que dá origem ao capitalismo e, consequentemente, ao globalismo. Nele, o ator político principal é o indivíduo. Todos as ideologias posteriores vão se levantar contra ele, inclusive, o eurasianismo. Em seguida, viria o comunismo, que se caracterizaria por ser, além de antiliberal e anti-individualista, coletivista. Seu ator político principal é a classe. No entanto, o comunismo, segundo a visão duginiana, teria falhado por ser ateu, materialista e por querer se sobrepor às nacionalidades, por meio de uma união comunista internacional. O próximo movimento seria aquele que o professor Dugin chama de Terceira Via, que nada mais é do que o fascismo que se manifestou na Itália e na Alemanha. Este teria uma característica anti-individualista também bastante forte e isso é louvado no eurasianismo. Seu ator político principal é a nação. O defeito do fascismo, porém, estaria em sua xenofobia e racismo.

Após essas três teorias políticas, a Quarta Teoria Política, representada pelo eurasianismo, seria como uma evolução delas. Na verdade, seria como uma lapidação, principalmente do comunismo e do fascismo. O que o eurasianismo propõe é que simplesmente tome-se as ideias anticapitalistas, antiliberais e anti-individualistas dos dois movimentos anteriores, além de seu coletivismo e de sua índole revolucionária, apresentando uma nova versão ideológica, abrindo mão apenas daquilo que diz ser moderno neles e incompatível com a Tradição.

Fica claro, portanto, que a Quarta Teoria Política nada mais é do que mais uma manifestação revolucionária. Ela possui o mesmo espírito destrutivo dos movimentos ideológicos anteriores. Apesar de afirmar que pretende estabelecer um respeito ao tradicionalismo, propõe o fim do mundo como o conhecemos. À maneira revolucionária, deseja que não se deixe pedra sobre pedra do modo de vida atual (inclusive suas conquistas democráticas e a favor da liberdade do indivíduo), para o restabelecimento de um tipo de sociedade que se supõe ter existido num passado longínquo.

No entanto, que novidade há nisso? Não foi exatamente isso que todos os movimentos revolucionários propuseram? Não é essa crítica à forma de vida contemporânea e o sonho de trazer de volta algo de uma Era de Ouro, quando tudo parecia ser melhor e mais saudável, que estão contidos nos escritos dos socialistas utópicos, desde o século XVI?

Além do mais, apesar do professor Dugin se apresentar com um tipo de apóstolo antimoderno, ele mesmo está tomado de modernismo. Apesar de possuir uma retórica tradicionalista, seus valores basilares são todos modernos. 

Em primeiro lugar, o professor Dugin afirma que sua concepção do indivíduo é absorvida de Heidegger (um filósofo moderno). O sujeito da Quarta Teoria Política deve ser encontrado no conceito heideggeriano de “Dasein” (ser aí/aqui). No entanto, o “dasein” é tipicamente um conceito moderno, pois configura o indivíduo não como um ser metafísico, ontológico, nem individuado, mas como potencialidade, basicamente. É um conceito existencialista, que praticamente despreza o ser enquanto ser permanente – o que não deixa de ser uma compreensão bastante moderna.

Outro conceito defendido pelo professor Dugin é a multiculturalidade. O tempo todo ele reclama da unipolaridade do imperialismo americano e reivindica a dissolução desse etnocentrismo. Porém, isso também é um conceito bem moderno, diferente da perspectiva tradicional que, baseada na centralidade da religião, era mais universalista.

Além disso, o professor Dugin é saudosista de um tempo que não conheceu, mas acredita ter sido superior em diversos aspectos. Porém, essa é outra concepção característica da modernidade que, desde o Renascimento (pré-moderno), busca, de alguma maneira, a restauração de formas antigas. O próprio Rousseau propunha algo desse tipo. Praticamente todos os socialistas utópicos propuseram isso. Hitler propôs isso. Apenas o marxismo tentou evitar cair nesse saudosismo, mas nem ele pôde evitá-lo, quando pensou no comunismo como um sistema de vida semelhante aos tempos primitivos, quando não havia divisão de classes. De qualquer forma, esse saudosismo é mais um elemento moderno existente numa ideologia que se apresenta antimoderna.

Com tudo isso, considero demonstrado que o Eurasianismo (denominado de Quarta Teoria Política) é uma teoria contraditória, pois, apesar de sua retórica tradicionalista, não passa de uma ideologia revolucionária e apesar de seu apelo antimodernista não deixa ele mesmo de ser essencialmente moderno.

Por Que o Socialismo não Funciona

Na experiência pessoal, temos a convicção de que uma vida bem planejada é sempre superior a uma de conduta desregrada. O senso comum diz que quando algo é projetado com esmero, a tarefa, além de ser melhor realizada, ainda é realizada em tempo mais exíguo. Portanto, quem se planeja só tem a ganhar.

No entanto, a questão é: essa experiência que obtemos em nossa vida privada também pode ser aplicada à sociedade?

Os socialistas acreditam que sim, pois têm a convicção de que o planejamento é capaz de oferecer soluções para uma ordem social eficiente. Para eles, a sociedade tem mais chances de dar certo se for bem arquitetada. Por isso, propõem sociedades planificadas, prometendo que, dessa forma, será possível gerar riqueza para o sustento dos povos, superando, inclusive, os defeitos do capitalismo.

No entanto, toda planificação exige controle. Por isso, juntamente ao planejamento, os socialistas entregam uma sociedade totalmente dirigida, com pouco espaço para a liberdade individual, com um poder central forte e completamente comandada por uns poucos iluminados. O projeto, neste caso, transforma-se em prisão.

Friedrich Hayek identifica esse desvio socialista à sua racionalidade ingênua, tanto que a chama de “racionalismo construtivista”. Segundo ele, o problema fundamental do socialismo estaria em sua convicção na capacidade da razão humana avulsa de identificar os problemas e propor as devidas soluções. Ocorre que, em vez de soluções, o socialismo entregou tragédias. Lembremos que foram exatamente sob governos planificadores que surgiram as piores tiranias.

Explicando essa realidade, Hayek, em seu livro “Os erros fatais do socialismo”, oferece sua tese fundamental: de que o socialismo não dá certo exatamente porque uma ordem social planejada não é capaz de se tornar uma ordem social eficiente. O fato é que o planejamento social não pode garantir a posse do conhecimento acumulado nos séculos.

Planejar é uma tarefa individual, no máximo, a ser realizada em colaboração. De qualquer forma, depende que mentes individuais, conscientemente, proponham atos a serem executados para que certos resultados sejam alcançados. Na vida dos indivíduos, isso costuma funcionar bem; em ambientes controlados, como empresas e escolas, também costuma dar certo. O problema é quando se tenta usar do mesmo método em toda a sociedade. Ela não permite ser gerenciada dessa maneira. Sua complexidade, diversidade e ausência de propósito unificado fazem com que qualquer tentativa de direcionamento impeça o processo de desenvolvimento que lhe é próprio e que acontece de maneira espontânea.

O que Hayek argumenta é que nossos valores e nossas instituições são parte de um processo inconsciente de auto-organização. Como já se observa em outros sistemas complexos que se estruturam de forma não-linear, mas de maneira multifacetada e aparentemente irrastreável, a sociedade progrediu por meio do acúmulo de conhecimentos diversos, que se completam, se influenciam e se destróem mutuamente.

O que ocorre nessa ordem ampliada é que os conhecimentos, sem intervenções conscientes, circulam livremente, permitindo com que aqueles que se mostram mais eficazes permaneçam e os ineficazes sejam descartados. As ideias acumuladas na sociedade são auto-geridas dentro dela, mantendo, por seleção, aquelas que demonstram ser mais importantes e eficazes. Seria como um darwinismo dos conhecimentos, fazendo permanecer aqueles que se adaptam melhor às necessidades da sociedade.

Esses conhecimentos sobreviventes acabam se impregnando em nossas tradições e em nossa cultura, enriquecendo-nos com uma sabedoria que seria impossível acumular por meio de um controle centralizado. Aliás, esse é o grande problema do socialismo: ele não tem essa sabedoria espontaneamente acumulada – e jamais a terá. Por isso, a ordem ampliada sempre será superior.

Inclusive a moralidade, que tem papel essencial na estabilização social, na perspectiva de Hayek, não é instintiva, nem criada pela inteligência consciente, mas constitui uma tradição intermediária separada. Para ele, a moral se desenvolve concomitantemente à racionalidade, não como produto dela. Nisto, ele repete Hume, que dizia que “as regras de moralidade não são produtos de conclusões da nossa razão”. O que Hayek queria dizer é que a própria moralidade é parte da seleção natural que a sociedade faz com suas ideias, permitindo sobreviver aquelas que melhor se adaptam às suas necessidades.

Por isso, o socialismo jamais poderá dar certo. Como suas ideias não são conclusões derivadas do acúmulo de conhecimento, nem sua prática fruto de uma sabedoria desenvolvida no seio da sociedade, não passando de concepções avulsas de homens desapegados da tradição, ele estará sempre sujeito a todo tipo de equívocos. Não é por acaso que as tentativas de implantá-lo, além de não gerarem nem a sombra de riqueza que o capitalismo gerou, ainda estimulou as maiores mazelas, como genocídios, perseguições, tiranias e todo tipo de desequilíbrios.

O fato é que, se a civilização deve sua existência, prosperidade e estabilidade a uma forma específica de conduta, como aquela que a ordem ampliada lhe forneceu, não tem o direito de trocar isso por promessas vazias oriundas de mentes avulsas, com suas fraquezas e limitações. Seria como aceitar um pedaço de terra no deserto, com a promessa que ali se fará um grande latifúndio, em troca de uma fazenda próspera e bem equipada em terras férteis sob um clima tropical.

A verdade é que a civilização depende da ordem ampliada de cooperação humana, ainda que ela pareça incompreensível, à primeira vista, e desagradável, em alguns momentos. De qualquer forma, dela dependemos e somente nela podemos seguir com razoável segurança.

A Linguagem Diversionista dos Frankfurtianos

Os pensadores da Escola de Frankfurt passaram todo o tempo da existência do Institut esforçando-se por passarem a imagem de moderados. Em seus escritos, abusaram dos eufemismos e da linguagem diversionista, sempre com o intuito de tornar a adesão ideológica de seus membros escondida por trás das expressões escolhidas. Palavras como socialismo, comunismo e marxismo eram constantemente evitadas. Em seu lugar, era comum usarem pensamento progressista, sociedade avançada, materialismo histórico, forças construtivas da humanidade etc.

Diante disso, muitos leitores tiveram dificuldade de captar a intenção apologética dos frankfurtianos. Não perceberam que por trás de toda pretensa erudição e rigor metodológico havia, antes de tudo, o objetivo de tornar o socialismo aceito pela sociedade. Mais ainda, os próprios estudos eram feitos fundamentados nas premissas marxistas.

Assim, a Escola de Frankfurt tornou-se uma das maiores influências intelectuais do Ocidente.

Nada disso teria acontecido, porém, se aqueles que os leram e interpretaram atentassem para o fato de que a linguagem é o adorno pelo qual o autor escolhe como vai expor o conteúdo de seu pensamento, podendo ser fiel a ele, tornando-o mais belo e assimilável, mas sem alterar sua essência, ou ser uma vestimenta nobre em corpo de mendigo, servindo apenas para dar aparência de riqueza a algo que é miserável.

A verdade é que, para entender a profundidade do pensamento de alguém, o pior método é apegar-se à linguagem escolhida pelo autor. Na verdade, o verdadeiro trabalho do intérprete consiste em desbastar a mata linguística que costuma esconder o sentido real que se encontra por trás dela.

Quem ignora isso, não está apto para captar a verdadeira natureza do discurso, tornando-se vítima da confusão promovida por uma linguagem muitas vezes escolhida para confundir mesmo.

Na verdade, se as pessoas prestassem mais atenção ao conteúdo, em vez de ficarem deslumbrados com a linguagem usada pelo autor, muito menos lixo seria propagado por aí.

Inocência ou missão

Os pensadores da Escola de Frankfurt foram bastante razoáveis ao criticar o fascismo e o stalinismo, revelando a natureza autoritária do Estado governado por essas duas ideologias.

No entanto, enquanto faziam isso, continuavam acreditando nas promessas socialistas, desenvolvendo seu pensamento sob as categorias marxistas, ignorando que o socialismo que todos eles defendiam, inapelavelmente, sempre acaba desembocando em um governo autoritário.

A impressão que se tem é que eles não viam que o socialismo é um proposta de sociedade que impõe um determinado tipo de ordem que exige planejamento e direcionamento detalhados. O socialismo pressupõe planificação e dirigismo.

Não há, portanto, como implantar uma sociedade socialista sem que seja por meio de uma ditadura. Inclusive, Marx tinha plena consciência disso ao pressupor a ditadura do proletariado.

Não é por acaso que o socialismo sempre transforma-se em ditadura.

Os frankfurtianos não perceberem isso, ao mesmo tempo que criticavam o Estado autoritário, conduz-nos a duas conclusões possíveis: eles eram muito ingênuos, cegados pela fé ideológica, ou seu papel era exatamente tornar o marxismo palatável para o mundo.

O PCO e a defesa do indivíduo

O que faz comunistas, como os membros do PCO – Partido da Causa Operária, defenderem, da mesma maneira como fazem conservadores e direitistas, liberdades individuais, falar contra a obrigatoriedade da vacina, criticar o uso de bandeiras identitárias e o politicamente correto e ainda defender o armamento da população?

Dizer que fazem isso como forma de enganar as pessoas, a fim de cooptá-las para seu movimento, é uma resposta bastante simplista, meramente psicologista, e que não explica seus verdadeiros motivos. Para compreendê-los, é preciso antes entender a concepção deles sobre a composição política do mundo.

Quando eu comecei a estudar, de maneira mais sistemática, a filosofia marxista ortodoxa (vertente da qual o PCO faz parte), a primeira impressão que tive é que o que era dito ali não estava totalmente errado. Em termos filosóficos, esse marxismo fala muito em objetividade, realismo, contra o subjetivismo – tudo de maneira que parece estar de acordo com o melhor que existe do pensamento tradicional.

No entanto, apesar das aparências e até das semelhanças pontuais, os motivos do marxismo ortodoxo são completamente outros. Seu realismo é o de um mundo totalmente materializado, sem qualquer abertura para o transcendental; seu objetivismo é de uma realidade fechada, na qual o homem é apenas um efeito; seu anti-subjetivismo é somente uma confirmação de seu próprio materialismo e anti-espiritualismo.

Isso quer dizer que, às vezes,certas semelhanças de concepções são apenas aparentes. No caso dos conceitos filosóficos, são semelhanças meramente semânticas.

Em relação aos assuntos menos filosóficos, apesar de superficialmente algumas ideias manifestadas pelo PCO serem idênticas aquelas que os conservadores e direitistas defendem, os fundamentos são completamente outros.
O PCO é um partido trotskista. Isso quer dizer que ele faz parte de uma ala ainda mais radical do marxismo do que a maioria da esquerda que atua, hoje em dia. Até por isso, sua visão de mundo é bem mais dogmática e dualista do que o esquerdismo globalista que conduz a política mundial. Para um membro do PCO, todos os governos atuais – e os Estados dirigidos por eles – fazem parte de um fascismo reacionário e representam os interesses do capitalismo burguês inimigo do proletariado. Sendo assim, tudo o que os governos fazem não passam de ações opressivas do Estado contra o trabalhador. Sob esta perspectiva, a vacinação obrigatória, o politicamente correto e o desarmamento da população seriam meras maneiras que o Estado burguês teria de oprimir ainda mais o indivíduo, tornando seu governo cada vez mais forte. O PCO, portanto, não está exatamente preocupado com indivíduo, mas em denunciar as ações do que ele considera ser um Estado fascista.

Os trotskistas do PCO não criticam o Estado da mesma maneira que os conservadores e direitistas. Estes defendem a liberdade individual por princípio, independentemente do espectro político que o governo representa. Os trotskistas, por outro lado, acusam os atos específicos desse Estado, não porque entendem que os direitos individuais são indiscutíveis, mas simplesmente por considerarem o atual Estado um representante de uma classe inimiga. O PCO, na verdade, defende os indivíduos por estes viverem sob governos que eles consideram fascistas. Se o governo fosse trotskista, a conversa seria outra.

A tolerância de Marcuse

Quando vemos os defensores da tolerância agindo com sua intolerância habitual, a tendência que temos é de concluir que se trata de mera contradição da parte deles. Pensamos: como são hipócritas! No entanto, a intolerância dos tolerantes não acontece por acaso, mas está delineada nas obras de pensadores que a promoveram.

O pensador que falou especificamente sobre isso foi, no caso, Herbert Marcuse. Intelectual marxista, representante da Escola de Frankfurt, Marcuse apresentou os conceitos de tolerância abstrata e tolerância concreta. Aquela representaria a tolerância dos inimigos políticos de Marcuse (entenda-se: capitalistas e representantes do status quo) e seria um conceito de tolerância que, ao promovê-la de uma forma ampla e quase irrestrita, acabava sendo tolerante com a injustiça, o preconceito e à opressão. Enquanto isso, pela tolerância concreta, deveria tolerar-se apenas o que fosse tolerável, enquanto que o intolerável deveria ser rechaçado.

Esse conceito de tolerância concreta, seletiva, alcançava também as meras opiniões, afinal, opiniões preconceituosas favorecem o ódio e, da transformação do discurso de ódio para o ato de ódio, seria um passo.

O problema é que as opiniões perigosas, para Marcuse, encontravam-se todas entre os representantes do sistema capitalista. Segundo o pensador alemão, eram estes que destilavam ódio, proclamavam ideias racistas, preconceituosas e opressoras. Por isso, concluia que a sociedade, ao ser tolerante com as ideias deles, estava sendo indiretamente intolerante com os oprimidos e marginalizados. Afirmava, então, que não deveria haver tolerância alguma em relação ao que esses, que eram identificados com verdadeiros fascistas, diziam.

Em relação à tese geral do pensamento de Marcuse, não há o que contestar. Nenhuma sociedade jamais foi incondicionalmente tolerante. Todas tiveram princípios e ideias inquestionáveis e não aceitavam que esses princípios e ideias fossem aviltados. Quando o pensador afirma que nem tudo deve ser tolerado, não existe pessoa de bom senso que não concorde com ele.

O problema reside em quem determina o que é e o que não é tolerável. Quando a sociedade democrática tenta promover a tolerância mais ampla possível, ela apenas está reconhecendo que ninguém tem o monopólio da verdade, nem da virtude. Sendo assim, apenas o senso comum poderia definir o que seria realmente intolerável. O problema existe quando não há mais senso comum.

Ocorre que, na tese de Marcuse, existe um grupo que, em essência, possui um discurso preconceituoso e opressor: os reacionários. Assim, identifica nesse grupo algo que não pode ser tolerado, de maneira alguma.

Com isso, o jogo retórico de Marcuse acaba desnudado, pois fica evidente sua artimanha de lançar sobre seus inimigos políticos ideias que eles não defendem, necessariamente. Racismo, xenofobia, fascismo e todo tipo de preconceito são colocados nas costas dos adversários de Marcuse, demarcando-os, definitivamente, como pessoas que não devem ser toleradas.

E quem possui o discurso aceitável? Obviamente, os esquerdistas, revolucionários e todos aqueles que se encaixem na definição neo-marxista de excluídos e marginalizados. Assim, apenas as ideias deles devem ser toleradas. Para Marcuse, apenas eles são detentores dos mais nobres ideais e apenas eles representam a justiça.

A consequência dessa perspectiva marcusiana é que o conceito de tolerância acaba sendo aplicado apenas aos amigos do pensador. Ser tolerante é, no fim das contas, permitir que a esquerda fale e faça o que bem entender e proibir a direita, se possível, até mesmo de existir.

O que fica claro é que a ideia de tolerância de Marcuse nada mais é do que a tentativa de colocar em prática um totalitarismo esquerdista, que cala a boca de seus adversários e deixa a sociedade à mercê de sua ideologia. Essa tolerância não passa de uma boa desculpa para tentar calar seus inimigos políticos, taxando-os com os adjetivos mais repugnantes. No fim das contas, a tolerância de Marcuse não passa de uma arma política.

Os justiceiros sociais de hoje, quando agem violentamente contra seus adversários, ao mesmo tempo que clamam por tolerância, não estão sendo contraditórios, mas apenas colocando em prática, conscientemente ou não, da estratégia política marcusiana.

Ideologia e poder

Ter ou não ter uma ideologia? Até o cantor Cazuza disse que queria uma e mesmo o professor Olavo de Carvalho já afirmou que é preciso tê-las. O fato é que as ideologias possuem um certo tipo de atração. Elas oferecem uma espécie de apoio, algo no que as pessoas podem depositar sua confiança. Confessar uma ideologia dá a impressão de viver sobre princípios claros. Por isso, as pessoas admiram aqueles que a professam e até têm-nos numa condição superior. Podem discordar deles, até combatê-los, mas consideram-nos gente que sabe o que quer, que busca algo na vida.

Isso, porém, é o maior engano que se pode cometer. Ideologias parecem com princípios, mas, geralmente, não passam de mero pretexto para o poder.

Vejam o comunismo. Seu objetivo é o poder. Ele possui uma ideologia por trás, tem lá suas ideias, muitos seguidores, no entanto, todas as vezes que foi preciso mudar as convicções para que os projetos de poder se concretizassem, não houve problema algum.

O pacto Ribbentrop-Molotov, que abriu as portas para a Segunda Guerra Mundial é um exemplo claro disso. Os comunistas do mundo inteiro, após passar mais de uma década numa luta contra os fascistas, criando, inclusive, todo um linguajar e uma cultura de combate contra eles, de repente, viram-se diante de um acordo, de seu líder máximo, na época, Stalin, com o próprio Hitler. Por este acordo, além de partilharem a Polônia, os dois governos ainda passaram a tratar-se como irmãos.

A partir dali, até a quebra do pacto pelos Alemães, foram três anos de ações que denotavam uma verdadeira aliança nazi-comunista. Tanto foi assim que, na Rússia, o próprio Pravda passou a escrever matérias em favor dos alemães, enquanto a palavra fascista fora suprimida completamente de seus artigos. Até os guardas das prisões russas foram proibidos de chamar os prisioneiros políticos de fascistas.

E o que fizeram os comunistas do mundo inteiro? Revoltaram-se contra a vergonha que sua liderança soviética lhes impunha? De maneira alguma! A orientação de Moscou aos comunistas de todos os lugares era não se atrever a criticar os germânicos – e assim foi fielmente obedecido pelos séquitos. Ou seja, não importava mais a ideologia, nem os princípios, mas o poder. E se Stálin, o grande líder, havia feito um acordo era porque, independentemente de qualquer coisa, estrategicamente, havia algum motivo que seria melhor para o movimento.

Isso mostra como a ideologia não existe tanto como doutrina, nem como fundamento intelectual das ações, mas como desculpa. O que importa mesmo são os objetivos e, para alcançá-los, qualquer ação vale. Não existe, portanto, esse negócio de superioridade ideológica. O que está em jogo mesmo é a disputa de poder. Com ideologia ou sem ideologia, são homens e grupos lutando para dominar uns aos outros. A ideologia serve mais como agrupadora, do que orientadora, de fato.

Por isso, se não desprezo completamente as ideologias, também não me convenço da superioridade de nenhuma delas.

Cosmovisão marxista

O marxismo não é apenas uma proposta de sociedade, menos ainda uma mera sugestão econômica. O marxismo é uma visão de mundo, uma forma completa de ver a existência. Da composição da matéria à maneira como a história se desenvolve, o marxismo oferece uma explicação total e própria sobre o universo.

No entanto, a maioria das pessoas que se propõem a criticar e até combater o marxismo concentram-se nos aspectos exteriores dessa ideologia e acabam não atacando sua verdadeira força, que vem da formatação mental que ela estabelece.

Assim, quem luta contra o marxismo apenas nos campos econômico e social termina – ainda que algumas vezes consiga atrapalhar a marcha marxista – sendo engolido por ela, quando não, inconscientemente, até contaminado pelos princípios de sua ideologia.

Diante disso, torna-se necessário entender que existe toda uma visão de mundo que sustenta o pensamento marxista. Há fundamentos que fazem do marxismo muito mais do que uma mera escola social ou de economia. O que o marxismo oferece é uma verdadeira cosmovisão.

Sendo uma cosmovisão, o marxismo formata a mentalidade de todo aquele que é submetido aos seus ensinamentos. Quem é doutrinado por seus princípios já não enxerga o mundo da maneira natural, mas começa a vê-lo de uma forma bastante específica e diferente de tudo.

Considerando que o marxismo é o maior empreendimento cultural da humanidade, acabamos por ter uma geração inteira contaminada por sua cosmovisão artificializada, o que se reflete em todas as áreas da experiência humana – da intimidade, passando pela religião, encontrando até mesmo a ciência.

Assim, independentemente dos entendimentos específicos que um socialista possua – dos mais extremistas aos mais moderados – há uma visão de mundo subjacente, e que é a mesma para todos eles, que lhes fornece as bases para sua forma de pensar e percepções.

Por isso, quem quiser combater o marxismo precisa entender esse seu caráter fundamental. Só assim, torna-se possível compreender a forma de pensar de quase toda uma geração de intelectuais, políticos e cientistas, além de entender o que está formatando a mentalidade do resto das pessoas.

Estudar a filosofia marxista deveria ser o primeiro passo, portanto, não apenas daqueles que se propõem a combater o comunismo, mas mesmo daqueles que pretendem entender a cabeça das pessoas do nosso tempo. Afinal, ninguém vive nestes dias sem espelhar, de algum modo, as formas de pensar do marxismo.