Juiz de alma

Quando uma juíza se põe a diagnosticar psicologicamente a parte de um processo, condenando-o, por suas opiniões, apenas com fundamentos subjetivos, chegamos ao ápice da judicialização da sociedade, quando a livre expressão e até o livre pensamento começam a ser tolhidos.

Foi o que aconteceu no caso do apresentador Zeca Camargo, condenado a pagar sessenta mil reais à família e empresários do falecido cantor Cristiano Araújo, simplesmente porque, segundo a percepção pessoal da magistrada, teria emitido opiniões extemporâneas e insensíveis.

Sem querer entrar no mérito da manifestação do jornalista, e, apenas para fins argumentativos, considerando que ele possa realmente ter sido insensível ao falar sobre a carreira do artista no momento que ainda a família deste estava enlutada, minha crítica à sentença prolatada está no fato de que ela representa a manifestação de um poder muito maior do que deve ser concedido a um juiz.

Quando um funcionário público, remunerado para dirimir as questões sociais colocadas diante dele, apenas com base naquilo que a lei determina, se arroga na competência de invadir seara subjetiva, julgando segundo suas percepções mais íntimas e conforme diagnóstico psicológico incompetente, sobre o direito de alguém manifestar suas opiniões, fica evidente que o Estado assumiu poderes muito maiores do que é aceitável, colocando todo cidadão subjugado à sua vara de ferro, como se dá numa clássica tirania.

Basta ver que, segundo as razões da julgadora, o apresentador deveria ser condenado porque “não teve o mínimo de compaixão e sensibilidade e no seu egoísmo e narcisismo, com pensamento de autoridade acerca do que deve ser considerado bom ou não, passou a agredir aquele que já não tinha defesa”.

A sentença deixa claro que cabe ao poder estatal definir qual é o timing para uma crítica qualquer. Isso quer dizer que a liberdade de opinião, tão aclamada nos meios democráticos, na cabeça dessa juíza, não significa o direito que cada um tem de dizer o que realmente pensa, mas trata-se apenas de uma concessão pública, cabendo ao Estado determinar, não apenas o que pode ser dito, mas também quando pode ser dito. Ou seja, sob este aspecto, a opinião não é livre coisa alguma e depende sua existência da licença de um burocrata qualquer.

Além disso, quando a julgadora se entende apta a emitir diagnóstico psicológico, chamando o réu de egoísta e narcísico (lembrando que o narcisismo é uma patologia, assim considerada pelos institutos oficiais de Psicologia), e, com base nisso, julgá-lo, condenando-o, deixa claro que, para ela, sua função de julgadora existe para, não apenas verificar se os atos confrontam-se com a lei, mas para perscrutar a alma humana, em seus aspectos mais interiores, tirando dali, quando encontrada alguma maldade, a punição que entende plausível. Sinceramente, nem nas distopias mais imaginativas encontrei alguém que conseguisse pensar em poder tão absoluto à autoridade estatal.

Claro que os defensores dessa decisão dirão que a manifestação do senhor Camargo feriu a moral da família do cantor e por isso ele deve ser considerado culpado. O problema é que não cabe ao juiz observar apenas a sensibilidade do ofendido. Aliás, esta não significa nada, em termos legais, se não houver, da parte tida por ofensora, uma verdadeira agressão às normas. E, de tudo o que eu verifiquei, o texto apresentado pelo jornalista não possui nada além de uma análise generalista e crítica da sociedade, sequer tangenciando qualquer tipo de injúria ou agressão à moral de quem quer que seja.

Espera-se que o Tribunal corrija tamanha absurdidade, como foi a sentença dada por essa juíza. No entanto, fica o alerta para o que já parece configurar-se uma tendência, a saber, uma postura despótica por parte de meros funcionários estatais, que acreditam que seus poderes encontram-se em suas próprias pessoas e suas capacidades idiossincráticas quando, na verdade, deveriam ater-se a sua função, que é de meros intérpretes dos fatos em conflito com a lei.


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