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Vida de crítico

A posição do crítico é a mais confortável que existe. Ele aponta o que considera errado, mas faz isso apenas em abstrato, pois não é ele quem está fazendo algo. Quem fez tem de lidar com as nuances e complexidades da realidade, mas quem critica pode pairar no mundo das hipóteses, sem riscos, sem responsabilidades.

O pior é que eu conheço diversas pessoas que montaram suas vidas totalmente baseadas na crítica. Toda sua carreira existe apenas para falar mal do que outros estão fazendo, sem eles mesmos terem de fazer nada, nem mesmo apresentar qualquer solução que possa ser criticável. Por isso, não precisam se comprometer com coisa alguma.

Mais sério ainda é o fato de que são essas mesmas pessoas que acabam vistas como as mais sábias, as mais competentes. Sabe por que? Porque elas parecem infalíveis. Como suas vidas resumem-se em apontar os erros alheios, elas mesmas acabam aparentemente livres de qualquer erro.

Por consequência, é esse tipo de gente que se torna influente e longevo.

Esse foi o segredo, por exemplo, da influência e longevidade da Escola de Frankfurt. Apesar de todo seu trabalho ter sido baseado em fazer críticas sociais, ainda que travestidas de pesquisas e estudos, seus membros sempre tomaram o cuidado de não se comprometer demais com a política prática. Assim, puderam manter uma certa distância da inconstância da realidade material, podendo abrigar-se na segurança das discussões teóricas e abstratas. Tornaram-se, assim, umas das instituições mais influentes do mundo, tendo entre seus integrantes os pensadores mais lidos da contemporaneidade.

Da mesma maneira, muitos sabichões do nosso tempo se mantêm. Não têm nada para oferecer, pouco para acrescentar, mas apresentam-se como os especialistas naquilo que criticam, mesmo sem nunca terem construído nada na respectiva área.

Crítica inconfiável

Não seja exclusivamente crítico. A crítica costuma ser o abrigo dos incapazes, o instrumento dos invejosos e a máscara dos maus.

O maior problema é que existe um elemento malévolo na crítica: ao apontar um problema que realmente existe, ela adquire uma autoridade que lhe permite enganar os incautos. Basta ver como as pessoas, logo que alguém começa a falar mal de algo, ficam encantadas pelo crítico, tratando-o como especialista sobre o assunto.

O crítico, então, com essa autoridade absorvida, se vê seguro o suficiente para oferecer suas próprias soluções. Nisto reside toda sua periculosidade.

Basta ver como todos os movimentos críticos que se espalharam pelo mundo fizeram exatamente isso: apontaram algo que merecia alguma reprimenda e ofereceram em seu lugar uma mentira. O anti-catolicismo da Revolução Francesa, o anti-capitalismo do marxismo, o anti-monarquismo do movimento republicano – todos eles apontavam problemas reais que existiam, mas o que propuseram em seu lugar foi algo bem pior.

É por isso que devemos ser cautelosos com quem tem sua vida baseada na crítica ou que tudo o que propõe nada mais é do que um contraponto a algo que já existe. A história já mostrou que esses são tipos perigosos que, prometendo acabar com o que, segundo eles, impede o paraíso, oferecem em troca o próprio inferno.

Crítica cômoda

Destruir é fácil; criticar é confortável. Colocar-se na posição de quem vive a acusar os erros alheios é como apontar um canhão de dentro de uma casamata. Há pouco risco e faz-se muito estrago.

O pensamento crítico, tão exaltado, muitas vezes, é apenas o apontamento do óbvio. É que o erro, em boa parte dos casos, é algo tão evidente, detectável por qualquer mente sadia, que apontá-lo chega a ser quase uma tautologia. Não que discerni-lo seja equivocado, mas não deixa de ser, muitas vezes, também, só oportunismo.

Não é à toa que tanta gente se especializa na crítica. A pessoa só tem a ganhar com isso. Mantém-se na posição cômoda de dizer sobre o erro que vê – ou acha que vê – e não precisa expor-se. Afinal, se sujeita ao juízo quem faz; o julgador apenas paira impavidamente acima das vissicitudes humanas.

O que a crítica, muitas vezes, esconde, é o fato de que, no mundo das escolhas, nem tudo é tão óbvio quanto parece. Um ato, que é o efeito de uma decisão, sofre tantas influências que, não é incomum, parecer, à primeira vista, desacertado, quando, entre as opções possíveis, é apenas o menos pior.

Isso é muito comum em política, por exemplo, onde os jogos de poder e de acordos não se tratam de valores óbvios, nem absolutos. Uma decisão política pode parecer equivocada, quando observada sem o conhecimento de todas as circunstâncias que a envolveram. Vista, porém, diante da realidade que a cerca, pode ser que ela se configure como a melhor entre as hipóteses possíveis.

Quando alguém aponta um aparente erro, costuma ser visto como uma pessoa razoável, até admirável. Experimente, porém, exigir dela que, além do equívoco realçado, apresente qual seria a alternativa considerada, por ela, melhor. Não será surpreendente perceber que a opção exibida é pior do que aquela contestada.

Pôr abaixo qualquer coisa é simples. Lembro de quando eu era um garotinho, de uns seis anos de idade, que, junto com um amigo, um pouco mais velho do que eu, passávamos horas batendo, com pedras que carregávamos em nossas mãos, em um muro de uma casa abandonada que ficava na rua onde morávamos. Todo dia, íamos até lá e, pouco a pouco, descascávamos aquele muro velho. Até que aconteceu, depois de tanto fazermos aquilo, o que parecia impossível para dois pirralhos: o muro veio abaixo. Se pedissem para que levantássemos uma construção que fosse um décimo do tamanho daquele muro não conseguiríamos, mas fazê-lo cair foi algo que até dois fedelhos foram capazes. Destruir a obra alheia é, de fato, trabalho para qualquer um; construir, porém, para poucos.

As pessoas deveriam ser avaliadas, principalmente, pelo que se propõem erigir, não apenas pelo que elas combatem. Se para entender as idéias de alguém pode ser importante saber contra o que se levanta, para desmascará-lo, sendo ele um charlatão, basta exigir dele que apresente as alternativas, que tem em sua mente, ao que critica. Ao fazer isso, revelar-se-á, invariavelmente, que a crítica pode parecer muito inteligente, mas a alternativa, muitas vezes, é bastante estúpida.

Exaltar quem vive de mostrar as falhas alheias pode ser um erro, pois pode fazer você associar-se intelectualmente a alguém que, a despeito de aparentar sabedoria, não passa de um iconoclasta.

E para não se transformar, você também, em um deles, é mister, antes de fazer qualquer crítica, perguntar-se quais são às alternativas possíveis àquela a ser criticada. Se revelar-se algo melhor ao que foi feito, mantenha a censura. Caso contrário, é melhor calar-se.

Crítica prematura

Antes de querer criticar, aprenda sobre seu objeto de crítica. Isso é uma regra básica, uma atitude óbvia. Não existe crítica sem conhecimento do criticado. É assim em qualquer área do conhecimento humano – do futebol à metafísica.

E não basta um conhecimento superficial do assunto. Quem se arroga no direito de criticar algo precisa conhecê-lo com profundidade, a ponto de poder julgá-lo com autoridade.

Criticar sem conhecer é leviandade e os jovens têm sido estimulados a ser levianos ao serem induzidos a desenvolver o chamado senso crítico sem antes conhecerem aquilo sobre o que pretendem tecer suas críticas. Pior ainda: são provocados a criticar governos, sociedade, tradições sem nem mesmo entenderem a realidade mais elementar e imediata que os cerca.

Isso é uma inversão completa da razão. Não é difícil entender que a crítica é um direito adquirido de quem conhece, de quem entende como determinada coisa funciona. Quem se arroga no direito de avaliar o que não entende não passa de um palpiteiro.

Todo nosso sistema de ensino, portanto – da pré-escola à universidade – é uma fábrica de palpiteiros. Aliás, toda nossa cultura, com sua indução ao parto prematuro de idéias, é uma geradora incansável de falastrões, que acham que podem dar opiniões sobre tudo, mas que não fazem esforço para entender qualquer coisa.

A caridade e a vocação do escritor

A possibilidade de ferir sentimentos alheios nunca pode ser uma preocupação fundamental na atividade intelectual, pois é da natureza da crítica (e o trabalho intelectual é essencialmente crítico) tocar em feridas que doem.

Por isso, o escritor que se autocensura demais, com a preocupação de não magoar os outros, está limitando seu trabalho imensamente.

O que, de fato, deve balizar sua expressão é a verdade, a relevância, a utilidade e o bom-senso.

Eventuais ressentimentos devem ser considerados como efeito inescapável dessa atividade e, apesar de não dever constituir o fim dela, nem fonte de prazer para o escritor, não pode servir como limitador de seu trabalho.

Portanto, se, quando eu escrevo algo, afeto suscetibilidades, desculpe-me, essa nunca é minha intenção e nem me alegro com o fato.

O único problema é que deixar de escrever não é, no meu caso, uma opção.

A chegada da maturidade para quem produz alguma obra intelectual

Existe um momento na vida do artista, do intelectual e do escritor que pode ser considerado o limiar da maturidade e a despedida da meninice. Talvez não seja bem um instante, mas o resultado de um progresso que, em algum momento, se torna evidente para ele. É quando ele começa a ansiar pela crítica, quando deseja que seu trabalho seja honestamente avaliado, quando sente que a autocrítica já não é mais suficiente para a excelência de sua obra; percebe, assim, que o garoto ficou para trás.

Em minha juventude tive diversas atitudes arrogantes. Muitas vezes rechacei avaliações negativas sobre o que fazia e até fechei meus ouvidos para conselhos sinceros para melhorar este ou aquele aspecto de minha atividade. Cheguei ao absurdo de negar a ajuda de um profissional muito mais experiente, apenas por acreditar que eu estava mais certo do que ele.

Os jovens, muitas vezes, em sua necessidade de autoafirmação, em sua pressa de reconhecimento, atravessam a via expressa do mundo cultural apressadamente, sem olhar para os lados, sem medir as consequências. O resultado, invariavelmente, é que são atropelados pela realidade.

Ainda assim, é comum permanecerem herméticos quanto à avaliação da qualidade do que fazem. Fecham-se em uma auto-lisonja, na admiração cega à própria produção, considerando toda crítica a sua obra como injustiça e incompreensão de seu gênio.

Mas se tal atitude fosse exclusiva dos moços, até seria compreensível. O problema é que muitos ultrapassam a linha do mundo adulto carregando o mesmo tipo de comportamento. Permanecem, como nos tempos de meninice, abraçando tudo o que fazem como se fossem indiscutíveis trabalhos frutos de uma mente privilegiada, compreensível apenas para cabeças capazes de entender a profundidade de sua expressão.

Para quem glorifica sua própria obra, toda crítica é um dardo flamejante lançado com o intuito de consumir seu trabalho. Evitá-la, portanto, é uma necessária expressão de defesa. Por isso, quem ainda vive na infantilidade artística sofre, na tentativa de preservar o valor de seu trabalho, isolando-o da avaliação externa, ficando aberto apenas para os elogios e as manifestações lisonjeiras.

Quando se alcança a maturidade, porém, aparece o que antes parecia impensável: a necessidade da crítica. Apenas o homem crescido, preocupado essencialmente com o real valor do que faz, sabe que não possui todas as possibilidades, em si mesmo, de fazer algo excelente; que é inteligente ouvir o juízo alheio, que sempre traz luzes novas ao que pode ser melhorado; que a obra intelectual não é feita apenas de originalidade, mas há muito de informação, inclusive de mimetismo e de absorção do que já fora empreendido por outras mentes.

A pessoa que definitivamente cresce, já não se protege, como um paranoico, mas se abre, desejoso por saber o que aqueles mais experientes, mais conhecedores e mais capacitados pensam sobre o que ele faz. E este é o marco divisório entre a infância e a maturidade intelectual.

Calados pela diversidade

A diversidade é uma santa imaculada, louvada, venerada por todos os adeptos da “igreja do pensamento que não desagrada ninguém”. Segunda a doutrina dessa comunidade amorfa, inócua e desinteressante, toda manifestação cultural deve ser valorizada, nenhuma cultura pode ser considerada superior e, principalmente, toda cultura deve ser respeitada, ainda que sua prática seja absurda ao observador.

Segundo esse pensamento, culturas como as das comunidades indígenas, por exemplo, que enterram crianças vivas, simplesmente porque não nascem fisicamente perfeitas, ficam, segundo a ideologia da diversidade, automaticamente isentas de crítica. Não importa que tais práticas sejam uma afronta ao bom senso e a uma mínima noção de humanidade; não cabe falar nada contra elas.

Além do sufoco infantil, o sufoco da opinião. O respeito à diversidade é alçado, então, ao estatuto de lei universal, inviolável. Como diante de uma regra imutável, enxergar o diverso como algo tolerável deixa de ser uma questão de opção e valores e passa a ser mandamento. Ter o diferente como mal, inferior, prejudicial não apenas é visto como um ato de intolerância, mas começa a tornar-se um crime contra a humanidade. Se não gosta, cale-se e veja o diverso divertir-se às custas de seu silêncio forçado.

A diversidade assume então o status de valor em si. Falar algo depreciativo do outro torna-se blasfêmia sujeita à reprovação e excomunhão praticada pelos asseclas vociferantes dessa entidade, dessa deusa, que tem recebido cada vez mais louvores e oferendas. Criticar o diferente é pecado, e mortal.

Mas quem são os diferentes protegidos? Na verdade, são aqueles escolhidos segundo o interesse da ideologia. A matança infantil indígena é diferente, a feitiçaria africana é diferente, a poligamia e pedofilia islâmicas também são diferentes e, por isso, falar algo contra essas chamadas “manifestações culturais” é crime.

Mas veja que, quando a diversidade, por si mesma, passa a ser inviolável, não apenas a cultura estrangeira é cercada com muros inexpugnáveis, mas as próprias manifestações internas, em sua infinita diversidade, ainda que se choquem com os padrões construídos dentro da própria cultura. Assim, qualquer atitude humana, mesmo que seja uma afronta ao bom senso, às tradições e à própria percepção de natureza de um povo, fica colocada fora do campo da crítica, permanecendo guardada das palavras contrárias.

O que é isso senão a imposição de uma mordaça absoluta? E o que é isso senão o próprio fim da civilização como a conhecemos? E o que é isso senão o fim da religião mesma? Ora, toda a construção civilizacional e religiosa fora erguida sobre a crítica, a dialética e a dissonância. Sem isso, nada se teria feito. Se desde sempre os homens não pudessem expor suas visões discordantes, viveríamos ainda nas cavernas.

Mas não pense que o politicamente correto é tão universal assim. Se, por um lado, ele prega que todas as culturas devem ser respeitadas e todas as opiniões ouvidas, ao mesmo tempo, escolheu algumas entre elas que estão fora de seu cerco de proteção e sobre as quais, diferente de todo o resto, toda a crítica é muito bem vinda. O cristianismo, o capitalismo, a tradição e a moral, se tudo está protegido pela couraça do politicamente correto, estas manifestações citadas e seus correlatos: o homem branco, a heterossexualidade, a família e os valores espirituais se encontram fora dessa rede de proteção. Nada pode ser mal, exceto estas formas de cultura. Um índio pode matar uma criança, mas um cristão não pode dizer que o homossexualismo é um erro. Um africano pode fazer feitiços contra qualquer um, mas um crente não pode orar pedindo bênçãos para Deus. Um homossexual pode invadir um culto de uma igreja evangélica, lugar privado, e afrontar as crenças dela se agarrando diante de todos, mas um pregador não pode, em praça pública, afirmar que um gay está em pecado. Uma mulher pode reclamar pelo direito de matar fetos, mas ninguém pode mandá-las calarem suas bocas. Os brancos precisam arcar com os custos de uma escravatura secular, enquanto os negros não pagam nada pela escravatura empreendida por eles mesmos. O capitalista pode ser demonizado como avarento e explorador, enquanto líderes socialistas, ainda que usufruindo de vidas nababescas, obtidas por meio da exploração de povos inteiros, são tidos por heróis.

Há dezenas de outros exemplos que poderiam ser citados, mas esses bastam para mostrar que se o politicamente correto impõe o “cale-se” a quase todos, ficam de fora exatamente aqueles que livremente podem criticar os calados. E se um dia esses calados desaparecessem, a utopia seria alcançada: um mundo onde ninguém critica ninguém, onde nada é discutido, onde nada é melhorado. Como na música do John Lennon, uma mundo sem religião onde todos vivem como um só. Um lugar eternamente inerte. Na verdade, uma exata descrição do Inferno.