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Discurso é sopro

Jamais alie-se a alguém apenas pelo seu discurso. Nunca apoie um político por causa de suas palavras. Usar a linguagem, na forma e no conteúdo, para cooptar apoiadores é a arte da política e o instrumento preferido dos psicopatas.

Um psicopata consegue defender, tranquilamente, uma ideia hoje e outra contrária amanhã, com a mesma veemência e coerência. Quem o escuta, se não toma as devidas precauções, acaba persuadido. Afinal, exteriormente, suas falas possuem todos os elementos estéticos que confirmariam sua veracidade, sinceridade e honestidade.

Em geral, as pessoas não são treinadas para separar linguagem e realidade e, por isso, não vislumbram o caráter simbólico das palavras, confundindo-as com a coisa-em-si. Quando ouvem alguém falando qualquer coisa, têm dificuldade de abstrair o discurso, de enxergá-lo como meras expressões vocais, meros sopros que saem da boca do falante. Se ouvem alguém defendendo a pátria, já tomam-no por patriota; se o escutam xingando comunistas, têm-no por direitista; se a pessoa fala de Deus, recebem-no como crente. Por causa disso, são facilmente enganáveis.

Gente comum fica estupefata quando testemunha alguém fazendo um discurso completamente inverso do anterior, com a mesma convicção e energia. Em sua lógica simples, duas coisas contrárias não podem coexistir. Nisso, confunde a linguagem com a realidade, que são entidades de categorias diferentes.

A coerência no discurso só existe por escrúpulo, não por qualquer dificuldade real. Manter a coerência é uma atitude psicológica, de quem sofre com a culpa por não conseguir ser incoerente. No entanto, psicopatas não sentem culpa e, boa parte deles, está na política. Por isso, parar de ouvi-los e, principalmente, de acreditar neles, é a coisa mais inteligente – e profilática – a se fazer.

Beleza além da forma

O discurso do presidente Bolsonaro, naquela reunião ministerial, cheio de expressões fortes e até xingamentos, poderia, de alguma maneira, ser considerado um discurso bonito? Antes de acusar-me de delírio, pense um pouco e responda qual discurso pode ser considerado o mais belo: aquele que, ao final, você sai admirado com a eloquência e o trato que o orador tem com as palavras, faz um elogio, mas esquece-o logo em seguida, ou aquele que mexe com seus brios, que lhe faz balançar na cadeira e que lhe impulsiona a agir?

Obviamente, a forma do discurso é importante. Inclusive, os professores de oratória costumam ater-se praticamente apenas a ela, enquanto os alunos só querem saber dela. No entanto, apesar da estética de um discurso ser um auxiliar poderoso, ela nunca é decisiva para alcançar a persuasão. A estética é sempre dependente do conteúdo. Quando este é forte, ela ajuda a fortalece-lo ainda mais; quando fraco, porém, nem a maneira mais bela de dizê-lo pode socorre-lo.

O fato é que há beleza além da estética. Um bebê é belo, mesmo tendo carinha de joelho; um cachorrinho pug é belo, apesar de parecer um monstrinho; uma velhinha de cem anos de idade é bela, ainda que com o rosto completamente enrugado; a simplicidade de um homem honesto é bela, a despeito de seus modos rústicos; a verdade sempre é bela, mesmo quando acompanhada dos modos mais grosseiros.

Por isso, quando nos referimos à beleza de um discurso, temos de olhar para além da forma. Não é apenas o bom trato das palavras, a boa colocação das frases, a escolha das expressões mais bonitas e a elegância na construção do pensamento que podem ser considerados bonitos. Existe uma beleza mais sutil, e certamente mais poderosa: a de um discurso sincero, direto, honesto e profundo, que explode do fundo do coração do orador.

Quando uma mensagem jorra da alma de um homem, ela se torna irresistível. Supera a frieza morta da letra, adquire vida e todo aquele que com ela tem contato acaba sendo por ela influenciado. Ninguém consegue ficar indiferente a uma declaração de amor honesta, nem à expressão de ódio sincera; uma pessoa normal se incomoda com o lamento genuíno, como não consegue desprezar um crítico franco.

Se testemuhamos alguém falando palavrões, xingando, usando expressões impróprias para o seu cargo, tropeçando nas próprias construções de suas frases, exaltando-se mais do que a liturgia aconselha, mas, ao mesmo tempo, percebemos que ele fala com o coração na mão, com a honestidade que denuncia que suas palavras são o fiel retrato de sua alma, não há como não sermos tocados pelo seu discurso. Acabamos, inclusive, considerando esse discurso belo, menos por seu refinamento estético do que pela simples beleza que reside em tudo aquilo que revela o que é verdadeiro.

Polidos selvagens

Não adianta nada, na vida privada, usar das expressões mais vulgares e não possuir nenhuma preocupação estética na construção das próprias frases que emite, mas exigir de governantes e autoridades que falem como lordes ingleses. Isto é hipocrisia.

Uma sociedade que incentiva o pudor linguístico público, inexistente em seus círculos íntimos, faz de seus cidadãos facilmente manipuláveis. Basta surgir um engravatado, falando suave, afável e educadamente, que todo mundo acha que tem o dever de respeitá-lo. Assim, quem quer foder a vida das pessoas sabe que só precisa aprender a falar bonito.

Exaltar demais a polidez na expressão faz da pessoa como uma donzela iludida, que prefere a doce voz do canalha ao jeito grosseiro do sincero. Gente assim se incomoda com a maneira de falar mais contundente de homens como Jair Bolsonaro e Abraham Weintraub, mas se submete a psicopatas como Lenin, Stalin, Mao e Fidel, que, ao mesmo tempo que tiranizavam multidões, sabiam se expressar graciosamente e demonstrar cortesia.

Vamos ser sinceros? A sensibilidade em relação à linguagem alheia geralmente é só jogo de cena; é apenas uma maneira de se fingir civilizado enquanto, junto aos familiares, amigos e colegas de trabalho, age e fala como um selvagem.

A comunhão entre o orador e sua audiência

Cansei de ver oradores preparando seus discursos, imaginando causar um grande impacto naqueles que iriam ouvi-los. Confiantes no poder revolucionário dos conteúdos que tinham a apresentar, acreditavam que provocariam uma mudança radical em seus ouvintes. O resultado, porém, quase sempre foi bem diferente do esperado. Invariavelmente, o que aconteceu, nesses casos, foi uma recepção fria à mensagem apresentada, a qual não apenas não resultou em mudança alguma, como chegou até a despertar o desprezo em relação ao orador.

Na verdade, é incrivelmente raro um palestrante conseguir fazer com que, por meio de seu discurso, uma audiência mude seu pensamento. Não digo que não seja possível, mas é algo muito difícil de acontecer. Geralmente, as pessoas não ouvem uma palestra para alterar as ideias que elas têm das coisas. Elas ouvem-na para reforçar as convicções que já possuem.

Aliás, esta é a própria definição de retórica: um discurso que parte das crenças que o público já carrega consigo.

Fica claro, portanto, que quem delimita as fronteiras do que vai ser abordado não é o orador, mas sua audiência. O que há, de fato, é um acordo entre eles, como se fosse um acerto prévio sobre quais são os limites do que deve ser dito e até onde se pode chegar. O que ultrapassa essas fronteiras é considerado uma quebra desse concerto e o orador que comete esse erro acaba causando o inverso da mudança que espera provocar, ou seja, a rejeição ao que ele está apresentando.

Sendo assim, um discurso está longe de ser um espetáculo de um homem só. Trata-se bem mais de uma comunhão, onde há, é verdade, alguém que detém a palavra, mas que não está livre para dizer o que quer, senão para explorar aquilo que se encontra dentro dos limites impostos pelo acerto silencioso que mantém com a audiência que se dispõe a escutá-lo.

Por isso, obtém-se pouco sucesso em uma palestra quando se aposta todas as fichas apenas no material a ser apresentado e não se percebe que o que há entre o orador e a plateia é mais do que a emissão e absorção de uma mensagem. Há, de fato, uma comunidade de espíritos.

O orador e o compartilhamento de si mesmo

Erra quem, ao fazer uma apresentação, se dirige à plateia acreditando que ela está ali apenas absorvendo suas palavras e ideias. Quem pensa que as coisas acontecem assim, geralmente crê que as palavras e as ideias possuem uma força autônoma e que o orador não passa de um mensageiro, um portador isento de um conteúdo que sobrevive por si mesmo.

Porém, as palavras possuem uma função muito específica no discurso, que é a de fazer referência a uma realidade que existe antes e além delas. Palavras são apenas intermediárias, são símbolos que apontam para essa realidade. Porém, elas mesmas, sem a realidade para a qual apontam, não são nada.

Por isso, quem se dirige a uma audiência transmite para ela muito mais do que palavras. Ao falar com o público, o orador transmite – ou tenta transmitir – realidades. E essas realidades residem no mundo, independentemente das palavras e até mesmo das pessoas.

No entanto, essas realidades, apesar de existirem independentemente das pessoas, só podem ser reconhecidas conscientemente pelas pessoas. E nesse processo de reconhecimento, elas não absorvem as realidades mesmas, mas criam, dentro de si, versões dessas realidades.

Quem, por exemplo, se depara, pela primeira vez, com um animal que nunca tinha visto, ao deixar sua presença, leva consigo não o animal mesmo, mas uma imagem dele. Aliás, uma imagem incompleta e, invariavelmente, imperfeita. Daí, quando ele se propõe a comunicar, para outras pessoas, essa imagem do animal que ele carrega consigo, o que ele vai comunicar não é a realidade mesma, mas sua versão dela, a interpretação que ele faz daquilo conheceu.

Ao fazer isso, porém, inescapavelmente, ele acaba por dar um tom pessoal a essa realidade processada dentro dele. Ademais, como essa realidade, que está dentro dele, é uma interpretação pessoal, então ela também acaba sendo única. Assim, o que ele comunica acaba sendo a sua própria realidade.

O fato é que, quando essa realidade é transmitida, ela sai da boca do orador já não mais como uma verdade absoluta e independente, mas, sim, como uma versão da realidade feita pelo próprio orador. E sendo uma versão do orador, o que ele acaba transmitindo diz, geralmente, mais dele mesmo do que da realidade a qual ele se refere.

É por isso que eu afirmo que, no fim das contas, comunicação é mais do que compartilhar suas ideias e conhecimento. Comunicação é compartilhar a si mesmo.