oculos-sobre-a-bibliaUma grande dificuldade para religiosos que têm em alguma escritura sagrada seu norte é olhar a realidade de maneira singela. Não raro, sua percepção é afetada pela superposição do que está escrito, tornando sua relação com a coisa vista indireta, ao menos no nível da cognição. Em princípio, isso ocorre até como uma forma de proteger-se de si mesmo. Desconfiado da própria capacidade de ver o mundo de maneira correta, certo de que suas percepções estão afetadas pelo pecado ou alguma degeneração estrutural de sua natureza, o religioso se refugia nas letras reveladas como única fonte segura para sua interpretação da verdade.

Tal método tem sua importância, mas quando aplicado de maneira absoluta, sem critérios, como se fosse a única forma de resolver o problema da compreensão correta da realidade, cria distorções que afetam a inteligência do indivíduo.

Ele, então, passa a entender a própria experiência direta com base naquilo que interpreta do que está escrito, criando uma inversão cognitiva que, a despeito da intenção de clarificar, confunde.

A percepção imediata e a experiência logo não valem nada, a ponto de fazê-lo duvidar delas, mesmo quando evidentes. Até porque para quem se prende à interpretação do mundo unicamente pela letra não há evidência, apenas interpretação.

Todo o conceito de verdade, de realidade e de sentido, para esse adepto da vida pela hermenêutica, é derivado do que entende do que lê. Para ele, confiar, o mínimo que seja, na própria percepção e na intuição é sacrílego.

Me surpreendeu conversar com alguém desse tipo e constatar sua negação de verdades óbvias, unicamente porque tal pessoa entendia que o que estava contido nas Escrituras afirmava algo diferente.

Em vez de tentar harmonizar sua percepção imediata com aquilo que estava escrito, ele se apressava em negar o que via com os próprios olhos, certo que tal atitude representava o ápice da piedade cristã.

Na verdade, pessoas que agem assim criam uma grande confusão para si mesmos. Não entendem que a Revelação não é um amontoado de verdades dadas desde fora, a serem recebidas como a elementos alienígenas.

Toda revelação, com efeito, pressupõe uma infinidade de conhecimentos prévios, sem os quais seria impossível compreendê-la. E tais conhecimentos são naturais, nascem da experiência, surgem da percepção direta ou simplesmente são evidentes.

Se não houvesse conhecimentos prévios, a Revelação seria ininteligível. Só é possível compreendê-la porque ela faz referência ao que já existe, ao que já foi experimentado, ao que já é sabido.

Antepor a Revelação à experiência é corromper a própria Revelação. Afinal, esta existe para tornar a experiência compreensível. Portanto, pressupõe que haja já algum tipo de leitura da experiência. Se não houvesse, a Revelação seria apenas uma linguagem estrangeira a ser codificada, não uma mensagem a ser entendida.

Para se compreender a Revelação é necessário, antes, saber a que ela se refere. Para entender o que a Revelação diz, é preciso, antes, conhecer os elementos de que ela trata. Para interpretar a Revelação é inescapável ter experiências que permitam relacionar o que está escrito com a realidade.

Se não posso confiar apenas em minha experiência, principalmente na interpretação que faço dela, também não posso negá-la, deixando apenas para o que está escrito nas Escrituras o papel de explicar o que vejo.

Na verdade, a Revelação, quando trata daquilo que faz parte da experiência, não inova, mas corrige. Só que, para isto, ela mesma espera que o indivíduo já tenha feito uma leitura prévia. Isso porque não se corrige o que não existe, nem se interpreta o que não se sabe.

Portanto, não é possível negar a experiência quando se quer que a Revelação explique do que ela se trata.