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Expectativas e Realidade

Uma das brincadeiras que acho mais divertidas na internet é aquela que mostra duas imagens: uma com a expectativa da pessoa – geralmente algo positivo, bonito, agradável, como a do homem no trabalho, pensando como vai ser quando chegar em casa, sentado no sofá, com uma cerveja na mão e o futebol na tv, – e a outra com a realidade como ela é – quase sempre algo bem menos glamouroso, como a do mesmo homem chegando em casa, com seus filhos correndo para todos os lados, sua mulher brava por causa do horário e a pia cheia por que o encanamento entupiu.

O que mais gosto nessa brincadeira é que ela possui um fundo de verdade. É comum criarmos certas expectativas, impulsionadas por nossos desejos, que não se materializam, simplesmente, porque não condizem com a realidade. Nossa cultura atual nos impulsiona nesse sentido. É a tal da psicologia positiva; o discurso motivacional. Somos induzidos a supervalorizar nossas capacidades e possibilidades. E isso, obviamente, é o prenúncio da frustração.

Por outro lado, não é incomum o contrário: acreditarmos que podemos menos do que realmente podemos. É fato que possuimos talentos e potências que, muitas vezes, não reconhecemos, além de possibilidades disponíveis que não vislumbramos. Isso diminui o tamanho do nosso mundo e acaba sendo uma sentença proibitiva. Se achamos que não podemos alcançar algo que, na verdade, podemos, não o alcançaremos jamais.

Eu não gosto de ouvir sobre crenças limitantes, porque essa se tornou uma expressão vulgarizada e exagerada, dando a idéia de que tudo na nossa vida só não acontece porque não cremos que pode acontecer. No entanto, não podemos negar que nossas convicções nos moldam e, se elas representam algo abaixo de nossas reais possibilidades, nos condenarão a uma vida inferior àquela que poderíamos ter.

O que deveríamos fazer, então? Tentar adequar nossas expectativas à realidade, cuidando para que não estejam além das nossas verdadeiras possibilidades, mas, também que não sejam pequenas demais, cuidadosas demais, medrosas demais, mantendo-nos aquém de onde poderíamos chegar.

A verdade é que geralmente podemos mais do que pensamos que podemos e menos do que gostaríamos poder. Só precisamos, então, ajustar tudo isso ao verdadeiro. Lembrando que o verdadeiro não é o que eu sei, experimento ou acredito, mas o que realmente é.

Platão: Prisioneiros da Caverna

Entre o que vemos e a realidade, em todos seus matizes e profundidade, há uma distância maior do que o senso comum costuma imaginar. A maioria das pessoas sequer se dá conta de que as coisas se dão da maneira como se dão. São como os prisioneiros da caverna de Platão.

Nessa alegoria, Sócrates sugere que Glauco imagine uma caverna, onde há homens acorrentados desde a infância, com grilhões nos pescoços e nas pernas, impossibilitados, por isso, de se mover para os lados e para trás, capazes apenas de olhar para a parede do fundo dessa caverna, onde vêem as sombras dos homens e objetos que se movimentam do lado de fora, acreditando consequentemente que as vozes que escutam pertencem a essas sombras.

E não é assim com a maioria das pessoas? Olham as coisas sem ter noção de que são apenas reflexos da verdade. Vêem somente a ponta mais visível da realidade e acreditam que se trata da realidade mesma. Deparam-se com algo, aprendem algo e logo concluem que não existe nada além daquilo.

O mundo está tomado de convicções, fé e certezas baseadas em aparências. Mesmo gente com poder se encontra nessa situação. Imagine então quanto das decisões que afetam a vida de quase todo mundo estão fundamentadas nessa visão parcial e pequena da realidade.

E pense o quanto, para aqueles que entendem a verdade em seus graus mais profundos, e que possuem más intenções, é fácil enganar os pobres coitados que só conseguem enxergar, quando muito, aquilo que está diante dos seus olhos.

Entenda que a realidade tem muitos graus de verdade. O que se sabe pode ser verdadeiro, mas dificilmente é imediatamente abarcado em sua totalidade. Por isso, é preciso aprender a olhar para além do visível. Lembrar-se que o que vemos costuma ser um mero sinal de uma verdade mais profunda e mais complexa, que só pode ser alcançada em um processo de conhecimento gradativo e paciente.

Lembre-se sempre que aquilo que você vê não é toda a verdade sobre aquilo que você vê. Dê tempo ao tempo e esforce-se por buscar compreender as nuances e profundidade daquilo que é captado por sua percepção mais imediata.

Sempre que se deparar com algo, pare e se pergunte: o que há além? O que existe a mais do que isso que estou vendo? Quais são as características que ainda não consigo enxergar?

Apenas fazendo isso é possível começar a dar os primeiros passos para fora da caverna e deixar de ser um prisioneiro.

Arrogância humana ante a natureza

Mandaram as pessoas trancafiarem-se em casa, abrindo mão de suas próprias capacidades de subsistência, para conter um vírus. E todos foram obedientemente cumprir sua missão humanitária. No fim, o vírus fez pouco caso de tanto heroísmo e seguiu seu curso natural.

Existem algumas razões que podem explicar a submissão do povo em esconder-se como ratos. No entanto, uma delas é evidente: a confiança irrestrita no poder humano em controlar as forças da natureza.

O desenvolvimento resultante do acúmulo de conhecimentos científicos e tecnológicos permitiu ao homem controlar diversos aspectos da realidade. Ele aprendeu a usar da terra, a vencer a barreira da gravidade e até a curar doenças agressivas. Isso, porém, criou a ilusão de que a realidade está completamente submetida e a natureza totalmente domada.

A confiança irrestrita no poder humano sobre a natureza gerou nas pessoas a ideia de que qualquer problema que aparecesse seria resolvido rapidamente pela inteligência humana. Afinal, o que seria uma gripe comparada a tantas vitórias empreendidas pela Ciência?

No entanto, o vírus chinês mostrou que o domínio do homem sobre a realidade é limitado; deixou claro que, por mais que a humanidade tenha superado tantas barreiras que a natureza lhe impôs, há ainda um universo amplo e misterioso a ser desbravado.

A epidemia denunciou a importância de reconhecer a limitação humana; de que a prática da docta ignorantia, de Nicolau de Cusa é mais do que um método filosófico, mas uma postura inteligente diante da existência.

Na verdade, apenas uma visão clara da pequenez humana diante da imensidão do universo propicia a sabedoria para a tomada das melhores decisões. Do contrário, a arrogância faz com que as pessoas ajam como estúpidas, chegando a sacrificar coisas importantes na confiança no poder da civilização.

‪No caso da epidemia, se a sociedade tivesse uma visão clara de suas próprias possibilidades, aceitaria a realidade como ela se apresenta e, sem a ilusão de impedir o imponderável, teria tomado atitudes mais saudáveis de acordo com suas reais capacidades.‬

O triste foi ter de constatar que todo o sacrifício imposto foi em vão. Basta ver como as curvas epidemiológicas de todos os países são muito parecidas, independentemente da rigidez das medidas de tentativa de contenção.

Isso quer dizer que empregos foram perdidos, economias quebradas, famílias destruídas por nada. Afinal, no caso do vírus chinês, o que sua natureza determinou foi imposto, desprezando a arrogância dos governos e da própria classe científica.

Espanto e familiaridade em relação à realidade

A ideia de que a realidade está justamente dividida entre o mundo material e o transcendente, de alguma maneira, tranquiliza-nos. Enquanto o céu representa o misterioso, o numinoso, a terra é para nós a segurança do mensurável e previsível. E o conforto dessa dualidade reside exatamente no fato de que a existência dessas duas realidades permite-nos o trânsito entre elas conforme nossas necessidades e conveniências. Quando o transcendente parece-nos por demais aterrorizante, por tratar-se essencialmente do desconhecido, sempre podemos abrigar-nos nas certezas das coisas terrenas. Quando, por outro lado, o mundo torna-se por demais sufocante, por causa da pressão de sua entediante previsibilidade, há sempre as coisas do alto para onde é possível escapar.

Essa convicção acaba sendo como um ponto de equilíbrio que parece sustentar nossa sanidade.

A verdade, porém, lança sobre nós a afirmação perturbadora de que o céu e a terra não encontram-se cindidos, como alguns apóstolos da modernidade, como Kierkegaard, quiseram dar a entender. Ela ensina-nos que o céu e a terra unem-se em uma mesma realidade e nos relacionamos com ambos, não em momentos distintos, mas de maneira intercambiável.

Relutamos em aceitar essa verdade porque a separação entre terra e céu representa o conforto que temos de que haverá sempre um dos dois mundos para onde poderemos escapar.

Surge, então, Chesterton, confirmando a supressão da nossa antiga certeza, colocando o céu e a terra unidos em uma única realidade, e acrescentando um questionamento para deixar-nos ainda mais atordoados.

Com sua pergunta, antes de tudo, ele faz deparar-mo-nos com o que talvez represente o nosso maior temor: o confronto com a dubiedade desta existência. Se antes havia, de um lado, a segurança e familiaridade daquilo que conhecemos e com o que nos identificamos e, de outro, o espanto e maravilhamento do mistério superior, agora precisamos aceitar que a realidade é uma só e não há para onde fugir.

Mas sua pergunta, diferente do que pode parecer em um primeiro momento, não traz aquele peso do desconforto que essa nova verdade poderia descortinar. Pelo contrário, ao indagar “como podemos imaginar ficarmos ao mesmo tempo assombrados com o mundo e, mesmo assim, nele nos sentirmos em casa? Como pode esta estranha cidade cósmica, com seus cidadãos de muitas pernas, com suas monstruosas e antigas lâmpadas, como pode este mundo provocar em nós ao mesmo tempo o fascínio de uma cidade estranha e o conforto e a honra de ser a nossa cidade?”, o escritor inglês faz-nos ver uma realidade una, mas com olhos carregados de alegria e esperança. Refutando tratar-se de um paradoxo, ainda que se considere que identidade e surpresa pareçam dois sentimentos antagônicos, o que Chesterton quer mostrar-nos, com sua interrogação, é que há uma realidade única, onde viveremos a experiência plena de nossa existência.

No entanto, para compreender essa experiência, que envolve, ao mesmo tempo, o espanto e a familiaridade, é preciso entender a verdade de nossa condição cognitiva e espiritual presente e como essa condição determina nossa relação com este mundo.

A base para essa compreensão reside no fato de o mundo ser a nossa casa, pois, como seres humanos, sabemos que ele foi feito para nós. Estamos no centro da criação e tudo o que nos cerca existe por nossa causa. Assim, toda a estrutura da realidade identifica-se conosco, da mesma maneira que, independentemente da forma e no nível da manifestação da realidade, nos identificamos com ela.

No entanto, em nosso estado cognitivo e espiritual bruto, conhecemos e compreendemos apenas as manifestações mais superficiais dessa estrutura do real. Ainda que nos identifiquemos com ela, o que sabemos, em princípio, abarca apenas um pedacinho dela.

Ocorre que mesmo a enormidade daquilo que não compreendemos pertence à realidade que para nós foi feita. Por isso, ao mesmo tempo que nos espantamos com essas manifestações que não entendemos, identificamo-nos com ela. É uma identificação, em boa parte, inconsciente, é verdade, mas não deixa de ser uma identificação.

O que torna tudo mais estimulante é o fato de que, mesmo com a expansão do nosso conhecimento e consciência, a realidade jamais deixará de nos surpreender, pois, em virtude de nosso estado atual, o conhecimento e a consciência jamais serão plenos. O mundo permanece, para nós, familiar, mas sem deixar de ser misterioso ao mesmo tempo.

A compreensão disso permite-nos, então, estabelecer uma relação com a realidade muito mais completa. O transcendente deixa de ser o mero escape do mundo visível e passa a ser, na verdade, uma etapa mais profunda do relacionamento que temos com essa mesma realidade.

A busca pelo transcendente, diante disso, deixa de ser a busca pelo que existe lá fora, mas um mergulho no mais profundo do nosso próprio ser, onde podemos conhecer melhor o que a existência tem para oferecer até se encontrar com o próprio Deus.