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Vocações Especiais

Pouca gente é capaz de entender uma pessoa que se diga livre de ambições. A mentalidade medíocre acredita que o que dá sentido à existência são suas conquistas pessoais ou, pelo menos, a perseguição delas.

Para uma mente mediana é muito difícil compreender uma alma que se dispõe apenas a cumprir sua vocação, independentemente dos resultados que possam dela advir.

A vocação é a convicção de um chamado, não apenas para fazer algo, mas para se encaixar na existência de determinada maneira. Responder a esse chamado significa dispor-se a aceitar viver neste mundo de uma forma peculiar, que é a única forma que faz sentido para essa pessoa.

Isso é incompreensível para quase todo mundo porque a mente comum, mesmo a que esteja entre as mais inteligentes, só consegue entender as missões universais, o cumprimento que vale para todas as pessoas igualmente. Os encaixes especiais, que escapam das responsabilidades e, algumas vezes, dos valores comuns, são vistos como desvios, não como missões específicas. A não ser que esses desvios levem a resultados que se conformem à expectativa coletiva – neste caso, a peculiaridade é tolerada por um bem maior.

No entanto, há espíritos que, seja qual for a consequência disso, só encontram sua razão de existência quando se dispõem a viver de certa maneira, a cumprir certos tipos de tarefas, a buscar certas coisas para as quais nem eles mesmos, muitas vezes, entendem o motivo. Por isso, a vocação tem muito de disposição de fé, de confiança que esse encaixe no cosmos existe por algum motivo que pode ser que sequer seja vislumbrado ou compreendido. A vocação pode se manifestar simplesmente pela certeza de que se deve dedicar a algo sem nem saber por quê.

De qualquer forma, o mundo nunca esteve preparado para os vocacionados especiais. Inclusive, condenou alguns deles. O que o mundo, porém, não pode negar é que sem eles praticamente todas as grandes conquistas da humanidade não teriam acontecido.

Busca pela Verdade

A busca pela verdade é uma vocação. Isso fica evidente quando vemos que algumas pessoas, simplesmente, não se incomodam em passar os seus dias sem compreender nada, enquanto outras – as realmente vocacionadas – são despertadas para deixar a ilusão das sombras da ignorância em direção à luz do conhecimento.

Os obstáculos, porém, que se apresentam para aqueles que se dispõem a isso são muitos. A preguiça, o medo do que se pode encontrar pela frente, a insegurança em relação às próprias capacidades e mesmo a natureza humana, com seus impulsos e instintos, são os inimigos internos que trabalham no sentido de afastar a pessoa da busca pelo conhecimento. Há ainda os obstáculos exteriores que se apresentam para desviar a pessoa de seu trajeto em direção à verdade, como as necessidades materiais mais urgentes, o sustento da família, a falta de tempo e, ainda, a incompreensão de amigos e familiares, que não entendem essa dedicação a algo impalpável.

Não por acaso, muitos concluem que a ignorância acaba sendo até uma bênção e é muito comum algumas pessoas desistirem no meio do caminho, achando que o esforço que se exige nessa empreitada é muito grande. Nisso, talentos acabam desperdiçados e vidas que possuíam a potência da inteligência, ao invés de florescerem, murcham na mediocridade de uma vida sem entendimento.

O fato é que, para que a existência se abra, revelando alguns de seus segredos, exige-se um comprometimento firme com ela, o que reclama a disposição por lançar-se nas fontes de conhecimento com todas as forças, estando ciente que será preciso abrir mão de tudo aquilo que pode desviar a pessoa desse caminho. Por causa disso, é inescapável entregar-se por inteiro. Afinal, como dizia Sertillanges, a verdade só está a serviço de seus escravos.

No entanto, para o impulso em direção à luz da verdade, é preciso que haja um incômodo com uma existência mergulhada na estultice e o temor de viver uma vida sem nenhum sentido. E isso nem é suficiente, muitas vezes. É preciso algo mais. Algo como um espanto, como dizia Aristóteles, capaz de despertar a pessoa de sua letargia interior.

Esse espanto, porém, não virá apenas da perseguição dos bons resultados; nem da necessidade de fama e reconhecimento; nem mesmo da vontade de poder. O único motivador infalível acaba sendo aquele momento da vida quando a pessoa se depara com a necessidade de tornar-se alguém melhor, de crescer, de amadurecer. Somente quando ela percebe que sua evolução pessoal é vital para si e para os outros que a compreensão da realidade transforma-se, para ela, em algo indispensável.

Um chamado à aventura

Por todo lado, vemos pessoas com medo, desesperadas por se manterem seguras diante de uma ameaça invisível. Mesmo com provas e mais provas de que a maioria delas está diante de um perigo muito pequeno, ainda assim preferem não se arriscar. Este é o resumo da nossa civilização.

As pessoas tornaram-se frágeis porque desejam ansiosamente por segurança. Elas querem controlar tudo – seu ambiente, sua saúde e seu futuro – e isso faz delas fracas. Elas acreditam na possibilidade de uma sobrevivência segura. Aliás, apostam todas suas fichas nisso. Trabalham incessantemente para isso. Seu objetivo é atravessar esta vida com o mínimo de percalços, arriscando-se o menos possível, tentando ser o mais previdente que seu meio materializado lhes permite ser.

No entanto, a mensagem do cristianismo, que é o fundamento dessa civilização, afirma exatamente o contrário. Muito diferente de um chamado incondicional à cautela, ela faz uma verdadeira apologia à aventura.

Isso incomoda profundamente a mentalidade moderna, inclusive a de muitos religiosos, que sustenta que o sentido da vida é atravessá-la com estabilidade, ancorados na previsibilidade e suportados por certezas inabaláveis.

O próprio Cristo dá um ponta-pé nas estacas que sustentam a crença em uma vida segura e chama os homens para um mergulho no imponderável. Os nascidos do espírito são como o vento – ele diz. E o vento caracteriza-se por não se saber de onde vem, nem para onde vai. O vento sopra onde quer – completa.

A vida, na verdade, é um passo rumo ao desconhecido. Não foi feita para quem espera poder, nas horas de maior perigo, olhar para trás. Não foi feita para aqueles que fazem o que têm de fazer apenas quando estão certos de que, se algo der errado, terão para onde voltar. Não foi feita para quem age apenas depois de garantir-se que terá suporte se as coisas não sairem como o esperado.

Essa mensagem é uma dissipadora da ilusão materialista que vivemos. Ela toma esse universo artificial que criamos em nossa volta, e que nos passa a impressão de controle e cálculo, mas esconde a natureza misteriosa que existe por detrás dele, e o reduz a pó. Ela mostra que esse mundo visivelmente ordenado e normatizado, sobre o qual as pessoas depositam sua confiança, exaltando sua Ciência, Medicina, Engenharia, Direito e demais conquistas que a mente humana foi capaz de desenvolver, não passa de uma folha de papel no parapeito da janela, levada pela primeira brisa que soprar.

O chamado é para que você se lance com coragem e com disposição para enfrentar o que tiver de ser enfrentado. E o medo e a incerteza que essa aventura poderiam suscitar serão facilmente suplantados pela libertação e força que apenas uma vida sem garantias pode oferecer.

O ensinamento é para que você não se deixe confundir pela ilusão de segurança que este mundo oferece. Assim, não espere dele sua paz, nem sentido algum, menos ainda qualquer tipo de salvação.

Sua vocação é uma aventura. Aceite-a e você nunca mais será prisioneiro de nada, nem de ninguém.

Chesterton e Olavo de Carvalho

As razões mais óbvias servem para as pessoas mais óbvias. Porém, quem movimenta o mundo de verdade são aqueles que desafiam o óbvio e fazem aquilo para o que foram destinados. Se fizessem o óbvio, provavelmente cairiam na vala comum da mediocridade. Se seguissem os conselhos óbvios das pessoas óbvias seriam exatamente como elas: óbvias.

Há dois homens, de épocas diferentes, de personalidades diferentes, com estilos de vida diferentes, mas que se tornaram incrivelmente parecidos exatamente por fugirem da obviedade. Chesterton e Olavo de Carvalho possuem características que os diferenciam: um era obcecado pelos paradoxos da vida, o outro pela verdade nua e crua; um escrevia como se tivesse contando uma história, o outro dando uma aula; um considerava-se quase um poeta, o outro um filósofo; um não teve filhos, o outro os fez às pencas; um era inglês, em um época em que a Inglaterra era o grande poder global; o outro brasileiro, testemunhando um país sempre à margem do protagonismo mundial; um estava cercado de intelectuais de altíssimo nível, contra quem travara grandes debates, o outro viveu quase toda sua vida cercado de anões intelectuais, incapazes de discutir com ele e de sequer entender o que ele escrevia.

Tudo isso pode parecer decisivo para manter esses dois personagens afastados e aparentemente sem qualquer similaridade. No entanto, o que os torna semelhantes é muito mais decisivo do que suas diferenças. Ambos jornalistas, tornaram-se conhecidos por seus artigos nos periódicos de seu tempo. A principal atividade de ambos, porém, fora a crítica ao círculo intelectual de suas respectivas épocas. Ambos fizeram carreira destruindo intelectualmente aqueles a quem criticavam. Ambos acabaram envolvendo-se com as questões políticas talvez mais do que imaginassem ou desejassem. Escreveram diversos livros, porém nenhum dos dois desenvolveu uma doutrina dogmatizada, mas construíram uma filosofia que, compreendida em seu sentido amplo, deixa para a posteridade um material abundante para ser discutido e desenvolvido. Tanto o escritor inglês como o brasileiro possuem um pensamento original e, frasistas naturais, oferecem centenas de citações que se tornaram marcantes para seus leitores. Por fim, firmaram-se na fé católica na maturidade, mostrando um semelhante progresso espiritual nessa direção.

Ainda assim, não são essas grandes similitudes que tornam Chesterton e Olavo de Carvalho gigantes-irmãos. O que os torna realmente semelhantes é algo bem mais trivial: o fato de não aceitarem fazer o óbvio. No caso, o óbvio seria, como intelectuais e pensadores influentes, afastar-se um tanto dos afazeres considerados dispersivos, como os debates públicos e as disputas políticas e intelectuais de seu tempo; o óbvio seria ver tudo isso como perda de tempo para quem tem a contribuir com questões superiores. Mentes normais ficam incomodadas vendo potências intelectuais se distraindo com questiúnculas. Por isso, ver o Olavo escrevendo diariamente nas redes sociais pode parecer uma grande perda de tempo, da mesma maneira que parecia pra os contemporâneos de Chesterton quando o viam atolado em disputas que pareciam dispersões em meio à grande obra que ele poderia produzir – inclusive, ele ouviu constantes repreensões por isso.

No entanto, foi a própria esposa do escritor inglês, Frances (aliás, outro semelhança ente os dois escritores: como a mulher de Chesterton, Roxane Carvalho é uma guerreira ao lado de Olavo), quem explicou exatamente como as coisas se davam. Segundo ela, seu marido não mudaria, porque estava “empenhado em ser um alegre jornalista, em fazer a maior farra… Tudo o que ele quer é fazer a maior barulheira possível”.

Chesterton queria bagunçar o mundo intelectual de sua época. E como não comparar isso com a afirmação do próprio Olavo de Carvalho, que disse: “Eu vim foder com tudo!”?

O fato é que se tratam de dois homens que fizeram história. Os dois remexeram como seus respectivos mundos intelectuais. Os dois fizeram tudo aquilo que não se esperava deles. E assim colocaram tudo de cabeça para baixo. Com isso, enquanto um, tendo feito carreira há um século, deixou um legado de pensamento profundo, que até hoje é discutido por seus admiradores, o outro, que já é o responsável pela maior revolução cultural ocorrida em terras brasileiras, segue construindo seu patrimônio que ficará de herança para uma enormidade de pessoas que se interessam pelos mais diversos assuntos – de política à filosofia, de psicologia à espiritualidade.

Chesterton e Olavo têm muito mais em comum do que pode parecer, à primeira vista. No entanto, nada os une mais do que o fato de terem vindo ao mundo para chutar os alicerces do pensamento corrente.

Professor por vocação

Há os professores de ofício, que cumprem seus papéis, são responsáveis, gostam do que fazem e que até dão boas aulas. O mundo precisa deles. Se a maioria dos profissionais da educação fosse assim praticamente todos os problemas na área estariam resolvidos.

Mas existe um grupo ainda mais seleto, representado por algumas joias de dentro do universo da pedagogia, que não se satisfaz por oferecer aulas satisfatórias, mas esforçam-se – e conseguem – torná-las altamente desejáveis. Esse grupo é composto pelos professores por vocação. 

A qualidade das aulas de um professor vocacionado não está relacionada com o contra-cheque que recebe, nem com o ambiente acadêmico onde está inserido. Sequer ela é afetada pelo seu humor. Isso porque, para um professor por vocação, a ministração da aula é seu momento de redenção. Ali – ainda que temporariamente – seus problemas, seus anseios, suas frustrações e seus medos são deixados de lado. Importa o conhecimento a ser transmitido, o assunto a ser compartilhado.

Um educador que possui o chamado vai além do papel meramente burocrático, de quem se detém a cumprir um currículo pré-determinando, despejando mecanicamente conteúdos sobre sua audiência . Ele é um apaixonado, não apenas pelo assunto que conhece – muitos estudiosos afeiçoam-se aos temas que estudam, sem se tornarem, com isso, mestres -, mas pelo desejo intenso de repartir o conhecimento que possui e conduzir seus instruídos a uma compreensão penetrante do tema abordado.

O verdadeiro pedagogo não persegue o louvor. Sua realização dá-se mais com a absorção, pelo estudante, do que lhe foi entregue, do que com o elogio que possa receber por isso. Seu maior prazer é ver os primeiros passos desacompanhados daqueles que aprenderam com ele. Sua alegria é observar que seu aprendiz superou o mestre. E esta felicidade permanece, ainda que o próprio aluno não reconheça os méritos do seu professor.