Subjetividade e lembrança

Ninguém pode mudar o passado. Isto é fato! Porém, não significa que os fatos lembrados são todos obviamente claros e igualmente reconhecíveis por todas as pessoas. Na verdade, cada indivíduo acaba aplicando seus próprios filtros sobre o que aconteceu, interpretando-o conforme as capacidades e instrumentos cognitivos que possui.

Isso, de alguma maneira, confunde algumas pessoas, que acabam acreditando que, porque as memórias divergem, os fatos também divergem e porque o passado é lembrado de maneiras diferentes, então o que aconteceu, da mesma forma, deve ser mutável.

Tal confusão, porém, só é possível porque vivemos tempos quando a subjetividade adquiriu valor tão importante, se não maior, do que a própria realidade. De Berkeley a Kant, dos impressionistas aos surrealistas, a percepção subjetiva foi adquirindo status de verdade, assumindo importância tal que os dados brutos da realidade chegam até a ser desprezados.

Não que achem que o passado está mesmo sendo alterado, mas realmente não se importam com isso. O que importa mesmo é como lembram-se dele e como interpretam-no. O mundo dentro de suas cabeças é o único legítimo e ai de quem ousa contestá-los.

São os tempos das “minhas verdades”, quando nada é mais importante do que a forma como cada um enxerga o que vê ou o que pensa que vê.

Em um mundo assim, não há mais espaço para o debate, para o desenvolvimento das ideias, nem para qualquer tipo de exortação. Se a interpretação pessoal é o mesmo que realidade, tudo o que uma pessoa pensa está validado, ainda que para o senso comum possa parecer absurdo.

Rebuscamento afetado

A mente confusa, principalmente quando seu portador possui algum tipo de cultura literária, torna-se uma fonte inesgotável de palavras grandiloquentes, porém sem nexo. A pomposidade da expressão acaba por servir de película protetora sobre a falta de consistência daquilo que se está tentando dizer. De maneira paradoxal, é exatamente esse rebuscamento afetado que torna tudo tão inacessível e, ao mesmo tempo, misterioso, como se fosse algum tipo de sabedoria esotérica, fazendo com que seus autores sejam cultuados como representantes de uma inteligência superior. E essa prática vai se retroalimentando, de tal forma, criando uma elite de estúpidos orgulhosos, que se torna cada vez mais difícil encontrar as possíveis pérolas que possam existir em meio a tanto esterco publicado. No fim das contas, a intelectualidade acadêmica acaba servindo apenas para esconder o que pode haver de verdadeiro conhecimento dentro das universidades e no mundo científico, prestando-se ao papel exatamente contrário para o que existe. Seria muito melhor se fossem mais humildes e seguissem o conselho de Mark Twain: “Se você não tem nada a dizer, não diga nada“.

Confio mais em mim que no Estado

Eu não confio nas instituições estatais. Sei que é impossível prescindir totalmente delas, mas prefiro, sempre que está ao meu alcance, tentar resolver minhas questões por mim mesmo. Eu sei que, como advogado, é estranho que eu faça tal afirmação. No entanto, é exatamente minha experiência de fórum que fortaleceu essa convicção. Principalmente, em situações envolvendo questões morais e ofensas, não consigo deixar de lembrar do caso Oscar Wilde, que, ao mover a máquina judiciária para defender-se de difamações e injúrias praticadas pelo pai de seu amante, acabou, em uma inversão processual, ele mesmo preso por dois anos, condenado por atos imorais e homossexualidade. Este foi o fim de sua trágica e errante vida, sendo que poderia ter usado seu talento literário, em vez do arbítrio de um funcionário público, para reaver aquilo que considerava sua honra aviltada. Quando eu vejo, por exemplo, o Jair Bolsonaro vacilante em tomar alguma atitude contra seus detratores, ainda que isso seja um provável erro estratégico, consigo compreender sua hesitação. É que se não for para impingir uma fragorosa derrota ao adversário, para que valem tais ações? Mas como ter certeza que a justiça será plenamente satisfeita, quando os julgadores variam tremendamente em suas visões de mundo e até ideologias? Mover um processo e perder é pior que não mover. Veja o caso do Jean Willys e seu cuspe. Acabou ele saindo fortalecido da história. Por isso, prefiro, sempre que me é possível, resolver minhas querelas por mim mesmo, deixando para o Estado apenas aquilo que não consigo obter com minhas próprias forças.

A insana necessidade de compreensão de tudo

Se eu pudesse destacar uma característica da espiritualidade moderna, não seria nenhum tipo de misticismo irracional, nem a busca por elementos tranquilizadores. O que caracteriza os religiosos de nosso tempo é a necessidade extrema de compreender tudo. O religioso contemporâneo tem horror ao mistério, ao incerto, ao que ele não pode prever. É por isso, por exemplo, que o espiritismo tem tantos adeptos, pois ele pretende explicar tudo. E mesmo aquelas manifestações religiosas que aparentam ser mais irracionais contêm esse mesmo elemento de previsibilidade, pois ainda que, em seus atos mais cotidianos, digam deixar-se levar pela atuação imprevisível do espírito, não suportam dizer que não entendem porque as coisas aconteceram de determinada maneira e não aceitam, de forma alguma, que qualquer situação humana, mesmo as mais trágicas, fiquem sem uma resposta definitiva, nem que seja: “Deus quis assim”.

Chesterton, em seu livro Ortodoxia, ressaltou a importância para a sanidade de aprender a viver entre o que se sabe e o misterioso. Tudo o que for aquém ou além disso é prenúncio de um certo tipo de desequilíbrio. Eu mesmo, em minha vida, aprendi, não a resignar-me de que as coisas são desse ou daquele jeito, mas admitir que não poderia compreendê-las todas. Principalmente aquelas que me pareciam mais absurdas, aceitei que, para manter-me são, precisaria deixar sua compreensão em suspenso, aguardando que algum dia, por misericórdia divina, eu pudesse entendê-las.

A violência dos modelos antigos sobre os problemas atuais

O amor à tradição, ao heroísmo passado e a uma pretensa idade de ouro podem parecer a solução ideal para a resolução dos problemas da atualidade. É fácil imaginar a perfeição de um tipo de vida e, como se fosse uma pintura de Claude Lorrain, tentar reproduzi-la no mundo da realidade. O passado pode ter muitos bons exemplos e até caminhos que podem servir de guia para nossas escolhas de hoje. Porém, nossos problemas são apenas nossos, com todas nossas circunstâncias e peculiaridades. Forçar o encaixe de modelos antigos ao nosso tempo pode significar tanto a distorção daquelas formas anteriores como a violência sobre o que existe agora.

O intelectual e o mundo

Se a vida intelectual não proporcionar algum tipo de isolamento é sinal que não é tão intelectual assim, afinal, alguém que se preocupe com temas que a maioria das pessoas sequer têm ideia que existem não pode pretender gozar de uma vida social plena. É impossível evitar que o esforço para compreender assuntos que, aos olhos comuns, aparentam ser absolutamente inúteis e gastar tempo com conhecimentos que não produzem nada palpável, seja visto como algo prosaico e seu sujeito tratado como normal.

Carregar livros, em uma sociedade que aprendeu que o valor de cada coisa mede-se por sua utilidade tangível, pode até merecer algum destaque, até mesmo um elogio não efusivo, mas não impede que o vejam como um excêntrico que joga fora o melhor desta vida por algumas letras em papel. E se o intelectual tem a ousadia de compartilhar aquilo que aprendeu com seus mestres mortos, começa a abusar do direito à excentricidade permitida pelos comuns. Uma coisa é gostar de enfadar-se com as besteiras publicadas, outra é achar que tem o direito de incomodar os mortais com isso.

É impossível, portanto, impedir que haja um certo afastamento do intelectual em relação ao restante da sociedade. Se as pessoas que o cercam não demonstram nem um pouco de interesse por aquilo que lhe apraz e lhe dá sentido, esperar que haja perfeita harmonia entre ambos é de uma inocência incrível.

E apesar da inevitável tensão que existe entre o intelectual e o mundo que o cerca, cabe a ele, assumindo a posição que seu status lhe oferece, fazer algo que o aproxime da humanidade, ainda que ela não esteja tão excitada por tê-lo por perto. Afinal, se é ele quem tem acesso às grandes idéias, à sabedoria que os grandes homens compartilharam e se é ele que se dispõe a compreender a realidade, então cabe também a ele agir de maneira superior ao homem comum. E por mais que a reação das pessoas ante ao seu interesse pelas coisas da inteligência seja, por vezes, até hostil, é obrigação de quem se dispôs a viver além do trivial mostrar que suas leituras não são em vão.

Não que o intelectual deva ceder às superficialidades, nem abandonar seus interesses em favor de um mundanismo vazio, que apenas agrada quem dele se alimenta. No entanto, se seu esforço pela compreensão da vida não lhe propiciar uma capacidade de aproximação mesmo junto aqueles que não entendem seu papel, então tanto estudo não serve para muita coisa.

Próximos de Deus

Há um certo tipo de reverência em relação a Deus que, em vez de exaltá-lo, serve apenas para afastá-lo. Sempre existiram homens que, no intuito de preservar o divino de blasfêmias e irreverências, acabaram por escondê-lo das pessoas, tornando-o um ser distante e diáfano, imperceptível e quase inconcebível.

É verdade que há aqueles que tratam Deus como se fosse uma mera figura mitológica, enquanto outros, na ânsia de demonstrarem intimidade, referem-se a Ele como se estivessem falando de um homenzinho qualquer. Porém, esses equívocos não justificam lançá-lo a tão altos céus que o mero fato de mencioná-lo pareça uma heresia.

Pelo contrário, apesar de sua infinita grandeza, Deus fez questão de aproximar-se dos homens, tornando-se, pode-se dizer, verdadeiro amigo deles. De uma maneira que constituiu-se loucura para os antigos gregos e escândalo para os judeus, Ele não permaneceu impassível em seu trono, mas rebaixou-se amorosamente, como um pai ao dobrar-se a brincar com seus filhos.

Por isso, ninguém deve temer dirigir-se a Deus, pois Ele está pronto para ouvir os homens. Na verdade, a reverência, tão exigida pelos mais escrupulosos, está muito menos na forma que no coração daquele que levanta sua voz e pensamento aos céus.

Há gente que, apesar dos sinais exteriores de respeito, possui uma alma tomada de intenções maléficas. Seus atos, então, são o pior tipo de blasfêmia, porque intentam ocultar do próprio Deus a verdadeira face de seus corações. Outros, porém, às vezes falham na forma, mas têm a certeza que dirigem-se a um Pai bondoso e esperam dele nada mais que sua ação misericordiosa.

Não que os ritos e as fórmulas sejam maus – longe disso! Porém, nada são quando praticados por quem apenas os repete sem considerar o verdadeiro objetivo para que foram criados. E é por causa disso que Deus disse que estava cansado daquilo que ele mesmo entregou, a saber, os sacrifícios e as festas. É que Ele sabia que eles haviam tomado o seu lugar e se tornado um fim em si mesmos.

A grande conquista cristã foi exatamente a abertura do céu. O que Cristo adquiriu foi a possibilidade de um contato mais íntimo e espiritual com o Criador. Querer impedir isso com a desculpa do risco da blasfêmia e da irreverência é como a noiva que nega-se a entrar na câmara nupcial alegando pudor – pode parecer virtuosa, mas erra no essencial.

A universalização da experiência pessoal

Um dos erros básicos de raciocínio, que eu vejo uma infinidade de pessoas cometendo, é a universalização da experiência pessoal. Fulano toma algo que aconteceu com ele e disso tira a teoria para todos as outras situações similares. Bastou ele ter um patrão injusto e já toma todos os patrões por injustos, foi só tomar um chifre da mulher e toma todas as mulheres por infiéis. Inclusive, eu mesmo poderia estar universalizando isso que observei, se não fosse o fato de ver a situação ocorrendo o tempo todo e com tanta gente, além de ter lido em outros autores a mesma observação, que já é possível dizer que trata-se de uma verdadeira epidemia.

Se levarmos em conta que as experiências dependem ainda da interpretação que cada um dá a elas, temos então uma infinidade de teorias baseadas não apenas no que cada um viveu, mas na interpretação que cada um deu a determinada situação. É o império do subjetivismo a todo vapor!

Tal equívoco de pensamento tem sido a base de diversas teorias que são vistas por aí. De doutrinas religiosas a concepções políticas, poucos se esforçam por absterem-se, ainda que temporariamente, de suas experiências mais imediatas, para prestarem um pouco mais de atenção ao que acontece com outras pessoas e assim tirar suas conclusões de maneira mais embasada e sólida. Não! Preferem já defender que as coisas são de tal maneira exatamente porque elas mesmas experimentaram aquilo como a descrevem.

Tal erro é ainda alimentado por uma característica dos nossos tempos, que é a exaltação exacerbada do sentimento pessoal. Em um mundo que aprendeu a valorizar a expressão íntima do indivíduo em detrimento dos dados que lhe são oferecidos desde fora e desde antes, como dos seus antepassados, acreditar que sua percepção diante de um fato representa uma verdade universal não é nenhuma surpresa.

Então, o que temos é uma infinidade de pessoas, com uma infinidade de experiências, dando uma infinidade de interpretações, causando uma infinidade de teorias. Não é à toa que aparece uma nova solução para cada situação a cada nova semana. As prateleiras das livrarias entopem-se disso. As redes sociais, então, transbordam.

Ódio ao empresário

Está arraigada na cultura brasileira o ódio ao patrão. Na cabeça do homem simples, que foi envenenada com décadas de discursos anticapitalistas, aquele que lhe dá emprego, na verdade, o explora.

Um professor destilou ódio contra os ricos empresários e disse que luta para que seus alunos não se conformem em ser subalternos, pois eles podem ser patrões. Que pena que seus alunos, quando alcançarem isso, serão odiados pelo seu ex-professor.

As pessoas, quando odeiam seus patrões, costumam apenas pensar no dinheiro que estes ganham, mas ignoram completamente os problemas, os temores e os riscos que eles suportam. Na verdade, tais críticos não possuem a fibra comum ao empresário e não têm coragem para arriscar-se como ele. Odeiam o empreendedor porque não sabem ganhar dinheiro da mesma maneira.

O fato é que aqueles que mais reclamam de seus patrões, normalmente, são os mais vagabundos. Quem trabalha seriamente sabe o valor que o trabalho tem. Quem entende a nobreza do esforço e o sentido da recompensa não fala mal de quem lhe dá emprego, mas quer um dia ser como ele.

Nunca tenha inveja de alguém rico. São as fortunas que proporcionam as oportunidades, os empregos e fazem a economia girar. Acabe com os ricos e sobrará apenas a miséria para ser equanimemente distribuída.

Gramsci devedor de Descartes

Sem dúvida, Gramsci obteve mais sucesso de que seus irmãos revolucionários. Enquanto estes, apesar de tomarem rapidamente o poder e até permanecerem nele por um bom tempo, viram ruir suas conquistas, com um castelo de cartas destruído por um sopro, o gramscismo permanece em sua lenta e gradual marcha pela hegemonia cultural e política, fortalecendo-se a cada dia, sedimentando cada vez mais suas bases.

Se destruir o comunismo fora uma questão de força e inteligência, acabar com a mentalidade formada por décadas de aplicação do método gramscista é algo bem mais complicado, pois envolve a capacidade de penetração na alma humana e alteração de suas visões e até percepções.

Mas Gramsci não obteria nada se já não houvesse, na mentalidade da sociedade, algum tipo de veneno, que servisse como preparador do espírito humano para recebê-lo. E tal foi ministrado, ainda no século XVII, por Descartes, que o mundo Ocidental moderno reconheceu como um pai.

Foi o pensador francês que, ao colocar o indivíduo, em sua subjetividade, em posição de vantagem em relação às conquistas coletivas da humanidade, na busca da verdade, ainda que tivesse a intenção de prepará-lo para o conhecimento, serviu mais para deixá-lo exposto à manipulação de quem soubesse entender a fraqueza do ser humano.

E parece até que Gramsci guardou a lição de Descartes, que chegou a escrever que não seria razoável que um partido tencionasse reformar um estado, mudando-o em tudo desde os alicerces e derrubando-o para em seguida reerguê-lo; nem tampouco reformar o corpo das ciências ou a ordem estabelecida nas escolas para ensiná-las (…) O melhor a fazer seria (…) retirar-lhes essa confiança, para substituí-las em seguida ou por outras melhores, ou então pelas mesmas, após havê-las ajustadas ao nível da razão.

E quem pode negar que a mais eficiente ação gramscista não foi mesmo minar a confiança que as pessoas possuíam em suas tradições, costumes e até em suas próprias percepções naturais, para depois insuflar nelas suas loucuras ideológicas? Ela, aos poucos, abalou tudo, porém, não oferecendo aquilo que, idealmente, Descartes pretendia, que era um suposto ajuste do pensamento à boa razão, mas, sim, deixando as pessoas abandonadas, à mercê de qualquer coisa que se lhes oferecesse como solução para o vácuo deixado.

Foi, então, nessa brecha aberta que começaram a passar as novas ideias, que, contudo, não passavam das mesmas velhas ideologias, apenas travestidas de novidade. Foi, assim, que Gramsci parece ter vencido, porém não sem ter de devotar a Descartes o louvor por ter preparado a alma humana para recebê-lo.