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A Racionalidade do Cristianismo

Quando abri o NEC, o objetivo era compartilhar, com quem se interessasse, minhas investigações teológicas e filosóficas. A proposta era oferecer reflexões mais profundas do que aquelas que comumente são feitas nas comunidades religiosas.

As abordagens tinham sempre um viés filosófico, mesmo quando os assuntos envolviam religião e espiritualidade. Sempre procurei manter um nível intelectual superior e mostrei para os meus alunos o quanto o cristianismo era uma proposta inteligível, perfeitamente compatível com análises racionais.

Fiz muitos amigos nessas aulas e trouxe para perto muitos companheiros antigos. No entanto, um deles sempre se negou a participar dos meus cursos. Não por ser despreocupado de assuntos intelectuais, mas porque, segundo suas palavras, a teologia não lhe interessava, afinal, ele era uma pessoa muito lógica.

Não sei se vocês conseguem captar o que está por trás do argumento do meu amigo. Segundo ele, estudos teológicos, que estão baseados em uma perspectiva religiosa e espiritual, não possuem a racionalidade mínima para satisfazer as necessidades lógicas de uma pessoa que valorize a inteligência.

Chesterton, certamente, identificaria, nesse meu amigo, o reflexo da forma moderna de pensar. No capítulo “O Suicídio do Pensamento”, do seu livro “Ortodoxia”, ele trata dessa característica que faz da modernidade arrogante e, ao mesmo tempo, contraditória.

O pensamento moderno enxergou-se como o ápice da racionalidade humana. O orgulho racionalista, cientificista e positivista eram evidentes. Ele realmente acreditou que havia superado a “superstição” medieval. De fato, seu objetivo era libertar-se das amarras do pensamento religioso. Ele queria ter autonomia para desenvolver, por si mesmo, as investigações para a compreensão das coisas. Para isso, escolheu abandonar as bases que sustentavam o cristianismo, como a Revelação e a religião.

No entanto, a modernidade não tinha como, simplesmente, negar os valores e princípios cristãos. Restou, então, para ela, replicá-los, porém, fragmentando a realidade que os sustentava. Levantou-se então contra o sistema de pensamento do cristianismo, não o negando, mas despedaçando-o.

O problema é que essa fragmentação do cabedal intelectual cristão, em vez de conduzir o pensamento humano para uma racionalidade superior, fê-lo tresloucado. Isso porque “quando um sistema religioso é estilhaçado (como na Reforma), não apenas os vícios que são liberados, mas as virtudes também são liberadas”. As ideias cristãs permaneciam vivas, mas agora, isoladas, passaram a vagar, sem rumo, no mundo. Isso fez com que ele ficasse “cheio de velhas virtudes cristãs enlouquecidas”.

Todavia, essa arrogância não foi apenas uma busca por independência, mas, por mais estranho que pareça, representou uma verdadeira revolta contra o excesso de razão escolástico. Sim, a modernidade, que se apresentou como a superação da superstição medieval, na verdade, estava apenas se levantando contra seu racionalismo.

Isso porque os intelectuais da Idade Média desenvolveram um sistema extremamente racionalizado de pensamento, o que só foi possível porque o cristianismo é uma religião essencialmente racional por ser uma revelação da realidade, a ser compreendida de maneira inteligente pelos homens; apresentar uma proposta que, para se tornar eficaz, depende de que o indivíduo a aceite racionalmente; conter diversos elementos moralizadores que são reflexo de uma doutrina, o que exige uma coerência lógica entre esta e o regramento que lhe segue. Inclusive, nas Escrituras, o próprio Messias é identificado com o Logos, que na filosofia grega representava a Razão. Essa relação é tão íntima que, não por acaso, “na medida em que a religião já desapareceu, a razão vai desaparecendo”.

O cristianismo nunca poderia ser um inimigo da razão, mas era necessário que fosse fiel a ela. A sobrevivência da religião sempre dependeu da manutenção de sua racionalidade. Esse é o motivo por que a religião católica (e mesmo a protestante) desenvolveu sistemas rígidos de proteção à coerência da fé. As inquisições, concílios e confissões existiram exatamente para proteger a inteligibilidade daquilo que era pregado, buscando impedir, com isso, que a religião se desvirtuasse em uma afronta ao pensamento. “Os credos e as cruzadas, as hierarquias e as horríveis perseguições foram organizadas para a difícil defesa da razão. São todas sombrias defesas erigidas em volta de uma autoridade central – a autoridade do homem de pensar”.

O fato é que, sendo o cristianismo uma expressão da própria realidade, comprometido com a verdade em sua inteireza e, por isso, completamente dependente da razão, qualquer tentativa de superá-lo não poderia culminar, por mera impossibilidade lógica, em algo superior, mas só poderia acabar, apesar de sua arrogância, em um tipo de racionalidade inferior.

Como Chegamos na Pós-Modernidade

“Estamos vivendo a pós-modernidade” – é o que escutamos por todos os lados. No entanto, o que isso significa? Mais ainda, como isso nos afeta e quais são as características desse período que o tornam tão marcante?

Stephen Hicks, em seu livro “Guerra Cultural”, traçou a linha histórica do pensamento ocidental que nos conduziu até aqui. Ele nos mostra, nessa obra, como as mudanças nas perspectivas filosóficas abriram caminho para o paradigma pós-moderno que vem tomando conta do nosso mundo.

Tudo começa no Renascimento, pois foi naquele período que a mentalidade medieval acabou anulada. Os pensadores renascentistas, na ânsia de superar a “ superstição” do período anterior, voltaram seus olhos para a terra e, aos poucos, foram deixando a perspectiva transcendental de lado.

No entanto, o Renascimento era a verdadeira idade intermediária, pois serviu de passagem da Idade Média, com sua concepção espiritual, para a Idade Moderna, com sua filosofia naturalista.

Na Idade Moderna, o centro desloca-se do espírito divino para a razão humana. A Filosofia passa a valorizar esta antes de tudo, demonstrando uma confiança quase irrestrita nas suas capacidades.

Disso, surgem as duas principais vertentes filosóficas desse período: o racionalismo e o empirismo. Cada uma com seus próprios paradigmas, mas ambas com a convicção de que a realidade pode ser conhecida por meio do exercício racional.

Com a confiança na razão vem a valorização do indivíduo, que é o seu portador autônomo. Portanto, a Idade Moderna vai caracterizar-se por exaltar o homem, principalmente, em virtude de seus atributos da inteligência.

No entanto, para que haja uma razão eficiente é preciso que exista uma realidade inteligível. Por isso, a Idade Moderna será marcada por seu realismo e objetivismo.

O Iluminismo, por fim, será o amadurecimento dessas concepções, tanto no sentido de cume de uma era como do início de seu apodrecimento. A partir dele, as instituições ocidentais modernas começam a ser estabelecidas e, ao mesmo tempo, a confiança na razão começa a ser questionada.

O primeiro solavanco dado contra a razão vem de Kant. Nele, a capacidade humana de perceber diretamente a realidade é colocada em dúvida, abrindo caminho para a tradição crítica que lhe segue e que, no fim de tudo, vai desembocar no pós-modernismo.

A partir de Kant, iluminismo e contrailuminismo seguem juntos. São ambos filhotes de uma reação à perspectiva religiosa, são ambos materialistas, ambos antropocêntricos, ambos revolucionários, ambos anti-tradicionalistas e ambos progressistas.

Até que alcançamos o século XX e suas duas Grandes Guerras, fazendo com que o que ainda havia de confiança irrestrita na razão recebesse o seu mais potente golpe. A partir dali, segundo as palavras do próprio Hicks, começa
uma troca de guarda. O contrailuminismo toma a dianteira. Ingressamos, gradativamente, no pós-modernismo.

Hoje, ainda nos encontramos em uma fase de transição. A perspectiva iluminista, com seu cientificismo e valorização da técnica permanece, porém, já não mais com aquela confiança irrestrita na razão. Cada vez mais, impõe-se uma visão relativista, subjetivista, irracionalista, voluntariosa e emocional de existência.

Pode-se dizer, portanto, de maneira bastante sintética, que o pós-modernismo é a culminação de uma oposição ao iluminismo, especialmente em sua confiança na razão. Quanto às outras características iluministas – a mentalidade revolucionária, o desprezo à tradição e a convicção de que o mundo pode ser transformado – o pós-modernismo as preservou e absorveu irrestritamente.

Quem protege nossa mente

Para proteger-se das forças que buscam condicionar-nos não existe um antídoto específico, nem uma técnica infalível, nem um método ideal.

Só temos nossa própria razão como escudo. E digo isso porque sou uma pessoa antiquada, daquelas que ainda acredita que a razão continua sendo o nosso maior bem.

Sendo a razão o nosso componente superior, é ela quem deve estar a frente nessa guerra, atuando como o nosso comandante.

Há poderes que procuram mentes amortecidas para subjugar e depois adestrar como a cãezinhos dóceis. Assim, abdicar da razão é expor-se às investidas inimigas.

Por isso, nunca abra mão de sua inteligência, nem aceite facilmente qualquer sugestão. Pondere, reflita, pense, tome consciência. Estas são suas armas para vencer esse mal.

Intuição preguiçosa

Intuição é pensamento imediato, é instinto. É um atalho, na verdade. Ela pode ser útil, pode ser ótima, mas também pode apenas ser sinal de preguiça.

É que se privilegiou a intuição como um tipo superior de pensamento. Quase como algo mágico. Como algo à parte e além do raciocínio.

Quanto ao raciocínio: foi renegado. Parece que ninguém mais quer pensar. A busca de razões tornou-se o símbolo da intolerância, da frieza. Dizem que quem se esforça pelo pensamento coordenado, lógico, tem tendência autoritária.

Bonito é ser intuitivo, é abrir as portas da percepção. É não se preocupar em ter razão, mas em deixar os sentidos falarem.

A verdade, porém, é que a intuição, muitas vezes, é a desculpa perfeita para a preguiça. Como o raciocínio exige esforço, atenção, foco e demanda energia, ser intuitivo é uma maneira esperta de abrir mão do esforço cognitivo, sem que pareça indolência. É um jeito de acomodar-se naquilo que nosso cérebro faz sem dificuldade, sem precisar fazer força.

É por isso que a intuição é tão louvada hoje em dia: ela se acomoda à vagabundagem mental que toma as gentes.

Entre a razão e a realidade

O pensamento moderno caracteriza-se pela dissonância entre o discurso e a experiência. Boa parte das ideias em circulação são apenas ideias e não refletem o que é vivenciado pelas pessoas.

São divagações tão desapegadas da realidade que nem mesmo seus autores podem sustentá-las em suas vidas práticas. Nunca vi um cético que não tivesse certezas, nem um determinista que não fizesse planos; os subjetivistas não se lançam de janelas, nem os idealistas deixam de correr quando se deparam com um cão raivoso; conheci poucos socialistas que abrissem mão de sua fortuna, também nunca vi calvinistas que não pregassem.

O que acontece é que todo esse pessoal abafa o senso comum em favor de sua razão própria, ainda que esta razão pareça racional apenas quando se esquece de que existe vida além dela. Para essa gente, entre o que eu vejo, sinto, percebo e experimento e minhas divagações aparentemente lógicas, eu deveria me aliar primeiramente a estas.

É por isso que há tantas ideias respeitosas e, ao mesmo tempo, contraditórias. Quando a experiência ingênua é desprezada, tudo pode ser dito e tudo deve ser aceito. Não importa o que você vê, importa o que eu penso. Não vale o que todo mundo sabe, mas o que alguns iluminados dizem.

Esse abafamento do senso comum é o que caracteriza boa parte das filosofias que circulam por aí e fazem a cabeça da intelligentsia. E desta descem como veneno escorrido para a vida das pessoas comuns, afetando-nas de alguma maneira, ainda que elas não as absorvam inteiramente e sequer entendam o que está acontecendo.

Tradição e instinto

É comum ver gente inteligente criticando a forma como assimilamos as tradições, tentando dar a entender que, ao fazermos isso, estamos agindo sem pensar, apenas repetindo padrões já determinados. Há até um vídeo, bastante conhecido, que mostra uns macaquinhos agindo dessa maneira. Acreditam assim que estão levando seus ouvintes a defender a razão.

Não entendem, porém, que a razão humana não é algo que existe sem uma causa e que ela é também parte de um desenvolvimento e, nesse prisma, só existe como fruto das tradições e dos costumes. Sem eles, com efeito, seríamos apenas instinto e, consequentemente, não haveria razão alguma para defender.

Por isso, quando alguém, ao criticar o conhecimento herdado, pensa estar reivindicando liberdade, na verdade está promovendo o exato oposto dela: o cárcere da irracionalidade.

Confiança na inteligência

Há algo nos pensadores modernos de até o meio do século XX que, apesar de um tanto equivocado, era melhor do que o relativismo atual: a confiança na inteligência. Realmente, eles pensavam que a razão ia dar conta de tudo. Não ia, mas, pelo menos, servia de direção. Hoje, é só cinismo.

Inteligência e confusão

Mais do que burras, as pessoas são confusas. Muito daquilo que chamamos de burrice nada mais é do que a dificuldade de colocar em ordem os pensamentos, de maneira que eles se tornem claros o suficiente para permitir entender a realidade.
 
Mesmo pessoas de nível cultural inferior, dentro daquilo que seu conhecimento lhes permite saber, poderiam pensar com muito mais claridade se aprendessem a organizar aquilo que está na cabeça delas.
 
É por isso que vemos tantos considerados intelectuais falando asneiras e tomando posições estúpidas. Por mais que tenham muitas informações em suas cacholas, estas são apenas um emaranhado de dados, sem conexão, sem ordem, sem sentido.

A revelação não despreza a razão

Pierre Lecomte du Noüy inicia seu livro, O Homem e seu Destino, afirmando que há, para o homem, dois caminhos: o da razão e o da revelação, sendo que este seria como um caminho direto, para poucos, e, apesar de considerá-lo superior, seria algo independente da razão. O autor, com isso, acaba por tratar a revelação como uma via esotérica e, certamente, gnóstica.

Muitos cristãos, por seu lado, costumam cometer esse mesmo tipo de equívoco. Não é difícil testemunhar o tratamento que dão à revelação como algo que sobrepuja a razão. Para eles, a revelação é como uma abertura imediata ao conhecimento das realidades superiores, fazendo com que o homem, como que por um salto, saísse da ignorância para o conhecimento da verdade.

O que não percebem, é que esta é uma visão essencialmente gnóstica. O gnosticismo privilegia o acesso direto às verdades superiores, seja por meio de fórmulas, ritos ou experiências místicas. O cristianismo, porém, jamais ensinou isso.

A revelação cristã se baseia no conhecimento humano para, a partir dele, conduzir o homem a verdades superiores. Por isso Cristo usava parábolas e Deus ofereceu visões. De qualquer forma, umas e outras ensinavam sobre realidades superiores, mas usando dos elementos conhecidos.

Na verdade, a revelação cristã é progressiva, pois ensina conforme o estágio humano de conhecimento. É por isso que as Escrituras dizem que Cristo se revelou na plenitude dos tempos. Naquele momento, o conhecimento acumulado dos homens permitia a compreensão da identidade do Messias.

Não há, portanto, no cristianismo, o desprezo da razão. Pelo contrário, ele se apresenta na presunção de sua existência, estimulando-a e conduzindo-a, de forma que a verdade seja progressivamente compreendida.

Os saltos às verdades superiores não existem. O homem apenas pode conhecer a verdade pelo acúmulo das informações e a correta interpretação delas. O que a revelação faz é apenas apresentar novas informações que seriam impossíveis de serem conhecidas sem ela, mas que, mesmo assim, só podem ser compreendidas se houver um prévio entendimento de seus significados.

Publicado originalmente no Núcleo de Estudos Cristãos