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Enquanto a Guerra Durar

ara quem não tem a reflexão como um aspecto essencial de sua vida é muito difícil entender o drama que representa, para um escritor, a relação da expressão dos seus pensamentos com a complexidade contraditória da vida cotidiana, especialmente da política.

A vida intelectual, desenvolvida em grande parte no mundo das ideias, tende a abstrair os problemas reais, e o pensandor, quando se depara com esses problemas, pode assustar-se com a dissonância entre eles e suas próprias especulações.

O filme “Enquanto a guerra durar” mostra bem essa aflição. Nele está retratada a tensão existente, em um intelectual, entre sua necessidade de escrever sobre a realidade que observa, ao mesmo tempo que testemunha os caminhos contraditórios que ela toma, muitas vezes se opondo àquilo que foi escrito.

Não há nada mais caro para um filósofo do que sua coerência e nada mais angustiante do que vê-la ameaçada, quando as análises feitas sob certas circunstâncias parecem equivocadas, ao serem confrontadas com a experiência real.

A obra de Alejandro Almenábar trata disso e consegue transmitir a contínua e silenciosa ansiedade que toma conta do pensador Miguel de Unamuno por causa do progressivo contraste que vai se apresentando entre seus princípios intelectuais e suas opções – ainda que ocasionais – políticas.

Apesar do roteiro de “Enquanto a guerra durar” ocultar a confusão e violência promovidas pelo esquerdismo espanhol – o que conduzia o país ao caos – enfatizando a reação franquista, com sua óbvia virulência, o foco do filme é principalmente voltado para a aflição de Unamuno – e ele a mostra muito bem, apesar de certo lirismo e discrição.

Miguel de Unamuno apoiou o início do movimento liderado pelo general Francisco Franco por entender que era preciso fazer algo para conter a anarquia promovida pelos ‘rojos’ republicanos. No entanto, o fascismo franquista logo mostrava para o escritor que esse apoio estava sujeito a muitas ressalvas.

Na política, geralmente, é assim: apoiar o grupo que se levanta contra o mal evidente não significa apoiar o bem, mas o mal menor. Aliás, política é a contínua escolha pelo mal menor. No entanto, este mal, muitas vezes, é só um pouco menor que o mal maior, ou seja, contém muito de mal em si mesmo e apoiá-lo, seja qual for sua intensidade, vai contra os valores de qualquer pensador minimamente honesto.

A coerência é um patrimônio inegociável para um intelectual. Portanto, a falta de linearidade, a ambiguidade moral e a incerteza quanto às motivações, que tanto caracterizam os movimentos políticos e sociais, podem ser inquietantes para ele. Por isso, o filme “Enquanto a guerra durar” merece louvor, afinal, tem o mérito de captar essa angústia de forma sensível e profunda.

As Ideias dos Náufragos

Importam apenas as ideias dos náufragos, pois são pensamentos de alguém em um cenário concreto, inescapável, fatal; pensamentos que dispensam o supérfluo e agarram-se ao essencial.

Em meio ao caos e às restrições que enfrenta, o náufrago organiza sua vida com base naquilo que lhe está disponível. Nesta situação, não há espaço para a pose, para a falsidade, nem afetação; não faz nenhum sentido perder-se em sutilezas vazias e especulações estéreis. Diante do caos instalado, ele precisa ser sincero e absolutamente honesto consigo mesmo, sem fingir que sua situação não é trágica.

Nós, porém, escolhemos negar essa circunstância fatal na qual nos encontramos e preferimos nos refugiar numa mentalidade abstrata que, para manter-se coerente e lógica, recorta a realidade, purifica-a de sua experiência vital, afasta-a de suas incongruências práticas e evita suas contradições. Encontramo-nos, por isso, alienados.

O que são os nossos sistemas de governo, estruturas jurídicas e modelos sociais senão aquilo que nos permitem ter a ilusão de viver em uma situação minimamente estável, apesar de imponderável?

Se vivemos, porém, como se tudo fosse inabalável, ainda que instalados em terreno movediço, nos encontramos, então, como que hipnotizados, e, para libertar-se dessa situação, a única saída é uma conscientização radical, uma abertura total de visão para o que está acontecendo.

Precisamos admitir que construímos uma ilusão e, ao mesmo tempo, abraçar o nosso caos, aceitando que este é o estado natural das coisas; enfrentar a vida de forma corajosa, sem nos escondermos no universo quimérico das ideias abstratas; reconhecer o caráter desafiador da existência e concordando com o fato de que nos encontramos perdidos.

Precisamos ser como os náufragos que, pela característica extrema e vital que os acomete, encontram-se desprovidos de fingimento e engano, reconhecem a fatalidade da sua experiência real e consideram aquilo que, verdadeiramente, deve ser levado em conta. Por isso, suas ideias são as que realmente importam.

A Simplicidade da Inteligência

Observem como os formadores de opinião mais requisitados não são aqueles que analisam os fatos com acuidade e sinceridade, mas os que dão provas de que estão ao lado das bandeiras do momento.

Isso porque, na sociedade atual, os considerados mais inteligentes não são aqueles que tentam compreender a realidade, mas os que se adequam a ideias já consagradas, divulgando-as, não como pensadores, mas como propagandistas.

No entanto, a inteligência não se revela na repetição de ideias, nem na divulgação de conceitos, mas na capacidade de captar, com fidelidade, a realidade; não é um exercício de replicação, mas de absorção. Alguém que compreenda bem o mundo a sua volta, mesmo não conseguindo expressar devidamente o que vê, ainda pode ser considerado inteligente; quem, porém, apenas reverbera as construções mentais, ainda que criativas, mas que são baseadas numa interpretação equivocada da realidade, não o será jamais.

Por isso, é mais provável encontrar inteligência nas ruas do que nas cátedras. O povo, pelo menos, enxerga a realidade diretamente, sem vieses que lhe desviem. Os considerados inteligentes, esses geralmente acabam corrompidos pela própria instrução.

Releituras

Nem todos os livros de minha biblioteca foram lidos. É comum, depois de uma primeira tentativa, abandonar a leitura para retomá-la em um outro momento – às vezes, anos depois. Com muitos dos meus livros foi assim. Inclusive, há ainda aqueles que estão aguardando por esse resgate.

Certas leituras simplesmente não fluem e o problema nem sempre é a linguagem. Por mais esforço que se faça, mesmo entendendo o significado das palavras e o sentido das frases, falta algo para compreender exatamente a que o autor se refere. Há alguma coisa no universo do escritor que não é imediatamente abarcada pelo leitor. Enquanto isso não é resolvido, ler permanece um exercício inócuo.

Porém, quando parece que um livro está condenado a mofar na estante, por não ter sido bem entendido em uma primeira leitura, uma dica, um insight ou uma elucidação bastam para que aquela realidade a qual o escritor se refere torne-se compreensível, fazendo a obra, que parecia hermética, desnudar-se completamente.

A verdade é que, com exceção daqueles mal escritos, não existem livros difíceis em si mesmos. Mesmo quando parece haver um abismo entre a realidade imaginativa do escritor e o imaginário do leitor, uma simples ideia, de origem muitas vezes desconhecida, pode ser capaz de construir uma ponte, interligando-os.

Por isso, não entender um livro, de primeira, não é nenhum pecado. São dois universos – do escritor e do leitor – que se encontram e que, amiúde, precisam de tempo para entrar em harmonia.

De minha parte, eu aprendi a não me martirizar por não conseguir ler um livro e nem insisto muito quando percebo que minha conexão com o autor não acontece. Tenho coisas mais importantes para fazer do que gastar energia com uma leitura aborrecida e pouco proveitosa.

A obsessão por independência

Luiz Felipe Pondé apequenou-se diante da bancada comandada por Luis Ernesto Lacombe. Ao esforçar-se por não ser confundido com aqueles que defendiam o presidente Bolsonaro, conseguiu apenas mostrar a fragilidade de seu próprio raciocínio e a incongruência de quem não defende a verdade, mas apenas sua autoimagem.

Primeiro, o filósofo afirmou que o presidente erra ao não se comunicar de maneira litúrgica. Depois, quando o presidente, no mesmo programa, dá uma resposta litúrgica à pergunta de uma jornalista presente, o mesmo Pondé afirma que a resposta não poderia ser levada a sério exatamente por ser litúrgica.

Mas o pecado lógico do Pondé é característico. Todo aquele que tem obsessão por se mostrar independente cega-se. O ansioso por se afastar do senso comum aprisiona-se.

Quando uma pessoa coloca a independência como sua maior virtude, a realidade deixa de importar. Encastela-se no interior de si mesma, num esforço insano de diferenciar-se do vulgo, restando apenas uma dança retórica constante para colocar-se à parte de opinião geral.

No entanto, toda pessoa inteligente — especialmente, um filósofo — deveria perseguir a verdade acima de tudo, não a independência. Seja esta verdade vista por todos ou por ninguém.

O fato é que a independência de um pensador reside na busca da verdade, esteja ela onde estiver.

O pensador realmente independente não tem medo de isolar-se do público, nem de confundir-se com ele. Ele teme, sim, perder sua independência, todavia não apenas para o senso comum, mas também para seu próprio pavor de ser confundido com ele.

Princípios do meu trabalho

Eu gostaria de compartilhar com vocês a forma como eu trabalho por aqui, para que ninguém ache que o que eu escrevo é chute de um teórico conspiratório. Em meus textos, sigo alguns princípios:

  • cada análise que faço não representa necessariamente minha linha única de investigação;
  • procuro trabalhar apenas com os dados que estão disponíveis e podem ser acessados por qualquer um;
  • apenas faço conclusões que os dados apresentados me permitem fazer;
  • nunca aceito como certa qualquer explicação só porque ela vem de alguma autoridade;
  • considero que sempre podem existir interesses por trás dos fatos;
  • lembro que eventuais interesses podem ser os causadores dos fatos ou apenas alimentarem-se deles;
  • tomo cuidado com o fato de que informações podem ser falsas ou ser desinformação;
  • cuido para não cair em viés de confirmação, que é a tendência para racionalizar a fim de justificar sua própria linha de pensamento;
  • fico de olho nas bolhas de pensamento que se formam em tempos de grandes disputas ideológicas;
  • considero que as explicações dificilmente são únicas e que as várias linhas de investigações podem entrecruzar-se em algum ponto ou não;
  • nunca descarto uma hipótese, por mais absurda que seja, desde que existam dados que lhe deem algum indício;
  • nunca considero algo impossível, pois aprendi que a maldade humana pode ir muito além do que achamos razoável.

Fazendo isso, tento manter alguma coerência e não ser um canal de confusão nestes tempos já bastante complicados por si mesmos.

Perseguição ao pensamento que escapa da ideologia

Um país intelectualmente civilizado e evoluído tem como principal compromisso, na área da cultura, preservar seus representantes mais ilustres. Independentemente de suas preferências políticas, da religião que profere, de seu comportamento e até, nos casos mais extremos, dos crimes que cometeu, o grande pensador é um patrimônio nacional, que deve ser ostentado com orgulho por quem ama a terra onde vive.

Mas o Brasil é um país onde seus ditos intelectuais, principalmente aqueles considerados os guardiões da cultura nacional, são gente que sofre daquilo que Ortega y Gasset chamava de politicismo integral – característica típica do homem-massa, de pessoas medíocres. Gente que vê política em tudo e que julga tudo pela política. Pior, que rebaixa toda manifestação de pensamento – mesmo a mais alta e sutil – ao nível do discurso político.

Onde a classe letrada tem a convicção política acima da inteligência, nenhum pensamento superior subsiste. Pior, todas ideias são medidas segundo a régua da ideologia, o que rebaixa tudo aos níveis rasteiros das disputas partidárias.

Não é que os intelectuais não devam falar de política – muito pelo contrário! Mas deveriam falar e pensar política a partir de uma perspectiva superior e mais profunda, com base no que está além dos fatos cotidianos. O problema é que aqui no Brasil eles pensam sempre a partir da própria ideologia política que possuem, tendo ela como o ponto de referência para a avaliação do que tem ou não tem valor. Com isso, não há mais lugar para as ideias livres, mas apenas para os discursos de acordo com o pensamento dominante.

Onde, em seu meio cultural, prevalece o pensamento ideológico, contra os maiores pensadores, se eles não falarem de acordo com a linha ideológica dominante, prevalecerá, primeiro, a tentativa de ignorá-los, depois, quando isso não for mais possível, vão se esforçar por contestá-los, então, ao perceberem que a contestação foi inútil, vão procurar desmerecê-los e, por fim, ao verem que nada disso adiantou, buscarão destruí-los moral e até fisicamente.

Há o fato também da ideologia tornar as pessoas, mesmo letradas, burras. Isso porque ela formata, de acordo com seus estreitos limites, a visão de mundo dessas pessoas. Daí, quando um estudioso pensa e fala de uma maneira que ultrapassa esses limites, ele, querendo ou não, expõe essa burrice.

Por isso, tenho convicção de que toda a perseguição promovida contra Olavo de Carvalho – e que já havia sido experimentada em níveis menores por outros pensadores, como, por exemplo, Paulo Francis – ocorre, não apenas porque ele fala contra a ideologia dominante, mas porque suas ideias colocam à vista de todos a miséria intelectual da classe letrada brasileira, que é maciçamente submetida a essa ideologia. Independentemente da genialidade do professor, só o fato dele pensar fora da caixinha ideológica já o torna um inimigo declarado dos militantes aculturados. Afinal, a discordância pode incomodar, mas a exposição da própria idiotice desperta, em quem se tem por inteligente, os instintos mais ferozes.

Politicismo integral e a derrocada da cultura

Não escondo minha preferência por Jair Bolsonaro. Tenho convicção que ele é a melhor opção para o país, neste momento. Fiz dezenas de textos elogiando-o por suas características e virtudes. Ainda assim, bastou eu fazer uma pequena crítica ao candidato, ressaltando algo que entendi equivocado da parte dele – apenas um alerta para alguém que precisa estar atento em seu caminho rumo à rampa do Planalto – e logo surgiram aqueles que interpretaram minha crítica pontual como uma ação deliberada contra o candidato. Apesar de tudo o que eu já havia escrito, minha solitária reprimenda serviu para que alguns acólitos me tachassem de atuar contra Bolsonaro. Um deles, inclusive, disse que, com isso, mostro que estou em cima do muro.

Mas não é a reprovação de alguns que me preocupa. O mais importante, para mim, é ressaltar que essa atitude nada mais é do que um sintoma de uma doença que já tomou boa parte dos brasileiros e da qual eles sequer se dão conta. Essa doença, segundo a expressão cunhada por Oretga y Gasset, chama-se politicismo integral. Como afirmou o escritor espanhol:

“O politicismo integral, a absorção de todas as coisas e de todo o homem pela política é a mesma coisa que o fenômeno da rebelião das massas. A massa rebelde perdeu toda a capacidade de religião e de conhecimento. Não pode conter mais que política, uma política exacerbada, frenética, fora de si…”

O homem tomado pelo politicismo integral não entende que nem tudo, mesmo quando se refere às ideias políticas, é política efetivamente. São os marxistas que vociferam “Tudo é política! Tudo é política!”. Das ações partidárias à poesia escrita para a namorada, tudo, para eles, é ação política. Eles ignoram que há vastas áreas da experiência humana que estão além da política e até a desprezam.

Eu mesmo, tendo recebido vários convites para ingressar em movimentos políticos, neguei-os todos, peremptoriamente. Fiz isso, não porque eu entenda ser errado participar – muito pelo contrário! -, mas porque entendo que esta não é minha vocação. Acho muito válida a atitude de quem se embrenha nos meandros da política, mas, decididamente, não é o que me atrai – nem um pouco! Por outro lado, a política, como ciência e como fato social, me interessa demais, e por isso tento atuar junto a ela como um analista, como um crítico, como alguém que observa e comenta os passos que os verdadeiros atores políticos dão.

Porém, para algumas pessoas, não existe isso de não atuar politicamente. Para elas, tudo é política. No entendimento delas, qualquer fungada que você dê, qualquer peido que você solte, tem uma conotação política e uma intenção política. Elas não aceitam que alguém possa fazer algo sem interesse político, apenas com um objetivo científico ou de análise social.

O problema é que foi exatamente esse pensamento, que vê política em tudo, que provocou a derrocada da cultura, de uma maneira geral. É por causa dele que as escolas e universidades estão tomadas por ativistas políticos e os próprios professores já não conseguem enxergar a ciência fora da atuação política. Por isso, qualquer pesquisa precisa responder aos anseios da militância. Por isso, não se forma mais a inteligência, mas apenas o ativista.

E, apesar disso, muita gente, mesmo sendo crítica da ocupação feita por esses militantes em todos os poros culturais, acaba, sem perceber, agindo exatamente segundo os princípios deles. A verdade é que não adianta esperar a salvação da cultura nacional e o desenvolvimento da inteligência dos brasileiros se continuar a ver tudo como ato político. Enquanto não aprenderem a privilegiar a arte em si mesma, a ciência em si mesma, a cultura em si mesma e a inteligência em si mesma, vão continuar a experimentar a mediocridade intelectual que toma conta do país hoje em dia.

Somente o rebaixamento da política ao seu devido lugar fará com que a inteligência brasileira se liberte das amarras a que foi subjugada nas últimas décadas. Apenas a elevação da cultura para além da política e da militância fará com que, daqui a alguns anos, os brasileiros realmente possam participar dos altos círculos intelectuais do mundo e serem respeitados no universo científico.

No entanto, este não é apenas um recado para os que aparelharam os ambientes intelectuais oficiais, mas, principalmente, para aqueles que lutam contra esses invasores, para que não cometam o mesmo erro deles.

Inocência intelectual

Há mais de quatro séculos a intelectualidade ocidental vive em efusão, acreditando que a humanidade tem, a cada geração que passa, ficado mais evoluída. Leia os autores que se situam, principalmente, entre o final do século XIX e metade do século XX e constate como, em geral, realmente eles acreditavam que a sociedade iria superar suas mazelas pela inteligência e pela razão. Nem as duas guerras mundiais refrearam esse ímpeto, pois continuaram apostando suas fichas que quanto mais as pessoas abandonassem a superstição, que eles, invariavelmente, relacionavam com a religião, mais viveriam em paz e harmonia. Continue Reading