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O óbvio que não importa

Não há quem não fique furioso em, após explicar algo com detalhes e lógica, com todo o cuidado para que tudo fique bem claro, ser acusado com um adjetivo depreciativo que o interlocutor, ignorando tudo o que foi dito, impõe ao discursante, apenas por imaginar que ele representa determinada ideologia, classe ou interesse particular.

Mesmo quando fala-se coisas evidentes, há sempre quem não se esforça por entendê-las. Ainda que se diga, por exemplo, que homem é homem e mulher é mulher, vão chamar-lhe de homofóbico; que a religião sustentou a civilização, irão acusar-lhe de reacionário; que dois mais dois são quatro, vão afirmar que quem diz é um defensor de um conservadorismo retrógrado e mantenedor de privilégios. O óbvio não importa, sempre haverá um adjetivo pronto para ser usado contra você.

Parece que ninguém se preocupa em entender o que está sendo dito. Nem os argumentos mais lógicos fazem a diferença. Tudo o que enxergam é a origem do falante. Dependendo de onde imaginam que ele vem, a classe que representa, a ideologia que defende, têm todas as respostas e acusações preparadas.

Mas esse tipo de atitude semi-analfabética não é coisa de gente má instruída, não. Pelo contrário, é algo bem mais comum naqueles influenciados pelas teorias acadêmicas vigentes. São estes que costumam ter mais má vontade de entender o pensamento alheio.

Isso ocorre porque vigora, no meio universitário brasileiro, uma perspectiva, inserida na área da Linguagem, que ensina que “o sujeito atua como alguém que pensa ter o domínio sobre o que diz, mas, na verdade, é o inconsciente e as ideologias de cada um que determinam os discursos. O sujeito não tem condições de despojar-se desses elementos de sua formação idiossincrática no momento de emitir opiniões ou fazer colocações, por mais neutras que possam parecer” (Freda Indursky).

Com essa doutrina impregnando-se na mentalidade semi-inteligente brasileira, a quase totalidade dos participantes dos debates culturais e políticos (jornalistas, professores, críticos, acadêmicos, profissionais liberais, escritores etc.) não consegue entender nada do que se diz. A universidade brasileira está formando pessoas incapazes de interpretar um texto, de compreender um argumento.

A partir do momento que a primeira preocupação deixa de ser os argumentos em si (em sua estrutura lógica, etimológica e semântica) e passa a ser o meio que circunda o sujeito que fala, tentando extrair daí o sentido do que diz, não é possível se entender mais nada.

Não que as circunstâncias não tenham importância e a origem do sujeito não influencie sua fala. No entanto, esses detalhes marginais devem ser vistos como elementos auxiliares, não determinantes, para a compreensão do discurso.

Enquanto vigorar essa visão dominante na universidade brasileira, estamos nós, que acreditamos na argumentação, na lógica e no sentido das palavras, fadados a sempre parecer estar interagindo com loucos.

Babel pós-moderna

Toda a cultura e toda a vida intelectual, em uma sociedade, depende da existência de uma constante troca de ideias e do intercâmbio incessante de pensamentos. As grandes concepções, os juízos mais engenhosos, não teriam valor algum se permanecessem isolados nas mentes de seus autores. Para que pudessem contribuir para o desenvolvimento da civilização, foi necessário terem sido compartilhados por seus criadores e, concomitantemente, absorvidos, compreendidos e aplicados por seus interlocutores.

Pressupõe-se, portanto, que, para a formação da civilização, aqueles que se depararam com as mensagens dos gênios, que ouviram as palavras das grandes mentes, compreenderam aquilo que estava sendo transmitido e, por isso, puderam colocar em prática o que deles fora apreendido. E é nessa comunhão entre emissor e interlocutores que reside a base para a construção de qualquer sociedade.

Sem esquecer que mesmo os sábios, transmissores das grandes ideias, foram, eles mesmos, influenciados e impactados por mensageiros anteriores, dos quais receberam outras grandes ideias e os quais tiveram a capacidade também de compreender.

Vê-se assim que toda a sociedade está fundamentada em um acordo tácito em relação aos sentidos das palavras, os seus significados, suas implicações e suas referências. É dessa maneira porque, se não fosse, o que uma pessoa dissesse não poderia ser imediatamente compreendido pela outra, impedindo que essa sociedade se desenvolvesse, afinal, esse desenvolvimento depende necessariamente da cooperação e esta só ocorre por meio da troca constante de conteúdos racionais.

Em todas as sociedades foi assim. Por mais que sempre houvesse algum tipo de variação dos sentidos e alguma diferença na interpretação que se dão às palavras e expressões, em geral, as pessoas nelas inseridas sempre possuíram referências, visões de vida, linguagem e compreensão semelhantes. Foi isso que permitiu que cada sociedade se desenvolvesse a sua maneira.

Atualmente, porém, já não é mais assim. Chegamos em um momento quando a impressão que se tem é que os tempos de concórdia acabaram, que a unidade de visão está se esvaindo e cada qual passa a ser determinador daquilo que existe, segundo sua própria maneira de enxergar o mundo.

O que eu quero dizer é que está havendo uma relativização tão gigantesca em relação ao sentido de todas as coisas que, cada vez mais, as pessoas enxergam-nas diferentemente umas das outras. Ainda que se refiram a elas com os mesmos nomes e ainda que pareçam estar falando sobre um mesmo fato, cada palavra, cada expressão, cada ideia parece evocar em cada pessoa percepções tão diversas que sequer parecem tratar-se de uma e mesma realidade.

E isso acontece não apenas por causa da relativização, mas tem origem em uma deterioração cultural que faz com que os indivíduos não possuam o instrumental intelectual mínimo para compreender o que é dito, senão segundo suas parcas capacidades e estreita visão.

Mistura-se, então, esses dois elementos venenosos, o rebaixamento cultural e a relativização, e temos a fórmula perfeita para uma sociedade fragmentada, individualista, no pior sentido desse termo, onde cada qual vive dentro de sua própria realidade e a comunicação torna-se cada vez mais difícil.

O resultado disso é a progressiva dificuldade dos concertos, dos acordos, das contribuições mútuas para o progresso dentro dessa sociedade. Quanto mais as pessoas não parecem falar a mesma língua, mais complicado fica que alimentem-se mutuamente com boas ideias e contribuam para o a manutenção e avanço dessa civilização.

Nosso mundo, por causa dos efeitos dessa discórdia linguística, semântica e simbólica, tem o sério risco de involuir, de retornar pouco a pouco à barbárie, quando os homens viviam essencialmente para sobreviver e ainda não haviam desenvolvido a razão suficientemente para construir uma sociedade que se parecesse com aquilo que convencionamos chamar de civilizada.