A dimensão espiritual, que envolve nossa fé e a nossa religiosidade, faz parte da estrutura da nossa vida. Querendo ou não, tendo consciência dela ou não, cultivando-a ou não, ela faz parte de nós, influencia nossas ações, determina o nosso destino. A pessoa pode ignorar sua dimensão espiritual, mas não é por isso que seus efeitos deixam de existir. A natureza humana é espiritual e compreender esse aspecto dela é essencial para se estabelecer um minimo de equilíbrio interior, de harmonia com o cosmos e de sentido existencial.
Porém, nosso tempo afastou sua inteligência do que é espiritual, afinal, é herdeiro de uma era racionalista, quando se estabeleceu que o guia da nossa vida deveria ser a Razão. Nos chamados séculos das luzes, a humanidade ocidental acreditou que poderia ser guiada por suas capacidades cognitivas e especulativas e lançou todas as suas esperanças sobre ela. Obteve, com isso, muitas conquistas no campo material, mas, para isso, precisou expulsar as coisas do espírito para o reino do desconhecido, do mistério, onde não cabiam a investigação e o debate, apenas o sentimento e a convicção subjetiva.
Nos séculos da Luzes, a transcendência não foi negada, mas lançada para um mundo inalcançável pelas vias racionais ordinárias. Tornou-se algo a ser acessado somente pelo inconsciente, por algum tipo de força interior, por meio de um salto de fé ou por uma espontaneidade anímica, sempre fora do controle da consciência. O reino do espírito tornou-se, então, assunto exclusivo de religiosos e espiritualistas, não de filósofos. Estes estavam demasiado ocupados tentando decifrar as engrenagens cerebrais, as leis gerais do pensamento e os movimentos mundanos para se ocuparem com o que eles não tinham como tratar empiricamente. Os iluministas exaltaram a razão, mas não foi este o seu erro (os medievais já haviam exaltado-a), mas fazer dela sua rainha e desassociá-la da transcendência.
No entanto, a razão não representa o ápice da condição humana. Ela é necessária, imprescindível, insubstituível, mas não pode ser o mestre a guiar os seus vassalos. Pelo contrário, a razão só tem valor se for submetida aos objetivos humanos, tendo funções bem definidas, como a ordenação, o discernimento e a seleção dos conteúdos da realidade. A razão é serva, não senhora, como queriam os iluministas.
A verdade é que quando tratamos da realidade, considerada em sua integralidade, veremos que ela ultrapassa os limites dos processos racionais. Há elementos dessa realidade que desafiam, contradizem e se furtam da mera racionalidade, e tais elementos não podem simplesmente ser ignorados.
E apesar da transcendência tratar-se de uma realidade superior, isso não quer dizer que se trata de uma realidade à parte. Ela pertence ainda à dimensão humana. Por isso, a filosofia, que tem por objetivo desvelar a realidade da qual o ser humano faz parte, não precisa abrir mão dela. Sendo assim, refletir sobre os conteúdos relativos ao supra-material, ao supra-sensível, ao metafísico está dentro do escopo do trabalho do filósofo. Se o transcendente pode ser objeto de investigação e de reflexão, de discernimento e de crítica, de conhecimento e de síntese, o filósofo estará pronto para exercê-los.
Por isso, há anos, eu proponho um método de estudo das questões espirituais, o qual eu denominei de Teologosofia, que nada mais é do que um olhar filosófico sobre a espiritualidade. O objetivo do método filosófico é clarear o entendimento sobre a realidade espiritual, fazendo dela mais compreensível. Não que eu negue a existência do mistério, do numinoso, mas sou convicto de que o mistério, quando se apresenta, deixa de ser misterioso para tornar-se compreensível. É mistério somente até deixar de sê-lo.
O apóstolo Paulo afirma que há algumas coisas que ainda são confusas, como num espelho, mas haverá um momento em que elas serão vistas claramente, como se face a face. Ora, algo que poderá ser compreendido em algum momento é porque, em si, já possui a qualidade de ser compreendido. De nossa parte, porém, não sabemos exatamente onde estão as fronteiras entre o atualmente compreensível e o apenas futuramente compreensível. Por isso, forçamos os limites da compreensão de tudo até o máximo, até termos certeza que não podemos mais compreender.
O fim da filosofia é a verdade e se algo é verdadeiro e pensável merece ser por ela abordado. De minha parte, sou convicto de que as coisas do espírito não são apenas verdadeiras, mas passíveis de reflexão, de meditação e de conhecimento. Por isso, me disponho, cotidianamente, a pensar sobre elas e compartilhar o que eu apreendo com as pessoas que se interessam em me ouvir.