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O Fechamento da Livraria Cultura

Recebi a informação de que a Livraria Cultura, do Conjunto Nacional, fechou suas portas. Confesso que, mesmo já sabendo da decretação da falência da empresa, ocorrida meses antes, ter lido essa notícia me deu um embrulho no estômago.

Essa loja da Livraria Cultura foi meu ponto de visita periódico, quando das minhas andanças pela Avenida Paulista. Nunca me neguei a caminhar várias quadras para passar o dia entre seus milhares de livros, em meio às rampas e escadas que nos levam às suas diversas seções.

O ambiente daquela livraria sempre me pareceu mágico. A grandiosidade do seu acervo, seu espaço generoso, com a pomposidade de sua decoração, cheia de luzes, carpetes e um tom dourado que dominava tudo oferecia uma experiência única para quem andava por ela, sentava em suas poltronas ou se esparramava pelo chão para folhear um livro.

Havia ainda seu cafés e seu teatro que completavam a magnitude daquele local que abrigou tantos lançamentos, tantos eventos, tantos espetáculos.

O fechamento da Livraria Cultura do Conjunto Nacional é o fim de uma era, quando os livros representavam mais do que o conhecimento neles contido, mas toda a experiência que proporcionam aos seus amantes. Entrar em uma livraria, em um sebo ou em uma biblioteca é como parar no tempo; é se transportar para longe da frieza do mundo; é como adentrar num universo paralelo, onde a barulheira, a correria e a fugacidade cotidianas não têm vez.

Essa experiência, porém, parece estar se extinguindo. A artificialidade promovida pela tecnologia está substituindo a humanidade naquilo que esta tem de mais precioso: sua relação direta com as coisas e com as pessoas. Hoje, há menos contato, menos conversa, menos permissão para, simplesmente, deixar-se levar pelo gozo de um livro, sentado despreocupadamente ante as prateleiras de uma livraria.

O fechamento da Livraria Cultura é um símbolo de uma realidade que está além dos próprios livros, mas que afeta toda a sociedade. Estamos, de fato, sendo menos humanos, principalmente quando nos afastamos cada vez mais das experiências reais, das coisas reais e das pessoas reais.

Releituras

Nem todos os livros de minha biblioteca foram lidos. É comum, depois de uma primeira tentativa, abandonar a leitura para retomá-la em um outro momento – às vezes, anos depois. Com muitos dos meus livros foi assim. Inclusive, há ainda aqueles que estão aguardando por esse resgate.

Certas leituras simplesmente não fluem e o problema nem sempre é a linguagem. Por mais esforço que se faça, mesmo entendendo o significado das palavras e o sentido das frases, falta algo para compreender exatamente a que o autor se refere. Há alguma coisa no universo do escritor que não é imediatamente abarcada pelo leitor. Enquanto isso não é resolvido, ler permanece um exercício inócuo.

Porém, quando parece que um livro está condenado a mofar na estante, por não ter sido bem entendido em uma primeira leitura, uma dica, um insight ou uma elucidação bastam para que aquela realidade a qual o escritor se refere torne-se compreensível, fazendo a obra, que parecia hermética, desnudar-se completamente.

A verdade é que, com exceção daqueles mal escritos, não existem livros difíceis em si mesmos. Mesmo quando parece haver um abismo entre a realidade imaginativa do escritor e o imaginário do leitor, uma simples ideia, de origem muitas vezes desconhecida, pode ser capaz de construir uma ponte, interligando-os.

Por isso, não entender um livro, de primeira, não é nenhum pecado. São dois universos – do escritor e do leitor – que se encontram e que, amiúde, precisam de tempo para entrar em harmonia.

De minha parte, eu aprendi a não me martirizar por não conseguir ler um livro e nem insisto muito quando percebo que minha conexão com o autor não acontece. Tenho coisas mais importantes para fazer do que gastar energia com uma leitura aborrecida e pouco proveitosa.

Leituras difíceis

Quem já tentou ler Kant, Lavelle, Homero, Camilo Castelo Branco, Padre Vieira, entre outros, sabe o esforço de atenção, o conhecimento linguístico e a bagagem cultural necessários para compreender o que esses mestres do pensamento e do estilo escrevem. Não são leituras fáceis. Podem tornar-se torturantes, na verdade.

Diversas vezes comecei a ler livros difíceis e abandonei-os. Por algum motivo, decidi, naquele momento, que o esforço não valia a pena ou, simplesmente, que eu não estava capacitado para absorver o escrito. Voltei aos textos que continham uma expressão mais familiar.

Permanecer nos livros fáceis é uma atitude comum. Ainda mais quando se acredita que o mero ato de ler já é edificante por si mesmo. Então, mantem-se na escrita trivial, na narrativa óbvia, no texto simples. Encontra-se um nível confortável de leitura, no qual não se exige esforço e a compreensão é imediata.

O problema é que a receita para formar ignorantes letrados é exatamente estimulá-los a ler muitos livros facilmente compreendidos, que não representem nenhum desafio cognitivo para o leitor – e o mundo da cultura é tomado por gente deste tipo.

Um livro difícil põe o leitor em contato com o que não é imediatamente identificado, exige esforço dele, força-o a superar seus limites linguísticos e culturais. É preciso atenção para ler um livro difícil e isso treina quem lê a manter-se com foco no texto. No fim das contas, um livro difícil requer do leitor sair da sua zona de conforto intelectual e, por isso, eleva-o.

Há muitas razões para não se aventurar em uma leitura mais complexa: tempo, cansaço, prioridades… No entanto, a recompensa por quem se arrisca nela nenhum livreto popular pode oferecer: a chance de elevar-se a um patamar intelectual superior.

O Flaubert da minha juventude

Não somos os mesmos de quando éramos jovens. Tudo muda: a forma de ver o mundo, a personalidade trabalhada pelas experiências, a capacidade de perceber o que antes parecia impossível e, especialmente, a forma de ler os livros.

Muitas das minhas leituras de juventude foram feitas sem a capacidade, que tenho hoje, de interpretação e de captação das sutilezas. Por isso, foram leituras defeituosas, muitas delas feitas com um esforço muito maior do que o recomendável para uma boa absorção do conteúdo.

As leituras juvenis são excelentes, pois, apesar de suas falhas, preparam-nos para a vida intelectual da maturidade. Contudo, elas podem acarretar um problema, no qual eu me vi implicado.

Enquanto eu conversava com um amigo, Leonardo Quintanilha, sobre grandes autores, em algum momento ele citou-me Flaubert. Imediatamente, reconheci a superioridade linguística do romancista francês, mas, ao mesmo tempo, fiz um comentário desabonador, dizendo que esse escritor me parecia um tanto enfadonho. Imediatamente, notei a estranheza de meu amigo e eu mesmo fiquei intrigado com minha própria afirmação. Logo, então, corri para minha biblioteca e tomei o Madame Bovary para relê-lo. Que surpresa! Eu estava completamente equivocado.

Flaubert é ótimo! Além de possuir uma fineza de estilo em sua escrita, há, na sua narrativa, uma ironia sutil, qualidades que apenas são vistas nos grandes escritores. E escrevo isso não com a autoridade de um crítico literário, mas com a vergonha de quem não percebeu o que todo o mundo já havia percebido antes de mim.

Meu engano deveu-se por algo muito simples: ter baseado minha crítica em uma leitura feita na minha mocidade. O erro foi ter assumido a impressão juvenil como definitiva. Deslize imperdoável, diga-se de passagem!

Quando li Madame Bovary, o fiz no afã de um iniciado no universo das letras. Li-o estimulado pela moda, à época, de estudar a personagem de Flaubert em seus aspectos psicopatológicos. Na verdade, como todo mundo lia, eu achava que deveria lê-lo também. Deveras, não fiz nada de errado ao tomar um clássico moderno no início de minha jornada intelectual. O deslize foi ter formado uma ideia crítica definitiva a partir disso.

A vida intelectual não é um caminho linear, trilhada com um mero acúmulo de leituras e estudos, mas uma ascensão em espiral, pela qual, constantemente, é preciso retomar obras e autores que vimos tempos atrás, a fim de analisá-los sobre um novo olhar, mais amadurecido e mais sensível, forjado pelo tempo, pela experiência e pelo suor.

Considerar um livro lido na juventude como elemento definitivo do cabedal intelectual pode ser – como se demonstrou no meu caso – origem de equívocos censuráveis. E espero não cometer essa falha novamente.

Ler não é um prazer

É tão bonita a imagem, que tanto se vê pintada em quadros, da pessoa lendo um livro, sentada gostosamente em uma poltrona, geralmente ao lado de uma lareira, com aquele aspecto sereno, pacífico, em um instante de tranquilidade e descanso.

Quem não costuma ler, ou lê apenas trivialidades, talvez acredite que essa descrição reflita a realidade. Mas quem realmente tem o hábito da leitura, principalmente de obras mais densas – que são aquelas realmente relevantes – sabe que não é a calma e o sossego que caracterizam esse momento.

Minhas ocasiões de leituras não costumam ser nada pacíficas. Para um observador externo, que me veja absorto, como que navegando sobre as palavras de um escritor, talvez pareça que se trata de alguém em uma ocasião de quietude e amenidade. Mal sabe ele que, na verdade, o que está ocorrendo ali é uma autêntica batalha. 

Todo leitor enfrenta muitas adversidades. A primeira delas é a desatenção. A natureza humana tende à dispersão, e para manter-se consciente em cada frase, em cada parágrafo, retendo a relação entre as ideias, é preciso concentração. Mas não existe concentração sem luta. O leitor que relaxa se perde; o que descansa se distrai. Por isso, não há de se falar, ao se referir à leitura, a um momento de repouso. Não, ele não é! Ler é sempre trabalhoso.

Não bastasse a energia despendida para a compreensão do que se está lendo, há ainda a necessidade de retenção do que se leu. Mas nossa memória é fugidia e, quando não forçosamente treinada, deixa escapar muita coisa. Por isso, o que torna a leitura mais extenuante nem é entender o conteúdo, mas manter na memória as ideias lidas. Sem essa retenção, a relação entre os pensamentos é quebrada e o sentido geral se perde. A absorção do conteúdo exige firmeza do leitor e não permite que ele relaxe, tornando a leitura um inescapável combate consigo mesmo.

Mas toda a dedicação para manter-se concentrado e reter o que se leu seria em vão se o leitor não se empenhasse em ir além da compreensão das ideias do escritor e tentasse pensar como ele. Ler apenas como receptor da mensagem, sem colocar-se no lugar do autor da obra, buscando repetir sua experiência e até replicar seu espírito, é praticar uma leitura parcial. Porém, esse exercício de reprodução da experiência mental do escritor exige uma entrega à leitura, que só é possível com uma disposição de alma que será certamente desgastante e cansativa. Quem, sabendo disso, ainda acredita que ler é uma atividade relaxante, não compreendeu nada do que se está tratando aqui.

Ler jamais será prazeroso. Pelo menos, não no sentido de prazer como aquela sensação agradável relacionada à satisfação de um desejo. Se há algum prazer na leitura, pode-se falar de um prazer diferido, que não é aquela sensação boa concomitante ao gozo da atividade, mas o resultado do sentimento de realização adquirido pela conquista do conhecimento.