Categoria: Filosofia

Direito de Duvidar

Em outros tempos, os inteligentes eram os contestadores. Lembro-me de como se valorizava a pessoa não conformada e que não se rendia às imposições do sistema. Hoje, parece que as coisas mudaram.

Gente bem instruída tem defendido que existem coisas óbvias demais para serem contestadas. Não se engane! Elas não estão se referindo a Deus ou a algum absoluto metafísico, mas a questões naturalmente discutíveis, como experiências científicas, interesses financeiros e jogos políticos.

São pessoas educadas, que têm aceitado – quando não instigado – a censura prévia daqueles que ousam questionar algumas certezas que não parecem certas o suficiente.

Não satisfeitas, acusam os questionadores de obtusos. Afinal, para os censores, há realidades evidentes demais para que se permita levantar dúvidas sobre elas.

No entanto, nada é óbvio para quem olha com atenção.

Somente uma pessoa inteligente é capaz de duvidar. Isso porque apenas alguém com o imaginário expandido tem condições de antever possibilidades, percebendo as diferentes formas como o objeto observado pode se manifestar.

Os inteligentes percebem que aquilo que se manifesta de uma maneira pode também se manifestar de outras. Por isso, para eles, não é que o óbvio não exista, mas se trata de exceção. Observe o mundo, tente identificar o indubitável e verá que quase nada se encaixa nessa definição.

Por isso, a dúvida, sendo necessária para quem pretende enxergar além das aparências, longe de ser uma característica de ignorantes, é, na verdade, um indício de sabedoria. Somente a pratica quem não tem ainda a mente cativa.

Não estou falando dos paranoicos que, por falta de capacidade de discernimento, criam uma realidade alternativa para onde não param de olhar e de onde tiram todas as explicações. Estes não duvidam de nada. Apenas trocam uma certeza pela outra.

Falo, sim, da importância de se preservar o direito de duvidar. Este que é um exercício típico de todos os grandes pensadores que, não conformados às certezas desta vida, ousaram levantar sua voz para desafiá-las.

Sem a dúvida não há ciência, nem evolução. Somente ela pode tirar a humanidade de suas certezas estacionárias e permitir seu amadurecimento. Quando não se permite duvidar, resta apenas a opressão das certezas fabricadas.

Eu Não Planejo Meus Estudos

Não costumo fazer planejamentos muito detalhados das minhas leituras. Apenas sigo alguma intuição e deixo os instintos me guiarem. Até aqui, tem dado certo. Porém, essa forma de tratar os estudos é aterrorizante para boa parte dos meus amigos.

Muitos deles costumam montar planos lineares, arquitetados logicamente e prevendo uma sequência perfeita, pela qual cada livro segue o outro como se, ao ser lido, tivesse cumprido perfeitamente seu papel, podendo ser posto na prateleira para se tornar então um mero objeto de consulta. Alguns desses amigos, pasmem, já sabem o que vão ler até o fim de suas vidas.

Pensando bem, essa previsibilidade infalível caracteriza uma baita pretensão. Acreditar que é possível fazer um planejamento de uma vida de leituras e cumpri-lo fielmente também pressupõe uma concepção do indivíduo, que o vê como um aglutinador de dados, capaz de abstrair completamente suas circunstâncias, praticamente, equiparando-o a uma máquina.

O problema é que esse tipo de sequência de estudos não entra em harmonia com uma vida humana real, que não obedece a crescimentos lineares, mas orgânicos; que não se desenvolve pelo simples e constante acréscimo de informações, mas segue uma dinâmica bastante mais complexa.

Na verdade, não somos como máquinas, mas seres orgânicos e espirituais. Isto faz com que nosso desenvolvimento, especialmente em seu aspecto intelectual, não obedeça a modelos simples de crescimento. Pelo contrário, o processo, como ele se dá, torna sua análise muito difícil, pois os elementos que o promovem são diversos e sutis. Se atingimos determinado estágio de maturidade, isso ocorre pela conjunção de tantos fatores, complexos e diversos, que são praticamente impossíveis de serem rastreados.

Por isso, um plano de estudos que queria acompanhar o processo de amadurecimento intelectual de uma pessoa precisa possuir maleabilidade suficiente para permitir se conciliar com as mudanças que nela ocorrem. Precisa estar aberto às releituras, às alterações de rotas, às mudanças de perspectivas causadas pela ampliação do imaginário e às próprias oscilações dos interesses e necessidades que as circunstâncias da vida apresentam.

Considerando tudo isso, a caoticidade acabou me prestando bem. Como faço as leituras de acordo com meus interesses do momento, minhas necessidades circunstanciais e minhas curiosidades contingenciais, tudo o que aprendi com elas foi se acoplando ao meu espírito de forma bastante natural. Li o que, acredito, precisou ser lido e fui preenchendo as lacunas conforme percebia a necessidade de suprir as faltas de entendimento dos temas específicos.

Comigo não aconteceu o que é muito comum com aqueles que planejam tudo: ler livros importantes na juventude, quando ainda não se é maduro o suficiente para absorvê-los da maneira devida, e nunca mais abri-los, por terem sido já superados na sequência planejada, desperdiçando o que uma nova leitura deles poderia proporcionar. Tenho o prazer de ler e reler obras em fases diversas da minha vida, o que, em cada uma delas, representa uma experiência diferente e um novo tipo de aprendizado.

Posso não ser uma pessoa muito organizada, nem disciplinada, mas, pelo menos, essa característica da minha personalidade não tem sido um entrave ao meu crescimento intelectual. Acredito que, até certo ponto, tem mesmo colaborado com ele.

Lei da Natureza Humana

Os mesmos que afirmam a inexistência do certo e do errado são aqueles que reclamam ao sentirem-se injustiçados; são os que exigem que suas escolhas sejam respeitadas. Porém, se não há certo nem errado quais seriam os fundamentos para que reivindiquem qualquer coisa? Neste caso, tudo seria permitido, nada condenável, inclusive desprezar seus argumentos relativistas.

C. S. Lewis, no primeiro capítulo de seu livro ‘Cristianismo Puro e Simples’, derruba a pretensão daqueles que fogem de qualquer moral natural, lançando mão de um exemplo simplíssimo: quando duas pessoas discutem, independentemente de acreditarem ou não em absolutos morais, tentarão provar que estão certos e o adversário errado. Basta isso para provar a inconsistência do que pensam.

A verdade é que todas as pessoas estão de acordo com algum padrão moral. Padrão que Lewis chama de Lei da Natureza Humana e que, segundo ele, se pressupõe conhecida por todos. Seria ela tão certa como as próprias leis da natureza, da física, da matemática. Tanto que um engano sobre ela seria como um erro de cálculo.

Obviamente, sempre há aqueles que alegam que a moral fora tratada de diferentes maneiras por diferentes civilizações na história. Contra isso, porém, o escritor irlandês lembra que, no que é fundamental, todas as civilizações se equivalem, possuindo apenas algumas diferenças pontuais. Afinal, não há civilização que, por exemplo, não tenha valorizado a bravura, a lealdade, a honra e desprezado a covardia e a deslealdade.

Ainda assim, apesar da Lei da Natureza Humana ser uma lei natural, Lewis faz questão de lembrar-nos que falhamos em cumpri-la, tanto que não há nada mais comum do que corrermos para encontrar desculpas para essas violações. E esse conhecimento e esta transgressão – ressalta – é tudo o que precisamos saber sobre nós mesmos.

Psicanálise e o Vício do Olhar Autocentrado

“Nossa dívida com o aperfeiçoamento de esgotos é incomparavelmente maior que com a Psicologia”. Esta frase resume o espírito do livro “Evasivas admiráveis: como a psicologia subverte a moralidade”, do psiquiatra britânico, Theodore Dalrymple.

O escritor inicia o livro criticando aqueles que, influenciados por uma visão mecanicista das funções cerebrais e empolgados com os avanços neurobiológicos, devotam uma confiança quase supersticiosa às soluções psiquiátricas, inclusive abusando dos fármacos, considerados como de resultados duvidosos pelo autor.

No entanto, no primeiro capítulo, a crítica de Dalrymple acaba sendo direcionada especialmente à Psicanálise freudiana. Aliás, ele não economiza ‘elogios’ a Freud, chamando-o de mentiroso, falsificador de provas, plagiador, mitólogo, além de fofoqueiro, apesar de de brilhante, culto e bom escritor.

Para Dalrymple, o grande mal, fruto da cultura psicanalítica, é o estímulo ao rastreio obsessivo dos motivos inconscientes, o que geraria um hábito terrível e de foco empobrecido de olhar demasiadamente para dentro de si mesmo. “O mundo para o analisando parece um infinito regresso de símbolos, um labirinto, uma sala de espelhos em que as imagens dele mesmo se estendem na confinada infinitude da sua câmara espelhada”.

O paciente psicanalista seria alguém viciado em voltar-se ininterruptamente para seu próprio ego, o que geraria nele trivialidade, por colocar em um fosso comum todos os motivos inconscientes, e paranoia, ao levá-lo a buscar significados ocultos em tudo, passando, por isso, a desconfiar de tudo.

Outra consequência nefasta da Psicanálise seria a conclusão que ela gerou de que reprimir os sentimentos é algo maléfico. Obviamente, uma sociedade que foge de qualquer aparência de repressão, dessa forma, não poderia estabelecer suas bases de maneira devida.

O autor segue afirmando que, em um mundo onde a Psicanálise se estabelece como cultura, a atenção volta-se para si, num interminável “falar de si mesmo”, como se dá nas clínicas psicológicas e psicanálíticas. Portanto, se nossa sociedade caracteriza-se por uma autocentralização egoística, isto seria muito devido à psicanálise.

O psiquiatra ainda arremata que nossa sorte é que a Psicanálise se trata de uma idéia recente, pois se ela “tivesse sido inventada pelos homens das cavernas, a humanidade ainda moraria nas cavernas”.

Expectativas e Realidade

Uma das brincadeiras que acho mais divertidas na internet é aquela que mostra duas imagens: uma com a expectativa da pessoa – geralmente algo positivo, bonito, agradável, como a do homem no trabalho, pensando como vai ser quando chegar em casa, sentado no sofá, com uma cerveja na mão e o futebol na tv, – e a outra com a realidade como ela é – quase sempre algo bem menos glamouroso, como a do mesmo homem chegando em casa, com seus filhos correndo para todos os lados, sua mulher brava por causa do horário e a pia cheia por que o encanamento entupiu.

O que mais gosto nessa brincadeira é que ela possui um fundo de verdade. É comum criarmos certas expectativas, impulsionadas por nossos desejos, que não se materializam, simplesmente, porque não condizem com a realidade. Nossa cultura atual nos impulsiona nesse sentido. É a tal da psicologia positiva; o discurso motivacional. Somos induzidos a supervalorizar nossas capacidades e possibilidades. E isso, obviamente, é o prenúncio da frustração.

Por outro lado, não é incomum o contrário: acreditarmos que podemos menos do que realmente podemos. É fato que possuimos talentos e potências que, muitas vezes, não reconhecemos, além de possibilidades disponíveis que não vislumbramos. Isso diminui o tamanho do nosso mundo e acaba sendo uma sentença proibitiva. Se achamos que não podemos alcançar algo que, na verdade, podemos, não o alcançaremos jamais.

Eu não gosto de ouvir sobre crenças limitantes, porque essa se tornou uma expressão vulgarizada e exagerada, dando a idéia de que tudo na nossa vida só não acontece porque não cremos que pode acontecer. No entanto, não podemos negar que nossas convicções nos moldam e, se elas representam algo abaixo de nossas reais possibilidades, nos condenarão a uma vida inferior àquela que poderíamos ter.

O que deveríamos fazer, então? Tentar adequar nossas expectativas à realidade, cuidando para que não estejam além das nossas verdadeiras possibilidades, mas, também que não sejam pequenas demais, cuidadosas demais, medrosas demais, mantendo-nos aquém de onde poderíamos chegar.

A verdade é que geralmente podemos mais do que pensamos que podemos e menos do que gostaríamos poder. Só precisamos, então, ajustar tudo isso ao verdadeiro. Lembrando que o verdadeiro não é o que eu sei, experimento ou acredito, mas o que realmente é.

Fragmentação da Sociedade Contemporânea

A sensação que se tem, hoje em dia, é de que cada pessoa constitui seu próprio universo, possui suas próprias concepções sobre a existência e tem um jeito particular de relacionar-se com o mundo. Isso faz com que a comunicação entre as pessoas seja cada vez mais difícil, afinal elas podem até achar que estão falando sobre as mesmas coisas, podem até usar as mesmas palavras, mas, de fato, cada uma está se referindo a algo que só faz pleno sentido para elas mesmas.

A sociedade encontra-se flagrantemente fragmentada. Não há mais nenhum senso de unidade e cada indivíduo se tornou responsável por desenvolver sua própria maneira de enxergar a vida. Não há o compartilhamento de qualquer fundamento comum, nem algo sobre o qual as pessoas possam se apoiar e dizer que serve de alicerce para todo mundo.

Por não haver bases comuns onde todos possam se apoiar, o que sobra para ajudar na formação da concepção que cada um tem de existência é apenas a experiência individual. Esta, porém, é fluida e instável. Além do que, as possibilidades das experiências individuais são muito limitadas. O resultado disso é o ceticismo e a insegurança.

Algo semelhante ocorreu em Atenas, nos tempos de Sócrates, quando a mentalidade mitológica, típica da aristocracia, deu lugar ao hábito de pensamento mais analítico dos artesãos urbanos, em vias de ascensão social. Naquele momento, toda a tradição estava sendo colocada em dúvida e, não por acaso, foi o período que gerou os céticos radicais e os sofistas.

Nas sociedades estáticas, como a medieval, havia uma visão de mundo comum, fornecida pela Igreja, que entregava a todos um sentido pronto, o que os mantinha razoavelmente seguros e certos do seu destino. Dificilmente, um cidadão medieval passava por crises de identidade ou pela sensação de falta de sentido. O sentido estava dado e ele via tudo isso como algo bastante natural.

É assim porque, em sociedades estáticas, as mudanças ocorrem, mas elas são praticamente imperceptíveis. Karl Mannheim, em seu livro “Ideologia e Utopia”, explica bem isso ao dizer que “a multiplicidade de modos de pensar não pode constituir um problema em épocas em que a estabilidade social sustenta e garante a unidade interna de uma concepção do mundo. Enquanto os mesmos sentidos de palavras, as mesmas maneiras de deduzir idéias são inculcadas desde a infância em cada membro do grupo, é impossível existirem neste, processos de pensamento divergentes. Mesmo uma modificação gradual nos modos de pensar (onde acaso venha verificar-se) não se torna perceptível aos membros de um grupo que vive em situação estável enquanto o ritmo de adaptação dos processos mentais a novos problemas é tão lento que se estende por várias gerações. Nesse caso, uma única geração, no decurso de sua vida, mal pode perceber a mudança“.

Nestas sociedades, as concepções sobre a vida permanecem as mesmas. As pessoas que nelas vivem podem ter pensamentos diferentes sobre muitas coisas, mas há uma certa segurança, uma certa confiança nas próprias percepções, principalmente porque elas confirmam-se nas experiências alheias, o que dá a sensação de certeza e confiança. Nessas sociedades, até a linguagem e as formas de deduzir as idéias são semelhantes, criando, inclusive, um senso de unidade na população.

E mesmo quando essas sociedades são divididas em estratos sociais estanques, isso não se constitui um problema, pois, apesar de cada casta possuir suas próprias formas de ver a vida, ainda assim, compartilham fundamentos comuns – vistos com as maneiras próprias de cada uma delas, mas ainda assim comuns.

A fragmentação da visão de mundo vai começar a ocorrer apenas quando começa a haver, na sociedade, maior mobilidade social. Nestes casos, as formas de enxergar a vida começam a divergir-se e os fundamentos começam a ser esquecidos.

No entanto, não é qualquer mobilidade que fragmenta a sociedade. Enquanto houver apenas mobilidade horizontal, ou seja, o intercâmbio com outras culturas, isso, no máximo, pode despertar a curiosidade, mas essas outras formas de ver a vida vão apenas ser vistas como estrangeiras, exóticas e até heréticas. Apenas quando a mobilidade horizontal é acompanhada pela mobilidade vertical, que ocorre quando as diferentes formas de interpretar os fundamentos da sociedade se misturam, é que a fragmentação começa a ocorrer e o senso comum rui.

Em sociedades dinâmicas, que permitem a mudança de status social, as formas de vida de cada estrato da sociedade perdem a razão própria de ser. Deixa de existir um visão de existência correta e uma cosmovisão certa. As idéias transmutam-se com mais facilidade e não há mais o esforço por preservar os conceitos que antes eram pertencentes apenas aos estratos superiores.

Hoje em dia, o dinamismo social não tem comparação com qualquer outro período da história. O intercâmbio entre os estratos é tal que, praticamente, apaga as fronteiras que os separam. Acontece, então, das ideias típicas dos estratos inferiores penetrarem nos estratos superiores, afastando destes o papel de coordenadores e definidores da visão de mundo da sociedade. Quando isso acontece, a fragmentação é total.

Não por acaso, o que mais se vê, em nosso mundo atual, são pessoas desesperadas, vivendo vidas sem nenhum sentido ou buscando sentidos de forma totalmente atabalhoada em qualquer coisa que lhes prometa alívio dessa ausência. Sem qualquer ponto de apoio, é como se cada uma se visse abandonada em um universo hostil, sem ninguém para dar uma direção, sem saber exatamente como se comportar e nem para onde ir.

O indivíduo contemporâneo, no fim das contas, é um bastardo, largado no mundo, precisando encontrar, por si mesmo, suas próprias razões e os seus próprios sentidos.

A Perspectiva Superior da Filosofia

As maiores dificuldades, desafios e também oportunidades para o pensamento acontecem naqueles períodos de transição, em que o novo e o antigo lutam para ver quem se impõe. Foi assim na década de 20, quando Will Durant escreveu o seu “Filosofia da Vida”. Aquele era um período de degradação, quando os velhos valores estavam sendo colocados em dúvida e as antigas formas de vida pareciam não fazer mais sentido. Havia uma evidente sensação de decadência, muito parecida com a época de Sócrates, quando os mitos e as formas de governo estavam perdendo a força que possuíram em tempos anteriores.

Os anos após a Primeira Guerra Mundial haviam trazido à tona a disputa existente entre uma visão de mundo futurista e outra tradicional; foi o período da grande experiência soviética; o fascismo estava nascente; havia ainda a grande crise econômica, que desembocaria na quebra da bolsa de valores, o que afetou o mundo inteiro. Foi aquele um tempo de experimentação, quando tudo o que era novo, diferente, vanguardista se impunha, enquanto o antigo lutava para permanecer em meio a essa mentalidade que parecia contagiar a todos.

Para quem ainda insistia em manter-se alicerçado na tradição a sensação de inadequação era evidente. O momento permitia, cada vez menos, ações fundamentadas nos hábitos, nos costumes, nas crenças estabelecidas. Como escreveu Durant, não era mais possível aos homens agirem naturalmente ou instintivamente, mas tudo precisava ser pensado, racionalizado.

Muito do que fazemos é apenas um reflexo da cultura que absorvemos. O bom disso é que, para boa parte das nossas ações, não precisamos pensar demais, mas basta repetir o que aprendemos e o que assimilamos da vida em sociedade para fazer o que é certo. Mas quando os tempos são fluidos e tudo parece em transição, existe uma insegurança generalizada, porque não é possível ter certeza sobre nada do que se faz. Cada gesto, cada palavra, precisam ser medidos e calculados para acoplarem-se dentro das exigências incipientes.

O problema é que mesmo essas novas exigências não sabem ao certo o que querem, deixando todos flutuando num mar de insegurança. Em épocas assim, o que mais fica em evidência é a dúvida e a racionalização. Aquela, por não haver mais fundamentos seguros para se apoiar, esta para justificar, ainda que artificialmente, os atos que são cometidos quase às cegas.

No entanto, não é possível viver apenas da experimentação. Não que ela deva ser negada totalmente, mas o que não é correto, nem saudável, é acreditar que a experimentação possa ser o princípio de qualquer sociedade. Pelo contrário, nenhuma civilização pode sobreviver sem ter seus fundamentos bem postos sobre o tesouro dos tempos. Nenhuma comunidade subsiste sem reconhecer aquilo que a formou, que lhe deu personalidade e que moldou suas características. A herança dos sábios é a base de apoio de qualquer sociedade e negá-la é promover a autodestruição.

A Filosofia reconhece essa herança e a tem como seu próprio fundamento. Para abarcá-la, portanto, propõe que se assuma um olhar superior, que permita a apreensão da totalidade, do conjunto dos fatos e fenômenos. Essa visão mais abrangente, em perspectiva, permite ver o conjunto, não apenas no espaço, ou seja, na multiplicidade do presente, mas no tempo, na diversidade do que já foi pensado, dito e feito, em todas as épocas.

É verdade que as pessoas costumam ter medo de buscar essa visão de conjunto, pois elas estão tão seguras em seus recortes de mundo, em suas visões parciais, que só de pensar em lançar-se numa visão mais ampla, onde tudo parece bem mais complexo, ficam aterrorizadas.

Porém, a Filosofia, não pode ser menos do que essa perspectiva total da realidade e não pode pretender menos do que abarcá-la em sua completude. Foi essa a Filosofia vislumbrada por Durant e tem sido a mesma que eu assumi em minha vida. Também é dessa forma que espero que meus alunos a assumam em suas próprias existências.

Por uma Filosofia Integral

A Filosofia sempre foi vista como um instrumento de interpretação da realidade. Neste sentido, ofereceu uma multiplicidade de razões, desenvolveu diversas teorias, fundou escolas e deu margem para os mais diversos tipos de visões sobre a vida.

No entanto, a Filosofia não pode ater-se apenas à abstração do pensamento. Ela, como seu nome diz, é um amor pela sabedoria, mas não existe sabedoria sem a capacidade de guiar-se pelo mundo.

Por isso, não há como fechar-se dentro de uma linha filosófica específica e acreditar que, a partir disso, tudo estará resolvido. Aliás, esse foi o motivo de tantas doutrinas filosóficas terem sido o fundamento de tantas atrocidades.

É preciso, sim, ter a Filosofia como um meio, uma ferramenta que ajuda seu possuidor a entender melhor o seu próprio mundo, sua própria existência e sua própria personalidade.

O conceito de Filosofia Integral surge a partir do momento que se tem a convicção de que a Filosofia é essencial como instrumento para orientar-se nesta existência. Não como uma doutrina, mas como as lentes que ajudarão na formação de uma personalidade amadurecida.

E por que ela é chamada de Filsofia Integral? Simplesmente, porque tem como princípio a complexidade e diversidade da existência, que exige um olhar, para ela, amplo e capaz de abarcar sua multiplicidade.

Quando falo em Filosofia Integral, estou me referindo a uma Filosofia capaz de fornecer visões múltiplas e que, por isso mesmo, é eficaz na formação de uma personalidade que interaja com a vida de uma forma plena.

A Filosofia Integral é a convicção – semelhante a que possuíam os filósofos da Idade Média – de que Filosofia é mais do que disciplina acadêmica ou matéria de estudo intelectual, mas a própria concepção que se tem da existência e, ao mesmo tempo, uma prática de vida.

É assim que eu a vejo, também.

O Preço da Verdade

Há dois motivos para não sermos compreendidos: o primeiro, quando falhamos, por ignorância ou imperícia linguística, na transmissão de nossas idéias; o segundo motivo se dá quando o nosso interlocutor é incapaz de apreender o sentido do que estamos lhe dizendo. Ambos os motivos têm consequências, mas o primeiro gera, no máximo, a impaciência no ouvinte, enquanto o segundo pode provocar nele pavor.

Sócrates explica isso em sua Alegoria da Caverna, ao contar sobre a pessoa que, após deparar-se, pela primeira vez, com a luz, tomada de compaixão pelos antigos companheiros que permaneciam nas sombras, retorna até a cova escura, onde eles estão, para contar-lhes a novidade. No entanto, nesse trajeto de retorno, já não mais adaptada à escuridão, impossibilitada de enxergar qualquer coisa com distinção, age de maneira desajeitada e esquisita, provocando, nos moradores da caverna, estranheza e medo.

Na vida real ocorre o mesmo. Quem se depara com a verdade não consegue mais fazer uso das categorias e fórmulas usadas em seus tempos de ignorância. Assim, quando tenta se comunicar com os ignorantes, aos olhos destes acaba parecendo um tolo. Os ignorantes, então, concluem que a verdade proclamada é um veneno e, por mais que a não entendam, têm-na por perigosa, achando por certo afastar de seu convívio seu portador.

Diversos alunos e leitores meus relatam algo semelhante: que, ao contar para seus amigos e familiares, sobre a verdade que encontraram, são tratados como excêntricos, loucos e até perigosos. No entanto, o principal motivo não costuma ser a discordância do ouvinte, mas o medo provocado nele por algo tão fora do seu universo de consciência.

Este é o preço que a verdade cobra de quem se encontra com ela. Para este, resta esforçar-se por traduzir, em uma linguagem compreensível aos ignorantes, a nova realidade ou, simplesmente, conformar-se com a reprovação social. Se bem que o exemplo de Cristo, que fez bem aquilo, mostra que esta parece inescapável.

Revelação Gradativa da Verdade

Existe verdade e mentira. Isto é fato. Não significa, porém, que verdade e mentira sejam realidades estáticas, simples, absolutas.

Quando Platão nos apresenta a alegoria da caverna, ele mostra como a verdade, simbolizada pela luz, não pode ser contemplada de uma vez, imediatamente. Ela não é achada após um salto. Não se sai da escuridão, de uma hora para outra, para a luz.

Aliás, esse é o motivo de tantas pessoas, nessa empreitada na busca do conhecimento, atrapalharem-se. Ao se depararem com um feixe de luz, empolgam-se, acreditando que já estão vendo a luz em sua inteireza, e confundem-se. É muito comum testemunhar recém-saídos da ignorância absoluta acreditarem que se tornaram, de repente, os possuidores do conhecimento, arrotando arrogância por causa disso.

Obviamente, estão equivocados. A verdade plena não pode ser abarcada de supetão, como por um salto, mas por um processo gradativo, muitas vezes lento e gradual, até o encontro final com sua luz reveladora.

O fato é que a luz de verdade não pode ser encarada sem, antes, uma adaptação. Não por acaso, Tomás de Aquino dizia que a verdade é antecedida por muitos véus. Para o homem encontrá-la por inteiro, portanto, precisa atravessar esses véus.

Isso não significa que os primeiros contatos com a luz da verdade sejam algum tipo de ilusão. Eles já contêm a verdade, mas uma verdade atenuada, aguardando que nos acostumemos com ela para, aos poucos, ir se revelando cada vez um pouco mais.

Portanto, verdade não combina com pressa e os apressados tropeçam no meio do caminho e, com a cara no chão, acabam perdendo contato com sua luz.

Aceite a revelação paulatina de verdade. Não tente desnudá-la violentamente — ela não releva esse tipo de investida. Pelo contrário, deixe que ela lhe seduza, que lhe conquiste, que, por vontade própria, se dispa diante de você, no tempo dela, do jeito dela.

A verdade é senhora de si e dona de tudo. Portanto, se você quer contemplá-la, peça para ela que, no momento que a ela aprouver, lhe responderá.